sexta-feira, 10 de maio de 2019

Paumari

Toy Art Pamari
#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
167PaumariPamoariArawá
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
AM1559Funasa 2010



Os Paumari eram conhecidos como os "nômades do Purus", devido a mobilidade impressionante de seus grupos locais e a suas habitações tradicionais, construídas em cima de balsas, chamadas "flutuantes". Pescadores das várzeas, os Paumari são um dos poucos povos indígenas do médio rio Purus que conseguiram sobreviver sem confrontos armados nos dois ciclos de borracha, que arrasaram outros povos da região em meados do século 19.

 Nome

A autodenominação é Pamoari, mas na comunicação com os brancos e com outras etnias indígenas eles geralmente usam a denominação Paumari. Pamoari tem vários significados: "homem", "pessoa", "povo", mas também "freguês", o que pode estar relacionado com as relações dos Paumari com os comerciantes da região. Outros nomes que aparecem na literatura são Kurukurú, Palmari, Pamarí, Pammari, Purupuru, Wayai, Yja'ari.

Segundo o coronel Labre, um dos grandes seringalistas do Purus no século 19, os Paumari eram chamados de Purupuru, que significa "pintados" em nheengatu (língua geral amazônica), devido a uma doença que lhes provocou manchas na pele, principalmente nas extremidades mais expostas ao contato humano. Essa doença foi observada por vários cronistas do século 19 (por exemplo, por Gustav Wallis e Euclides da Cunha), pelos quais foi atribuída aos hábitos alimentares dos Paumari, marcados pelo consumo de peixes e quelônios.

 Língua

Os Paumari chamam sua língua de Pamoari. Ela pertence à pequena família Arawá da Amazônia Ocidental. Até agora não foram descobertas línguas próximas da mesma família. Os conhecimentos sobre ela baseiam-se quase que exclusivamente nos estudos realizados pelas missionárias Shirley Chapman, Mary-Anne Odmark, Meinke Salzer e Beatrice Senn, da SIL (Sociedade Internacional de Lingüística). Quase todos esses estudos foram feitos na área do Lago Marahã, mas parece que há algumas variações dialetais entre o Pamoari desta região e o dos rios Ituxi e Tapauá. Quase todos os Paumari falam também o português e são bilíngues, sendo que em muitas ocasiões mudam de uma língua para outra na mesma frase.

 Localização

A região habitada pelos Paumari é exclusivamente a bacia do médio rio Purus com seus afluentes, como os rios Ituxi, Sepatini e Tapauá, no estado do Amazonas. Os Paumari são conhecidos por sua orientação aquática, o que se manifesta nos habitats tradicionalmente preferidos: várzeas, rios e lagos. As formas de vegetação predominantes nesses habitats são florestas ombrófilas densas aluviais de terraços e de planícies periodicamente inundadas. O estabelecimento de assentamentos permanentes na terra firme é um fenômeno recente de mudança cultural externamente influenciada.
Território Paumari

As zonas ecológicas preferidas para construir aldeias são margens de rios com praias fluviais, ilhas de terra firme nas várzeas e áreas não alagáveis na interface entre as planícies fluviais alagáveis e a terra firme, denominadas na região de "pé da terra firme".

Os registros históricos indicam que a região do médio Purus já era habitada pelos Paumari na época da chegada dos primeiros colonos brancos, mas os diversos grupos locais realizaram deslocamentos e migrações consideráveis dentro desta região nos séculos passados.

Os Paumari são os únicos habitantes da Terra Indígena Paumari do Lago Manissuã, no entanto nas outras terras dividem o espaço com os Apurinã (nas TIs Caititu, Paumari do Cuniuá, Paumari do Lago Marahã, Paumari do Lago Paricá e Paumari do Rio Ituxi), os Jamamadi (na TI Caititu) e os Katukina (TIs Paumari do Cuniuá e Paumari do Lago Paricá).

Não há dados sobre casamentos interétnicos, salvo em poucas comunidades.

 População

Em 2000, Schröder estimou, a partir de um cruzamento dos dados da Funai, da Opan (Operação Amazônia Nativa), do PPTAL e de suas notas de campo, a população paumari em cerca de 870 indivíduos. Segundo dados posteriores de Bonilla, a população da área do Marahã e do Ituxi era de aproximadamente 620 pessoas em 2002, e de aproximadamente 900 pessoas no total, em todas as Terras Indígenas Paumari.

Em relação às taxas de natalidade e mortalidade, por enquanto, há somente estatísticas de algumas comunidades das Terras Indígenas Paumari do Lago Marahã e Manissuã. Schröder registrou taxas anuais médias de natalidade de 2,6 a 3,8% para os anos 1996 a 2000, dependendo da comunidade.

A antropóloga Luciene Pohl, da Funai, por sua vez, registrou um crescimento da população paumari na região do Rio Tapauá de 127 para 175, de 1985 a 1997, o que corresponde a 37,8% em 12 anos. Pohl também calculou que 62,8% da população paumari daquelas terras são representados pelas faixas etárias de 0 a 20 anos. Em nossos censos, as faixas etárias de 0 a 19 anos representam de 43,3% a 65,9% da população em diversas comunidades.

Em 2009, segundo dados de Bonilla, os Paumari da região do Tapauá (TIs Paumari do Lago Manissuã; Paumari do Lago Paricá e Paumari do Rio Cuniuá) somavam 204 pessoas.

Os dados mais recentes da Funasa (2010) estimam a população total em 1.559 pessoas, incluindo os que se encontram nas cidades no entorno das terras e em áreas apurinã.

 Histórico do contato

O território tradicional dos Paumari, segundo fontes históricas, incluiu margens de rios, lagos e os próprios rios: no médio Purus até a boca do Rio Jacaré, na boca do Rio Tapauá e no Rio Ituxi.

Segundo autores como Rivet & Tastevin e Métraux, eles são descendentes de uma subdivisão dos antigos Purupuru, hoje desaparecidos, que habitavam, no século XVIII, a região da boca do Purus até a foz do Ituxi. Os últimos remanescentes dos Purupuru são mencionados em meados do século XIX entre o lago Jary (Panará-Mirim do Jary) e o rio Paraná-Pixuna, afluente direito do baixo Purus, e na boca do Ituxi. Outra subdivisão antiga dos Purupuru, os Juberi (Jubirí, Yuberí), foi localizada no baixo Tapauá, nas margens do lago Abonini e nas margens do médio Purus antes da boca do Mamoriá-Açu.

Os Paumari encontram-se em contato com os brancos há pelo menos dois séculos. Eles são mencionados em fontes históricas pela primeira vez em 1845. Naquela época, vários grupos já foram explorados na extração de "drogas do sertão" pelo comerciante Manoel Urbano da Encarnação, que controlava o médio Purus.

Em 1847, o naturalista francês Castelnau observou vários grupos paumari do Rio "Oiday" até o Rio Sepatini. Segundo este autor, eles viviam principalmente nas praias e não se dedicavam à agricultura. As habitações principais eram grupos de jangadas, com uma jangada por "família", e a comunicação entre elas era realizada por meio de pirogas. Também havia casas em terra firme. Os Paumari não usavam roupas, mas apenas pintura corporal.

Em 1862, o naturalista alemão Gustav Wallis notou a primeira "maloca" dos Paumari na foz do Rio Jacaré. No Rio Arimã, ele observou 600 Paumari e Juberi, reunidos por Manoel Urbano da Encarnação, fazendo um grande roçado e levantando uma capela, no lugar onde o Frei Pedro da Ceriana tencionara formar a missão.

As primeiras descrições científicas mais detalhadas dos Paumari são do viajante inglês Chandless, que os retrata como pacíficos e alegres, dedicando muito tempo aos cantos. Também os caracteriza como povo aquático, dando-se pouco à agricultura e plantando somente mandioca, macaxeira e banana, mas não produzindo farinha de mandioca, embora gostassem dela e procurassem obtê-la dos comerciantes. Eram bons pescadores e atiradores de flecha, com a qual matavam peixes e tartarugas, mas maus caçadores. A alimentação baseava-se em peixes e quelônios. Numa ocasião, Chandless observou mais de 60 canoas flutuando rio abaixo, à caça de tartarugas, indo em cada uma delas uma mulher remando e um homem de pé, na proa, à espreita do aparecimento de quelônios.

Segundo o mesmo autor, os Paumari viviam a maior parte da estação seca em bancos de areia, construindo "choupanas" de talos de palmeira, quando se demoravam por muito tempo, ou ranchos simples de folhas de palmeira, em forma semicilíndrica. Na época da enchente, no entanto, retiravam-se para os lagos, fazendo suas "choupanas" sobre jangadas ancoradas no meio dos lagos para evitar os insetos.

A própria cidade de Lábrea foi fundada em território Paumari. Estes foram explorados pelo "coronel" Labre, fundador do lugar, como produtores de borracha e fornecedores de peixes, tartarugas e ovos de quelônios. Na época do primeiro ciclo da borracha, as cidades na Amazônia foram iluminadas por lampiões que funcionavam com manteiga e óleo feitos de ovos de quelônios, o que explica o interesse no trabalho dos Paumari como fornecedores desse produto.

Depois das viagens do etnólogo americano Steere na região, entre 1873 e 1901, este descreveu os Paumari como reduzidos por epidemias a umas poucas centenas de indivíduos, levando uma vida nômade ao longo do Purus e vagando de seringal para seringal. E, finalmente, temos os textos do etnólogo alemão Ehrenreich, que localizou grupos nos seringais do Coronel Luiz Gomes, descrevendo-os como maltrapilhos e entregues ao alcoolismo.

No final do século XIX, os Paumari tinham perdido grande parte de seus territórios tradicionais de pesca e caça aos quelônios, porque as praias fluviais foram controladas e exploradas pelos donos dos seringais. Eles perambularam em pequenos grupos e passaram a ser considerados como os índios mais "vadios" da região. A palavra "Paumari" tornou-se naquela época um sinônimo de malandro e preguiçoso.

A despeito destes estereótipos negativos, não se sabe nada de expedições armadas contra os Paumari. Pelo contrário, parece que eles foram integrados no sistema de patronagem sem oferecer maiores resistências ostensivas. Sua mobilidade e sua inconsistência no trabalho talvez fossem suas manifestações específicas de resistência pacífica e sem confrontos.

Se já não se sabe muito sobre a etno-história Paumari do século XIX, as informações sobre ela tornam-se ainda mais raras no século XX. As relações interétnicas com a sociedade envolvente estão marcadas pelos estereótipos citados, que foram mantidos até hoje, e por dependências materiais e assistenciais dos "brancos", os quais são chamados jara. Os estereótipos negativos de serem preguiçosos e inconstantes com relação ao trabalho dificultam as relações econômicas e empregatícias, em particular no meio urbano.

As relações com outros povos indígenas geralmente são pacíficas, embora se possa observar tensões sérias nas relações com os Apurinã em questões de territorialidade, nos casos em que comunidades Paumari e Apurinã são vizinhas nas mesmas terras. Informantes Paumari nas aldeias Santa Rita e Crispinho, na terra Paumari do Lago Marahã, nos falaram que antigamente os Paumari tinham medo dos ataques dos Apurinã e sempre estavam prontos para pular na água e se esconder atrás das jangadas.

 Atividades econômicas

O ciclo econômico anual está marcado pela grande mobilidade dos grupos locais e seus deslocamentos sazonais entre diversas zonas de exploração (terra firme e várzea, praias e castanhais). Ele é determinado pelo regime pluvial regional e pelos níveis de água correspondentes.

A pesca nos rios, igarapés, igapós, lagos e lagoas é a base do auto-sustento. Os Paumari pescam o ano inteiro com técnicas diversas e se alimentam de peixes diariamente. Outros animais aquáticos preferidos são os quelônios ("bichos de casco"), já bastante rarefeitos no médio Purus. A pesca sempre era a atividade mais descrita e pouco se sabe sobre a exploração da terra firme pelos Paumari, já que autores antigos não falam sobre o que os Paumari faziam nos meses de escassez de peixes.

A agricultura é praticada tanto na várzea quanto na terra firme, sendo a mandioca a principal planta cultivada. A agricultura desempenhava um papel irrelevante nos textos antigos sobre os Paumari, mas a expedição dos biólogos norte-americanos Ghillean Prance, David Campbell e Bruce Nelson à região do Lago Marahã revelou uma situação contrária, por descobrir mais de 14 variedades de mandioca nas roças, o que não se esperava de uma etnia caracterizada como nômade. O antropólogo Peter Schröder (autor deste verbete) e o ecólogo Plácido Costa Júnior, no entanto, levantaram informações sobre 28 variedades plantadas. Além da mandioca, os Paumari plantam até mais de 30 culturas diferentes, como macaxeira, cará, batata-doce, ariá, taioba, milho, maxixe, feijão, jerimum e uma série de fruteiras e palmeiras.

Os Paumari contemporâneos, além de ser agricultores, também cultivam diversas fruteiras, legumes e plantas medicinais nos quintais. Eles também coletam uma série de frutas silvestres para o autoconsumo e matérias-primas (principalmente cipós e enviras) para a construção de casas, embarcações e a fabricação de diversos objetos . Bebidas são produzidas com frutos de palmeiras (como açaí, bacaba ou patauá) e a castanha-do-pará também é apreciada como alimento. Os Paumari não são conhecidos como bons caçadores, embora se saiba que eles caçam esporádica e espontaneamente, principalmente no caso de encontrar algum animal, quando saem para pescar.

Como esse povo mantem relações permanentes com a sociedade envolvente e se tornou dependente de seus produtos materiais, diversas atividades são voltadas para a comercialização de produtos pesqueiros (peixes e quelônios) e extrativistas (castanha-do-pará, copaíba, sorva, látex e madeiras-de-lei) em troca de bens industrializados básicos (alimentos, têxteis, ferramentas, motores, combustíveis e outros).

Nestas relações, muitas vezes não recebem dinheiro nenhum, sendo explorados de forma escandalosa por regatões nas trocas de produtos. Nos círculos viciosos desses sistemas de patronagem, muitos Paumari contraem grandes dívidas e as famílias não conseguem quitá-las ao longo dos anos, mesmo pagando com toda a sua produção. Em razão desse endividamento, diversos Paumari são obrigados a ceder um lago ou uma lagoa para algum não-indígena interessado na sua exploração ou abrir mão da exploração madeireira das florestas.

Nos últimos anos, porém, surgiram diversas restrições à venda ou troca de produtos com os quais os Paumari costumavam ter facilidade de trabalhar, tanto pela fiscalização mais eficaz de diversos órgãos governamentais, quanto pela superexploração de alguns dos recursos explorados. Além disso, a extração da borracha e da sorva entraram numa crise grave no início dos anos 1980, obrigando vários Paumari a buscarem alternativas de produtos que podiam ser comercializados. Assim, muitos começaram a se dedicar mais à agricultura.

 Organização social e política

Os viajantes e outros observadores do século XIX caracterizaram as habitações lacustres da época chuvosa como as moradias típicas dos Paumari, porque chamaram mais sua atenção. Estas balsas ou jangadas com casas flutuavam no meio dos lagos e lagoas com o objetivo de ficar mais ou menos protegidas de insetos como os "piuns". Por isso, também foram chamadas de "flutuantes".

Cada aldeia estava composta de 8 a 15 casas com uma ou duas famílias em cada uma. O lugar do fogo encontrava-se em terra firme, mas nas proximidades da margem do lago. Outras habitações menores da estação seca muitas vezes ficaram despercebidas, como os ranchos simples de folha de palmeira, em forma semicircular, nas praias fluviais.

Contrário à imagem de nomadismo fluvial, Steere também fala de aldeias permanentes, ocupadas na estação chuvosa, onde eram conservadas tartarugas vivas em cercados feitos de estacas.

Hoje em dia, os "flutuantes" representam um tipo minoritário de habitação paumari. Ainda é possível encontrar "flutuantes" no lago Marahã e no rio Tapauá. A grande maioria dos Paumari, no entanto, mora, pelo menos uma parte do ano em casas do tipo regional, o que implica em maior exposição às pequenas "pragas" cotidianas, como os piuns e mutucas.

O tamanho dos grupos locais pode variar de casas isoladas a aldeias com mais de 20 casas.

A organização social e política dos Paumari foi pouco estudada até agora. Steere é o único autor que menciona a divisão dos Paumari em vários clãs.

Os grupos residenciais são ou famílias nucleares ou grupos familiares extensivos (casal, filhos, genros, noras e netos), incluídos, às vezes, também os filhos que um dos pais teve de um casamento anterior.

Os irmãos consanguíneos geralmente não vivem juntos no mesmo grupo residencial depois do casamento, embora procurem construir sua casa perto dos outros. Esta regra, no entanto, não vale para as irmãs. Adultos solteiros costumam viver com a família de um irmão. Jovens que só têm um pai vivo geralmente vivem com ele.

Tradicionalmente, havia preferências de casamento com primos cruzados. Diferente de outras sociedades indígenas na Amazônia, o genro já faz trabalhos para o sogro futuro antes do casamento. As regras de residência pós-núpcial são complicadas: com a família da mulher (uxorilocal) no primeiro mês, depois com a família do homem (virilocal) por mais um mês e, posteriormente, mudanças constantes de até dois anos entre as famílias dos sogros de um e de outro cônjuge até o nascimento do primeiro filho. Estas mudanças podem continuar até o nascimento do segundo ou terceiro filho, quando geralmente o casal opta uma residência própria (neolocalidade). Nestes anos, o casal não precisa morar necessariamente na casa de um dos sogros, mas pode construir a sua ao lado dela. Se uma parte do casal dos cônjuges é órfão de pai, de mãe ou de ambos, as regras de residência pós-nupcial são mais complicadas.

Quanto às fases culturalmente marcadas do ciclo de vida, hoje em dia vale destacar principalmente a mudança das meninas do status de criança para o de adulto. Quando aparece a primeira menstruação, elas têm que se retirar para uma casinha de reclusão construída ao lado da casa da família ou dentro dela. Neste caso, ela é feita apenas por uma grande esteira enrolada em forma de uma tenda cônica. Nesta casinha de reclusão, a menina deve permanecer de sete meses até um ano inteiro, sendo atendida pela mãe ou outros membros da família. Ao contrário de outros povos da região, os Paumari contemporâneos permitem que essas meninas sejam vistas por homens e até serem fotografadas. A fase da reclusão termina com uma festa grande da aldeia inteira que dura vários dias. Para os meninos não existe mais nenhum ritual de passagem, sendo a mudança de voz o indicador de mudança de status de criança para o de adulto.

A organização política dos Paumari está passando por grandes mudanças. Como antigamente eles não conheciam a função destacada de liderança dos grupos locais, havia um tipo informal de chefia a ser assumida pelo mais velho dos casados. Muitas comunidades atuais ainda não têm verdadeiros "caciques" e podem ser caracterizadas como acéfalas. Ao alto grau de mobilidade das famílias e a decomposição e recomposição fácil das comunidades dificultam consideravelmente o estabelecimento de poderes locais. Mas a sedentarização crescente das comunidades, por um lado, e as demandas externas tanto da política indigenista quanto do associativismo moderno, por outro lado, estão mudando esta situação.

 Casas e canoas

As casas são do tipo regional, construídas sobre palafitas. Para subir, coloca-se uma escada de madeira ou um tronco com pequenos entalhes, capazes de dar apoio aos pés. As residências podem ter um ou dois compartimentos. Se tiver dois, usa-se um para dormir e se reunir e o outro como cozinha. Este tipo de casa é mais usado na época da cheia, quando se precisa cuidar das roças, enquanto é possível encontrar muitas delas desocupadas no verão.

Os "flutuantes" atuais são balsas com o mesmo tipo de casa, porém sem palafitas. Por causa das toras grossas que as sustentam, eles são de difícil remoção e permanecem amarrados por longas temporadas na beira de lagos, acompanhando somente as mudanças dos níveis de água. Eles podem ser removidos, dependendo da vontade dos moradores, mas trata-se de um empreendimento muito árduo. Este tipo de habitação permanente não impede seus moradores de exercerem suas atividades em terra firme.

Habitações temporárias são pequenos ranchos ou tapiris, construídos principalmente com material de palmeiras, para deslocamentos em curto prazo, seja para as praias fluviais, seja para a coleta de castanha-do-pará ou outros produtos florestais.

As embarcações tradicionais eram canoas de uma só peça, com 3,5 a 4,5 m de comprimento, cortadas rente na frente e com os lados verticais. As pás dos remos eram de forma oval e pontudas. Canoas e remos contemporâneos conservaram estas formas.

 Aliança e casamento

Como é comum na Amazônia, o casamento é concebido como um empreendimento arriscado, mas necessário. Idealmente, os Paumari dizem que é preciso casar-se com um primo “de verdade” ou “legítimo”, isto é, um primo cruzado bilateral, da mesma aldeia ou de um grupo local próximo. Agora, esse ideal ainda é afirmado, mas os casamentos distantes, entre habitantes paumari de regiões diferentes, são muito comuns.

Há basicamente duas formas de iniciar o processo da aliança entre os Paumari. O primeiro, ideal, é o do namoro formal. Antigamente, os casamentos entre primos eram arranjados pelos pais desde o nascimento da criança e eram selados definitivamente no final do rito de puberdade da moça, quando ambos podiam passar a viver juntos na casa dos pais de um ou de outro. Após o ritual, o jovem casal se instalava na casa dos pais do marido ou da esposa e lá passava uma temporada de vários meses ou anos. Após essa primeira temporada, passavam mais um tempo junto dos pais do outro cônjuge, podendo construir sua própria casa só após o nascimento de vários filhos. O homem recém-casado deve a seus sogros, os pais de sua esposa, uma série de serviços pela filha que estes lhe cederam. O casamento era, e ainda é, um processo longo, pois o casal não é considerado estável até gerar vários filhos e o “serviço da noiva” ser amplamente cumprido.

No presente, os casamentos não são arranjados como antigamente e dependem mais da vontade dos jovens. Estes começam a namorar, enviando-se bilhetes e encontrando-se às escondidas. Quando o namoro se torna oficial, passam a se evitar de forma quase caricatural, sem se falar, sem se olhar, sem serem vistos em público etc. Esse período é marcado por uma grande tensão entre as duas famílias implicadas na aliança. Isso dura uns meses até que o casal se junta e a tensão baixa progressivamente. Passam então a viver com os pais de um ou de outro, seguindo o mesmo esquema tradicional de residência alternada seguida de neo-localidade.

Outra forma comum de casamento é a fuga do casal. Casais de amantes, ou jovens solteiros cujos pais não concordam com a união, fogem da aldeia e vão morar em outro grupo local distante, na cidade ou em outra região. Essas uniões são bastante comuns, mas são condenadas e arriscadas já que os pais da mulher podem exigir os filhos do novo casal em contrapartida, pois considera-se isso praticamente como um rapto. De fato, nestes casos, é raro que o serviço da noiva seja cumprido. Quando esses casamentos não dão certo, os filhos são geralmente dados em adoção a seus avós maternos (e/ou paternos).

A adoção de netos por avós é algo marcante na organização social paumari. Trata-se de uma relação central na cosmologia e na mitologia do grupo, que é fundamental para a reprodução interna dos grupos e apresenta uma forma particular de inversão do modelo clássico amazônico da captura de crianças por vingança ou compensação. A relação paradigmática da adoção para os Paumari é a dos netos pelos avós, mas ela também marca a relação entre os xamãs e seus espíritos auxiliares, entre os padrinhos e os afiliados, entre os empregados e seus patrões no contexto econômico, entre os espíritos e as almas capturadas no contexto xamânico etc.

 Religião e xamanismo

A religião nativa é um dos aspectos menos conhecidos da cultura paumari. Sob a influência missionária, ela está recuando e até ameaçada de desaparecimento numa série de aldeias. Sabe-se muito pouco da mitologia, do xamanismo e das festas, embora muitas lendas e outras histórias sejam coletadas pelas missionárias do SIL e transcritas para o uso escolar.

Práticas xamânicas ainda existem em muitas aldeias, em geral de forma camuflada, mas já não se fala muito delas. Antigamente, porém, os xamãs eram altamente conceituados nas comunidades e costumavam curar as moléstias sugando a parte do corpo doente. Depois disso, entranhavam-se na floresta, provocando vômitos e então retornando à aldeia com pequenos animais e objetos, alegando terem sido extraídos do paciente no ato da cura (Cf. Felix 1987).

Nos momentos que precedem o ritual de cura, o pajé faz uso do rapé. Este estimulante é preparado com as folhas da vinha Bignomiaceae (Tanaeciuma nocturnum), que têm um gosto amendoado, quando mastigadas. Para preparar o rapé, tiram-se as folhas verdes, que são torradas até ficarem secas, o que dá a base para um pó fino que é guardado num ouriço de castanha-do-pará. Depois, esse pó é peneirado e misturado com rapé de tabaco, preparado da mesma forma. Esta mistura é chamada koribo-nafoni e somente é usada pelos pajés em ocasiões especiais, como, por exemplo, antes do tratamento de pacientes, em rituais para proteger crianças ou nos rituais de puberdade das meninas.

E, a despeito da diminuição do xamanismo, o rapé continuou gozando de popularidade muito grande entre os Paumari. Há dois outros tipos de uso cotidiano. Um é feito de tabaco, às vezes misturado com cinza de cascas de árvores. O outro, chamado kavabo, é feito da casca da virola elongata. Raspa-se a parte externa da casca com um terçado, torrando-a e secando-a por cima do fogo. Depois é pulverizada num pilão feito do ouriço da castanha-do-pará.

O rapé era inalado tradicionalmente por meio de um par de ossos ocos que eram amarrados lado a lado com um fio de algodão. Suas extremidades eram arredondadas igualmente com cera para adaptá-las às narinas. Hoje em dia usam-se também os tubinhos de canetas de que foram tiradas as cargas.

As mulheres geralmente não usam rapé, mas tomam o koribo em outra forma, fazendo um chá da casca da raiz, que é fermentada na água. Este chá produz um efeito de entorpecimento.

 Sociocosmologia

A proximidade geográfica, linguística e cultural dos grupos arawá permitiu que se considerasse esses grupos como um conjunto. Até recentemente, esse conjunto arawá tinha sido pouco estudado por etnólogos. Algumas monografias apontavam para um tipo de configuração social parecido com a dos vizinhos Katukina e Pano, isto é, formações fluidas sem fronteiras fixas, formadas por um conjunto disperso de subgrupos nomeados e localizados, idealmente endógamos. Trata-se da configuração sociológica que, autores como Rivet e Tastevin, descreveram como “clãs” e que mais tarde seriam melhor descritos a partir das etnografias sobre a organização social kulina. Essa forma de organização social em subgrupos localizados e nomeados a partir de nomes de espécies animais ou vegetais ficou conhecida com o seu nome kulina: madiha.

As primeiras descrições mais detalhadas que forneciam algum elemento sobre a organização social paumari remontam aos textos de Rivet e Tastevin e Steere. Estes autores são os únicos a descrever os Paumari como divididos em clãs nomeados a partir de espécies animais, e com a expressão “ka-paumari”, tais como o Povo da Lontra (Sabou ka paumari); o Povo do Jacaré (Kasii ka paumari); o Povo do Urubu (Majuri kapaumari) e o Povo da Queixada (Hirari ka paumari).

Hoje não há rastros de uma organização desse tipo e os Paumari não têm memória desses subgrupos. Entretanto, evocam essas divisões quando se referem à segmentações sociocosmológicas, ou seja, a sua visão do mundo e às divisões sociológicas que o organizam. Todas as espécies animais e vegetais, assim como os objetos, são potencialmente humanos e possuem uma forma humana (-kapamoarihi), invisível aos olhos dos Paumari, e que só os xamãs são capazes de enxergar. Elas estão organizadas em grupos ou subgrupos que coincidem em uma larga medida com a lógica do “madiha”. Assim, os subgrupos citados pelos primeiros etnógrafos, como o Povo da lontra (Saba’o kapamoarihi) ou o Povo do jacaré (Kasi’i kapamoarihi) são as “formas humanas” dessas espécies, que são gente e se casam entre si, fazem suas festas e plantam suas roças, assim como o fazem os Paumari. Seguindo essa lógica, todas as entidades que povoam o mundo são potencialmente humanas e sociais, organizadas em subgrupos nomeados, localizados, idealmente endógamos, que se vêem e se percebem como humanas e vêem e percebem os outros como não-humanos (animais, almas ou objetos). Inúmeros relatos contam histórias sobre casamentos fracassados entre "subgrupos" de espécies diferentes e entre humanos e não-humanos.

Assim, mais do que um conceito sociológico fixo, as expressões que os primeiros etnógrafos traduziram como clãs ou subgrupos evocam termos relacionais usados para situar espacial e cosmologicamente diferenças, para estabelecer diferenças em um contínuo relativamente homogêneo de humanidade. Assim, quando os Paumari se referem hoje ao Povo da Lontra, eles estão se referindo à vida social da espécie “lontra” e às suas eventuais relações com a humanidade paumari.

 A pessoa

O corpo (abonoi) compõe-se de elementos materiais visíveis: a carne (imani), o sangue (amani), os ossos (jaroni), a pele (asafi). Os elementos imateriais são a sombra (amokhini) que é visível por todos, e dois tipos de imaterialidade: a alma (abonoi ou mao’nahai) e o espectro (baja’di) visíveis em algumas condições pelos xamãs e que se desprendem dos elementos materiais e do invólucro corporal depois da morte.

Esses elementos materiais e imateriais podem passar por diferentes transformações ao longo da vida e após a morte. Após a morte, o espectro permanece vagando na terra à procura de seus parentes. Enquanto a alma segue para o Lago da Renovação, destino pos-mortem dos Paumari, onde todos levam uma vida ideal, dançando e cantando incessantemente, onde reina a fartura, onde não há doenças nem mortes etc.

A alma dos Paumari evangélicos segue para o paraíso cristão, enquanto outras ainda escolhem seguir viagem com os espíritos meteorológicos da chuva ou do sol. Esses espíritos circulam no rio de cima (o céu é um rio que circula no sentido contrário do Purus) e comandam uma grande frota de barcos que asseguram o ciclo das chuvas e das secas no nível terrestre, carregando e descarregando água.

 Rituais

Ihinika

No nascimento, a criança paumari tem de ser submetida a uma série de rituais chamados ihinika.
O ihinika consiste na apresentação da alma da criança aos espíritos dos alimentos. Após o parto, mãe e filho não podem consumir nenhum alimento antes de que seja realizado seu ihinika, sob pena de adoecerem muito rapidamente, pois considera-se que os alimentos passam pelo leito materno.

De fato, quando essa proibição não é respeitada, a alma da criança é imediatamente capturada pelo espírito alimentar. A criança paumari, no mundo visível, adoece e pode vir a falecer.

A vida é concebida como uma inevitável sucessão de capturas da alma da pessoa pelo espírito dessas entidades potencialmente humanas. Assim, os rituais têm como função principal a preservação dessa alma para assegurar sua relativa longevidade. Os ihinika são rituais preventivos, procuram evitar que a ingestão de um alimento provoque a doença e/ou a morte. Além disso, o consumo de alimentos ao longo da vida provoca o acúmulo inevitável de resíduos alimentares nos corpos dos vivos, é isso também que provoca o envelhecimento e a morte.

Quando a criança é concebida, ela recebe um primeiro nome, que lhe é dado a partir do nome do alimento ingerido (ou intensamente desejado) pela mãe no dia da concepção ou nos dias consecutivos a esta. Após o parto, a mãe procura se alimentar exclusivamente de caldo de peixe, farinha e peixes considerados “leves”, até o início dos ihinika. Na medida em que estes vão sendo realizados, ela vai reintegrando os alimentos a sua dieta.

Amamajo

A vida feminina é marcada por uma extrema ritualização. Além de ser submetida aos ihinika quando criança, a mulher tem de passar por eles cada vez que dá a luz. Além disso, ela passa por outro ritual, o amamajo, que pode ser considerado como um tipo de ihinika, e que consagra a sua saída de reclusão.

No momento da primeira menarca, a moça paumari entra em reclusão. Ela não pode ser vista pelos homens e deve evitar o contato direto com o chão. Para isso, ela fica protegida debaixo de uma esteira confeccionada especialmente para a ocasião e que respeita sempre o mesmo formato e desenho de ‘rabo de onça’. Quando precisa sair de sua casinha, ela é carregada nas costas por alguém de sua família.

A reclusão pode durar vários meses, porque tradicionalmente a festa que consagra a saída das moças é sempre realizada na mesma época: no início da vazante, o que corresponde ao início do verão amazônico no Purus (maio-junho). Durante esses dias, semanas ou meses, o xamã cuida da moça e supervisiona os cuidados que a família tem de ter com ela: ela não pode ingerir qualquer comida, nem sair sozinha, descalça ou ser vista por homens. Sua pele tem de ficar bem clara, e é por isso que ela procura ficar sempre protegida pela esteira. Quanto mais branca ela fica, mais linda ela estará no dia da sua saída.

Antigamente, os Paumari se casavam nesta mesma ocasião. De fato, durante a noite do ritual, os rapazes devem carregar as moças nas costas, dançando o maior tempo possível. Aquele que aguentava mais tempo com a moça nas costas tinha muitas chances de se casar com ela. Muitas vezes, o casamento era arranjado pelas famílias antecipadamente. Hoje em dia, essa prática foi abandonada, porém, o ritual permanece e os rapazes ainda dançam a noite toda, carregando as novas mulheres da comunidade.

Nessa ocasião, os homens fazem expedições de pesca para garantir a fartura de comida trazendo muitos peixes e tartarugas. Já, as mulheres, preparam os beijus rituais que serão distribuídos aos convidados no final da festa. Antes do início da festa, homens, mulheres e crianças decoram os beijus com carvão e goma de mandioca. Os desenhos representam diversos peixes, espinhos de tambaqui e ossos de peixe-boi, costas de tartaruga e peles de onça. Também fabrica-se o kojahari, mingau de banana, que será servido aos espíritos que visitam os Paumari ao longo da festa.

As melhores desenhistas pintam o corpo das moças com uma mistura de urucum e jenipapo. Os desenhos realizados no corpo da moça não variam, assim como não varia a forma e o desenho do chapéu ritual que simboliza o ‘peito do peixe-boi’.

O peixe-boi é um animal central na alimentação e nas representações simbólicas dos Paumari. Antigamente, quando havia muitos peixes-boi nas águas do Purus e de seus lagos, ele representava a comida por excelência. É sem dúvida o prato mais apreciado junto com as tartarugas e os tracajás. Hoje em dia, esses alimentos escasseiam por causa de sua exploração não-sustentável por pescadores e barcos de pesca comercial, principalmente.

Depois da noite de dança, a moça sai definitivamente da reclusão. Ela se senta em uma esteira, do lado de fora da casa ritual. Os participantes se paramentam como queixadas (com folhas e fibras de palmeiras) e dão um banho nela com água e uma substância mágica que a protegerá contra maus encontros na floresta.

Para finalizar a festa, várias “brincadeiras” são organizadas: a dança do sol, a chegada dos predadores (bonecos ou representações de onça, cobra, sucuri, arraia, morcego) e do branco (Jara) que perseguem a moça e têm de ser dominados e destruídos pelas mulheres. Tratam-se de “brincadeiras” porque elas são vividas com alegria e descontração, mas formam uma parte importante do ritual e sua realização garante também longevidade à moça. No fim, todas as figuras são retalhadas em pedaços miúdos pelos homens.

Assim, termina o ritual amamajo, que representa e assegura o equilíbrio do universo social paumari: fertilidade, longevidade, socialidade e a garantia da alternância das estações são as condições de vida mínimas que devem ser preservadas.

Esse ritual quase desapareceu há meio século atrás. Os Paumari haviam sofrido baixas muito importantes por causa de epidemias e doenças e era difícil se reunir anualmente. Desde a demarcação das terras, o ritual vem sendo organizado regularmente, mesmo que com dificuldades certas vezes, principalmente por causa da falta de motivação e da dificuldade enfrentada pelos homens para pescar ou caçar quantidades suficientes para a ocasião. Na região do Tapauá esses rituais não são mais realizados, principalmente porque não há mais xamãs vivos que poderiam assegurar a sua organização. Mas alguns jovens estão manifestando muito interesse, não somente pela reapropriação da língua nativa, mas também pela retomada dos rituais e do xamanismo tal como ele ainda é praticado nas outras áreas.

 Arte gráfica

Os motivos da pintura corporal e dos objetos rituais do amamajo são apenas uma mostra da riqueza da arte gráfica paumari. Esta se manifesta mais comumente na confecção da cestaria, arte exclusivamente feminina.

A cestaria paumari (rabahi) é confeccionada com palha de arumã e o talo de bacaba é usado para tecer os motivos gráficos. A envira também é utilizada, sendo enterrada para adquirir um tom mais escuro. A particularidade da cestaria paumari, além de seus desenhos, é a forma do que os Paumari chamam de “começo” (kamadani) do cesto, uma base quadrada a partir da qual vão tecendo sua estrutura arredondada.

Os desenhos mais comuns são os dos motivos: “rabo de onça”; “costela de tartaruga”; “espinho de peixe”; “costas de jabuti”; “carne de tambaqui”; “espinhaço do peixe-boi”; “pescoço de garça-maguari”, entre outros.

As mulheres também confeccionam para venda anéis de coco, colares de diversas sementes, e outros produtos de palha como abanos, esteiras, tipitis para venda e uso pessoal.

Além dos objetos de uso cotidiano, como remos, canoas, arcos, arpões etc. que também podem ser vendidos, os homens são mestres na arte de esculpir madeira e confeccionam miniaturas de canoas (com todos os instrumentos de pesca), animais, aves e peixes de madeira.

 Nota sobre as fontes

Em 2007, a etnóloga Oiara Bonilla defendeu uma tese de doutoramento sobre os Paumari do Médio Purus (nas TIs Lago Marahã e Rio Ituxi) e prossegue sua pesquisa com os Paumari do Lago Marahã e da região do Tapauá. Publicou vários artigos etnográficos, sobre a organização social, a cosmologia, a concepção do espaço e da mobilidade e as relações com as missões evangélicas.

Larissa Menendez da Pontifica Universidade Católica de São Paulo realizou uma pesquisa de doutorado sobre a cestaria e a arte paumari na região do Tapauá. Em 2010, Angélica Maia iniciou pesquisa de mestrado sobre as relaçoes entre os Paumari e seu ambiente aquático. William Chandless, Paul Ehrenreich, Gustav Wallis, e mais recentemente Gunter Kroemer, Mary Ann Odmark, Ghillian Prance, Luciene Pohl e Peter Schröder oferecem informações etnográficas parciais.

A língua paumari, no entanto, foi muito bem estudada e há publicações numerosas e análises detalhadas, acompanhadas de material didático diversificado. Entre elas destacam-se as publicações de Shirley Chapman, Desmond Derbyshire, Meinke Salzer e Beatrice Senn.

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Pankaru

Toy Art Pankaru

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
160PankaruPankararu-Salambaia
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
BA179Funasa 2006


Como muitos outros grupos na região Nordeste do Brasil, os Pankaru tiveram sua identidade indígena reconhecida pelo Estado, bem como a homologação de suas terras apenas no início dos anos 90. Sua trajetória foi pontuada por uma sucessão de conflitos fundiários com grileiros e posseiros, que ainda não foram totalmente resolvidos. Além de um histórico de opressão e marginalização pela sociedade não-indígena, os Pankaru têm em comum com os demais grupos indígenas chamados "emergentes" o ritual secreto do "Toré", marca de identidade e resistência cultural.

 Nome

Antes de se auto-denominarem Pankaru, os indígenas da Aldeia Vargem Alegre, localizada na Agrovila 19 (criada pelo INCRA), município baiano de Serra do Ramalho, eram conhecidos como Pankararu-Salambaia. Em fins de 1980, resolveram mudar de nome para diferenciar-se dos Pankararu que habitam no lado pernambucano do Vale do Baixo-Médio São Francisco (Petrolândia, Itacaratu). Segundo o cacique Alfredo José da Silva Pankaru, a mudança se fez necessária porque os órgãos governamentais confundiam as duas comunidades. Desse modo, as melhorias solicitadas pela comunidade da Agrovila 19 eram, muitas vezes, encaminhadas para os Pankararu de Pernambuco, há muito tempo reconhecidos pelas autoridades constituídas.

 Língua

Como todos os indígenas do Nordeste, à exceção dos Fulni-ô, os Pankaru atualmente falam unicamente o Português. Somente o velho patriarca Apolônio Kinane falava a língua dos Pankararu, mas não a ensinou aos filhos. Entretanto, segundo o cacique Alfredo José da Silva Pankaru, durante o toré, "praticado nas matas", alguns vocábulos da língua ancestral são pronunciados no entremeio das cantorias.

 Localização
Em 2003, a pequena comunidade pankaru compreendia um conjunto de 14 famílias que se dividia entre a Agrovila 19 e a Aldeia Vargem Alegre, transferida do "centro" para a "boca" da mata de Serra do Ramalho, distante aproximadamente 2 Km da citada agrovila. O município de Serra do Ramalho, emancipado de Bom Jesus da Lapa em 1989, fica localizado no oeste baiano, em região semi-árida à margem esquerda do Rio São Francisco, região que no passado era denominada de Além São Francisco.

A sede do município de Serra do Ramalho dista de Salvador 845 Km e 40 Km de Bom Jesus da Lapa. A Agrovila 19, onde se encontra a Aldeia Vargem Alegre, está distante da sede municipal (Agrovila 9) 22 Km e do Rio São Francisco aproximadamente 30 Km.
Território Pankasrú

Antes da criação e implementação do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho (com o qual o Incra criou as Agrovilas), a região era praticamente toda ocupada por uma mata complexa e virgem (Mata Caatingada, Cerrado e Vegetação Hidrófila), possuindo uma grande mancha formada de espécies nobres, tais como o ipê, o cedro, a aroeira, a baraúna etc. A terra era fértil para lavoura e com pastos para o gado. Além dos rios perenes - São Francisco, Carinhanha, Formoso e Corrente -, na encosta da Serra corriam riachos e córregos intermitentes.

No passado, a região era vista pelas populações sertanejas como uma espécie de oásis, ao qual recorria grande parte dos flagelados das constantes secas que acometem o Nordeste, sobretudo aqueles vindos da Serra Geral e da Chapada Diamantina, sendo considerada como menos árida, recoberta por matas frondosas e ricas em espécies animais.

Além das famílias de Serra do Ramalho, outras famílias pankaru vivem em Jandira, município da Grande São Paulo; uma família vive em Goiás; sete famílias vivem em Muquém do São Francisco -BA, município localizado também à margem esquerda do Rio São Francisco [dados de 2003].

 População

A comunidade Pankaru é pouco numerosa. Em 2003 estimava-se que viviam, em Serra do Ramalho, 14 famílias, aproximadamente 87 pessoas. Serra do Ramalho apresenta um dos mais baixos IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) entre os municípios baianos, com taxas de natalidade e mortalidade bastante altas.

O longo histórico de contatos dos Pankaru, bem como o reduzido número de famílias da comunidade, estimularam as relações interétnicas, inclusive com membros da sociedade não-indígena. Depois da implantação do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho e do reconhecimento da comunidade indígena, a rede de contatos dos Pankaru foi ampliada e, além dos "irmãos Pankararu", mantiveram estreitos laços com os Kiriri da Passagem (habitantes de Muquém do São Francisco, na Bahia), com os Tuxá (município de Ibotirama, na Bahia) e com os Atikum (Pernambuco). Os descendentes do pajé Apolônio buscaram nos membros desses grupos étnicos os parceiros ideais para o namoro e o matrimônio.

 Histórico do contato
Remontar os primeiros contatos dos atuais Pankaru com membros da sociedade não-indígena é tarefa das mais difíceis, sobretudo quando não se sabe sequer a qual tronco lingüístico eram filiados. Grupo étnico recentemente diferenciado, os Pankaru ainda não contam com estudos etnográficos e documentos históricos versando sobre aspectos da história do grupo são desconhecidos. É provável que a família do ex-pajé Apolônio Kinane seja remanescente dos aldeamentos indígenas patrocinados pelas sucessivas missões religiosas instaladas no Vale do Baixo e Médio São Francisco, entre os séculos XVII e XVIII.

A região de Serra do Ramalho teve seu povoamento ligado à expansão bandeirante. Os bandeirantes empreenderam feroz caçada aos índios na região e dali partiram em direção às Minas Gerais para a chamada Guerra dos Emboabas. A área estava ligada à produção da pecuária extensiva e atividades mineradoras.

Hoje, a população regional é predominantemente mestiça, sobressaindo os "caboclos" e os remanescentes de quilombolas. Mas a história oral também aponta a presença de indígenas, como atesta o depoimento coletado pelo padre João Evangelista de Souza (s/d, 52-53): "Aqui tinha muito índio também; na serra, até hoje, tem muito escrito de índio; nós já achou panela, pote, prato, cachimbo, tudo de barro cozido, enterrado nesses matos. Os índios moravam qui, depois eles sumiram pro alto da serra. Eu vi uma panela toda pinicadinha de unha, muito bonita: era uma aldeia deles; a gente encontra escritos e desenhos nas pedras das grunas. Ali pro lado do Morro Redondo, tem uma gruna com a porta fechada com uma parede de barro; cheia de escritos nessa porta; ninguém nunca conseguiu quebrar pra ver. Deve ter muita coisa de índio escondido lá dentro. Os índios povoaram aqui e, depois, foram sumindo pra fora. No meio da rua, Olímpio, quando foi fazer a casa, tirou um pote de terra, cheio de ossos de gente: os índios enterravam os seus mortos assim: separavam as juntas todas e entulhavam dentro de um pote. Esses sarcófagos e esses ossos a gente ainda encontra enterrado por aí, é só caçar".

Embora dêem destaque aos resquícios da presença indígena na região de Serra do Ramalho e Carinhanha, as publicações do Pe. João Evangelista de Souza não registram a presença dos Pankaru no local. É difícil precisar os grupos indígenas que viviam na área que hoje compreende o município de Serra do Ramalho. Tudo indica que eram do tronco Macro-jê e, com certeza, foram exterminados e ou afugentados, à medida que a pecuária se expandia pelo Vale do Rio São Francisco.

Trajetória do líder pankaru

Também não é tarefa fácil resgatar a etnogênese - processo de diferenciação étnica – dos Pankaru ou sua história recente. A representação da história contemporânea dos Pankaru é marcada por descontinuidades, elaborações e reelaborações empreendidas pelo pajé Apolônio e sua família, visando atender os interesses e as conveniências do grupo.

Na representação dos Pankaru, os constantes deslocamentos do patriarca marcaram a resistência e a luta pela territorialização, forjando a identidade familiar e grupal. Assim, a etnogênese da comunidade Pankaru está fortemente entrelaçada à saga do patriarca e pajé Apolônio, recentemente falecido.

Segundo depoimento do cacique José Alfredo da Silva Pankaru, a saga do pajé Apolônio teria começado muito cedo. Na primeira década do século XX, adolescente, deixou o Lero - povoado onde teria nascido -, localizado a seis léguas de Salambaia, região do agreste pernambucano. Depois de perambular por vários municípios de diferentes estados do Nordeste, travou contato com os Pankararu da Aldeia de Brejos dos Padres, município de Tacaratu (PE). De acordo com o antropólogo José Augusto Laranjeira Sampaio (1992/3:9), "Já casado com D. Maria, uma alagoana que conhecera na Paraíba, decidiu fixar residência nas proximidades da área indígena onde deixava a família enquanto prosseguia suas viagens. De inequívoca origem indígena, eram aceitos como 'parentes' pelos índios locais". Alguns anos mais tarde, segundo Alfredo José Pankaru, desentendeu-se com o cacique e partiu em direção a Paulo Afonso - Bahia.

Na localidade, Apolônio trabalhou, em princípios de 1950, nas obras da Usina Hidrelétrica construída pela CHESF. Em seguida, partiu para trabalhar na Usina Hidrelétrica de Correntina-Bahia, como vigilante. Encantado com existência de mata fechada na região da Serra do Ramalho, visando ali se estabelecer, retornou, imediatamente, a Paulo Afonso para buscar a família. Segundo a filha Rosália, a viagem de Paulo Afonso à Serra do Ramalho foi penosa e durou vários meses.

Na representação Pankaru, Apolônio Kinane adentrou a mata à procura de uma comunidade indígena denominada Morubeca que sabia viver nas proximidades da Serra do Ramalho, município de Bom Jesus da Lapa-BA, com a qual acreditava ter laços de parentesco. Quando chegaram à região, os indígenas procurados já não mais se encontravam no local. Haviam sido expulsos por grileiros, ganhando as picadas e se estabelecendo, segundo o informante, em território goiano.

A chegada dos Pankaru à Serra do Ramalho coincidiu com a exploração de minérios na região. Na representação indígena, foi o patriarca Apolônio quem descobriu minério na Serra Solta (florita), em fins dos anos 50, recebendo em recompensa do prefeito municipal de Bom Jesus da Lapa, Antônio Cordeiro, área na qual havia se estabelecido.

Em princípios de 1970, o extremo sudoeste da Bahia tornar-se-ia palco da ação de inúmeros grileiros. Um decreto presidencial, publicado em 1973, declarava a região do Médio São Francisco prioritária para desapropriação. A medida se fazia necessária por causa da desapropriação não só da área da Barragem de Sobradinho, mas também da área onde seria reassentada a população desabrigada. Diante da possibilidade de serem indenizados, os grileiros começaram a atuar na região, tentando expulsar a população local desprovida de título de propriedade.

As terras devolutas ocupadas pela família do patriarca Apolônio passaram a ser reivindicadas por um fazendeiro originário de Permanbuco, atormentando o indígena e sua família, bem como os poucos posseiros que viviam na área. Instalou-se em Serra do Ramalho um clima de terror, pois, visando expulsar os posseiros, o grileiro ameaçava derrubar e queimar suas benfeitorias, contando com a conivência das autoridades de Bom Jesus da Lapa.

Alguns anos depois, o grileiro "vendeu a questão" (o litígio), ou seja, passou as terras para um fazendeiro da região sul da Bahia. Articulado com as autoridades de Bom Jesus da Lapa, o fazendeiro utilizou a polícia militar da bahiana para expulsar os indígenas. Depois de assaltarem a casa da família Kinane, levaram presos o patriarca Apolônio, um filho e dois genros para a delegacia de Bom Jesus da Lapa. De acordo com Rosália - filha do velho pajé -, no meio do caminho, os prisioneiros foram levados para a sede da fazenda e torturados pelos seus capangas com a complacência dos policiais.

Diante de tamanha violência, os indígenas resolveram partir para Brasília a procura da FUNAI. O contato com o órgão, segundo Alfredo José da Silva Pankaru, mudou a perspectiva de vida de seu povo. Informados de seus direitos em relação às terras de seus ancestrais, retornaram à região de Serra do Ramalho, visando enfrentar o grileiro. Novas hostilidades foram registradas.

A Terra Pankaru e as Agrovilas do INCRA

Em meados de 1970, os Pankaru foram surpreendidos com a notícia de que a região de Serra do Ramalho fora escolhida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para abrigar o Projeto Especial de Colonização (PEC), cuja finalidade era o assentamento dos desabrigados da Barragem de Sobradinho.

Assim, um sem número de fazendas foram desapropriadas e, de lá para cá, foram criadas 23 agrovilas, ocupando área de pouco mais de 256 mil hectares nos municípios de Serra do Ramalho e Carinhanha.

As agrovilas foram criadas para abrigar quatro mil famílias, obedecendo a um plano de engenharia rural que convém ser explicitado. A área foi dividida de acordo com o módulo regional. Assim, cada família recebeu um lote de 20 hectares (os contemplados com terrenos irregulares receberam um pouco mais) e uma casa na agrovila situada mais próxima de seu lote. Às margens do Rio São Francisco, foi ainda reservada uma faixa de 70 km para o cultivo irrigado. Além disso, foram criadas duas reservas denominadas extrativistas, cabendo a cada colono cinco hectares.

No plano de construção, cada agrovila funcionaria como um bairro rural que, além de concentrar os proprietários dos lotes, abrigaria o comércio, os serviços públicos e religiosos. Dentre as agrovilas, somente a Agrovila 9 concentrou todos esses serviços. Mais tarde, esta agrovila se tornaria sede do município de Serra do Ramalho, que foi desmembrado de Bom Jesus da Lapa.

Firme no propósito de ceder apenas 20 hectares a cada família assentada, o INCRA sugeriu à FUNAI "a remoção dos índios ou a sua emancipação para que tenham direito ao assentamento de acordo com o disposto no Estatuto da Terra" ("Relatos dos pankaru ontem e hoje", s/d: 01). Os índios resistiram e, depois de idas e vindas, seus direitos foram reconhecidos. Porém, não receberam a área reivindicada. Coube-lhes apenas uma área de aproximadamente mil hectares, homologada em 1991, e um lote urbano de três hectares localizado na Agrovila 19, onde foram construídas 50 casas reservadas aos indígenas. Como os Pankaru resistiram à fixação na Agrovila 19, algumas casas ficaram por algum tempo desocupadas. Então, Sem-terras provenientes de vários pontos da Bahia tentaram invadi-las. Os Pankaru exigiram a intervenção do INCRA. Entretanto, o órgão não foi capaz de impedir que os "colonos" destruíssem as casas, levando consigo telhas e blocos. Ainda hoje a área é disputada pelos indígenas e um não-índio que afirma ter o título de propriedade do lote.

Pouco tempo depois, os indígenas alegaram que a aldeia encontrava-se infestada de barbeiros, pondo em risco a sobrevivência de seus membros, razão pela qual fixaram-se na Agrovila 19, sendo obrigados a recorrer ao INCRA para obtenção de novas moradias; alguns indígenas, diante da negativa do órgão às solicitações, compraram casas em mãos de terceiros.

 Aspectos ecológicos e econômicos

Quando se fixaram em Serra do Ramalho, além da agricultura para consumo próprio, os índios praticavam o extrativismo e a caça nas frondosas matas que recobriam a Serra. O patriarca fabricava o rapé e as "garrafadas de remédio do mato"; as mulheres fabricavam produtos artesanais - feitos de fibras e argila. Estes produtos eram vendidos nas feiras de Taquaril, Bom Jesus da Lapa, Santa Maria da Vitória e, inclusive, Brasília, auxiliando a sobrevivência do grupo familiar.

Hoje, a pequena comunidade Pankaru vive da agricultura de "sequeiro" - dependente das chuvas - praticada na Aldeia Vargem Alegre, da aposentadoria rural e da venda da mão-de-obra nas fazendas e nos projetos de agricultura irrigada, instalados na região pela CODEVASF (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco).

O milho, a mandioca, o feijão - em duas variedades: o "catador" e o de "arranca", bem como o algodão são cultivados em pequenos lotes individuais, cujas safras mal suprem as necessidades nos dois meses subseqüentes. Além da agricultura, alguns membros criam umas poucas cabeças de gado bovino. O lote de 14 cabeças adquirido, através de projeto financiado pelo Banco do Nordeste com a intermediação da Funai, foi abatido ou vendido pelos seus proprietários nos momentos de dificuldade financeira.

De acordo com o cacique Alfredo Pankaru, a comunidade pensava em desenvolver um projeto de criação de cabras, mas esbarrava na oposição do Patriarca Apolônio: "O pajé velho, meu pai, não quer saber de cabra. Diz que cabra dá trabaio, de que cabra vai pra roça dos outros e que não sei o quê... Ele tem um carrancismo danado. Não gosta de cabra".

Após a implantação do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, a rica e variada vegetação, com exceção de parte da área da Aldeia Vargem Alegre, foi toda derrubada pelos colonos do Incra, expropriando dos índios sua complementação alimentar.

Nos últimos anos, as secas na região têm sido constantes e os indígenas reclamam dos seus efeitos devastadores, reivindicando aos órgãos governamentais a irrigação prometida pelo Incra quando da implementação do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho.

 Organização social e política

No tocante à organização social, os Pankaru apresentam pouca diferenciação em relação à população regional. De modo geral, os núcleos domésticos são autônomos e cooperam economicamente entre si. Tal qual a maioria das comunidades tradicionais, os casamentos entre primos de graus variados são muito comuns.

Quanto à organização política, seguem os passos dos demais indígenas do Nordeste, destacando-se as figuras líderes do cacique e do pajé. O papel de chefia, exercido pelo cacique, é válido para os assuntos que se referem aos interesses coletivos, mas não têm importância no âmbito doméstico. Desse modo, ele atua como um representante externo, exercendo o papel de articulador da mobilização coletiva.

Por muitos anos, o patriarca Apolônio acumulou as funções de cacique e pajé. Em meados de 1980, sentido-se "velho", resolveu "entregar" a função de chefia a um indígena de origem Atikum que vivia na Aldeia Vargem Alegre. Pouco depois, os Atikum voltaram a Pernambuco e Isaura, filha do pajé, reivindicou a chefia. A reivindicação de Isaura foi questionada pelo irmão Alfredo. "Ele dizia que tinha que ser homem; que ele tinha direito porque era o filho mais velho" (entrevista de Rosália, março de 2003). O desejo de Alfredo acabou prevalecendo e a irmã, Isaura, foi viver em Goiás, migrando, em seguida, para Muquém do São Francisco.

Embora acreditasse que as brigas com os brancos provocaram o enfraquecimento de sua "ciência", o velho Apolônio, até sua morte, em 2002, era visto e reverenciado como pajé. Seu filho Aldredo o substituiu no papel de cacique, mas ainda não foi identificado um novo pajé.

 Ritual

A pequena comunidade Pankaru pratica o toré. O ritual apresenta duas modalidades que se diferenciam pela funcionalidade/finalidade. Uma é a "dança do toré", ritual praticado como demonstração da diferenciação étnica, apresentado, em geral, nos dias de festa e comemoração, como o dia do Índio, por exemplo. De caráter lúdico, nela os indígenas cantam e dançam, mas não sorvem a "jurema" - bebida que chama os "encantados" - nem permitem a manifestação de nenhuma entidade sobrenatural. A outra modalidade é o "toré dos encantados", ritual no qual os indígenas manifestam com toda potencialidade o conteúdo da diferenciação étnica. Este ritual é praticado nas matas e, além de sorverem a "jurema", os indígenas recebem entidades e encantos. Há várias linhas de toré.

A raiz da "jurema preta" (Pithecolobium diversifolium; Mimosa artemisiana), somente encontrada na beira do Rio São Francisco, é colocada em infusão dentro de "um cocho de madeira". Às vezes, à raiz são adicionadas toras de cobra cascavel. "Quando a gente quer fazer um negócio bem feito, mesmo, bota cobra dentro". O cacique Alfredo explica: "tira a frente, tira atrás; parte a bicha e bota o toro no cocho pra fermentar. Deixa no sol. Quando aquilo espuma, tira. Tá pronto". Após uma semana, a bebida fica no ponto para ser sorvida. "A bebida é boa, mas é forte demais. Se caboclo beber demais vai pro chão. Branco não agüenta, não. Para os Pankaru, o ritual do toré serve para clarear a mente, para dar força e unir a aldeia. Por isso, durante o toré praticado nas matas não é permitida a presença de não-índios. "Segredo do índio, o branco não pode saber".

 Aspectos contemporâneos

A Agrovila 19 é a mais pobre dentre todas as agrovilas desse antigo projeto de assentamento totalmente fracassado. É também a que menos dispõe de equipamentos urbanos. Ela não é servida de Posto de Saúde, de escola de ensino médio nem de transporte regular. O fornecimento de água é precário e as estradas vicinais no período das chuvas (outubro/novembro a fevereiro/março) tornam-se intransitáveis. Na antiga aldeia, distante aproximadamente seis km da Agrovila 19, as condições de vida eram ainda mais precárias: as casas eram de pau-a-pique e não havia escolas.

Acatando reivindicação dos índios, que sempre rejeitaram a vida na Agrovila, em 1999 a FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) construiu um conjunto de casas em área localizada "na boca da mata". As casas são de alvenaria e têm três cômodos. Além delas, foram construídas uma pequena Igreja e um Posto de Saúde. A escola para os primeiros ciclos do ensino fundamental se encontra em fase de construção. No entanto, os índios continuam vivendo entre a nova aldeia e a Agrovila 19, pois a Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia, em que pese as inúmeras solicitações da Associação da Aldeia Vargem Alegre, até 2003 não tinha instalado energia elétrica nas casas.

 Notas sobre as fontes

Em 2000, a autora deste verbete publicou um pequeno artigo na Revista Travessia, do Centro de Estudos Migratórios da Pastoral do Migrante, intitulado "Assentamentos Indígenas no Médio São Francisco: o caso dos Tuxá e Pankaru", enfatizando o deslocamento compulsório que vitimou a comunidade Tuxá de Rodelas e os deslocamentos/territorialização dos Pankaru.

De modo geral, a reconstituição de alguns dos aspectos contemporâneos da comunidade Pankaru só pode ser feita mediante consulta aos jornais e às esparsas publicações da Associação Nacional de Apoio ao Índio-Bahia. Duas publicações da ANAI-BA deram suporte a este trabalho. O folheto intitulado "Relatos dos pankarú ontem e hoje" reconstitui, de certo modo, aspectos da história dos Pankaru, enfatizando a resistência e os conflitos com os grileiros. O artigo "Seu Apolônio, o velho patriarca pankaru", de José Augusto Laranjeiras Sampaio, reconstitui a saga do patriarca, registrando também o processo de diferenciação étnica levada a efeito, a partir da luta contra os grileiros.

Além da consulta a esse escasso material, o presente trabalho foi realizado a partir de entrevistas realizadas com membros da comunidade Pankaru (Alfredo José, Rosália, Severino e Ivone) e do funcionário do Posto Indígena, Josias Adelício Ramos, membro da comunidade Tuxá de Rodelas. As entrevistas foram tomadas em dois momentos diferentes: em 1999 e em 2003. Em ambas não foi possível entrevistar o pajé Apolônio. Na primeira entrevista, ele se encontrava em visita à comunidade Tuxá de Ibotirama, seguindo dias depois para Brasília. Na Segunda, ele já havia falecido.

 Fontes de informação

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE APOIO AO ÍNDIO. Relatos dos pankaru ontem e hoje. Salvador : Anai, s.d. (folheto)
ESTRELA, Ely Souza. Assentamentos indígenas no Médio São Francisco : o caso dos Tuxá e Pankaru. Travessia, São Paulo : Centro de Estudos Migratórios, n. 39, jan./abr. 2001.
SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. Seu Apolônio, o velho patriarca Pankaru. Boletim Anai–BA, Salvador : Anai-BA, n. 9, p.6-7, dez.1992/jan. 1993.
SOUZA, José Evangelista de. Do São Francisco a Serra do Ramalho. Belo Horizonte : Precisa Editora, 1991.
. De Carinhanha a Serra do Ramalho. Belo Horizonte : Precisa Editora, s.d.
; ALMEIDA, José Carlos D. Comunidades rurais negras : Rio das Rãs – Bahia. Brasília : Arte e Movimento, s.d. (mimeo)
. O mucambo do Rio das Rãs : Um modelo de resistência negra. Brasília : Arte e Movimento, 1994. (mimeo).
SOUZA, João Evangelista; CERQUEIRA, Paulo Cézar Lisboa. Presença negra no Médio São Francisco. Caderno do CEAS, Salvador : Ceas, n. 106, nov./dez. 1986.

Panará

Toy Art Panará
#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
155PanaráKreen-Akarore, Krenhakore, Krenakore, Índios Gigantes
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
MT,PA437Funasa 2010



Os Panará, também conhecidos como Krenakore, foram oficialmente contatados em 1973, quando a estrada Cuiabá-Santarém estava em construção e cortava seu território tradicional na região do Rio Peixoto Azevedo. A violência do contato ocasionou morte de 2/3 de sua população, em razão de doenças e massacres. À beira do extermínio, em 1975 foram transferidos pela Funai para o Parque Indígena do Xingu. Depois de 20 anos exilados, os Panará reconquistaram o que ainda havia de preservado em seu antigo território, onde construíram uma nova aldeia. Além dessa vitória, alcançaram um feito inédito na história dos povos indígenas e do indigenismo brasileiro, quando em 2000 ganharam nos tribunais, contra a União e a Funai, uma ação indenizatória pelos danos materiais e morais causados pelo contato. Tal vitória, se não lhes apaga as tristes marcas de sua história, projetam-lhes para um futuro mais digno.
Território Panará

 Nome e Língua

A distinção mais geral utilizada pelos Panará é entre Panará, que significa “gente”, “seres humanos”, e hĩ’pen, o “outro”, sendo este termo também é utilizado para referirem-se aos Kayapó. Falam uma língua da família lingüística Jê, da subfamília Jê Setentrional, que inclui os Kayapó, os Suyá, os Apinayé e as línguas timbira.

Indios Gigantes

A partir da década de 1970, quando ocorrem os primeiros contatos oficiais com os Panará, ninguém sabia como eles próprios se chamavam. Eram "índios gigantes" ou Krenacore, Kreen-Akrore, Kreen-Akarore, Krenhakore ou Krenacarore – variantes do nome kayapó kran iakarare, que significa "cabeça cortada redonda", uma referência ao corte tradicional de cabelo que identifica os Panará. Nos fartos relatos dessa época há uma preocupação constante de explicar sua origem desconhecida. Chamá-los de “gigantes”, “índios brancos” ou “índios negros” era uma forma de identificá-los e retirá-los do perturbador estado de alteridade absoluta.

Várias foram as causas da fama de “gigantes”, que o contato com os irmãos Villas-Bôas mostrou ser improcedente. A maior parte dos Panará tinham estatura mais ou menos igual à de outros grupos indígenas, como os Kayapó e os Xavante. Contudo, seus enormes arcos e tacapes, que chegavam a medir 1,80 m, impressionavam e induziam a supor que só pudessem ser manejados por homens enormes. Os Kayapó, tradicionais inimigos dos Panará, espalharam a fama dos “índios gigantes” também para valorizar suas vitórias em guerras contra eles.

Uma outra razão evidente, pública e notória, chamava-se Mengrire e tinha 2,06 metros de altura. Era um índio Panará seqüestrado de sua aldeia ainda criança e criado pelos Kayapó Metuktire. Foi levado, depois, para o Parque Indígena do Xingu, onde morreu, ou foi morto, no final da década de 60, aos 38 anos de idade. Mengrire, realmente, era um "gigante", mas foi o único encontrado e reconhecido como tal por médicos e pesquisadores. Além desse único caso, Orlando Villas-Bôas conta que, na época do contato, existiam pelo menos outros oito Panará bastante altos. Mas morreram com as doenças dos brancos. Os adultos panará de hoje, que viveram no Peixoto de Azevedo antes de 1973, são enfáticos sobre a existência de parentes muito altos no passado.

 Histórico do contato

Dados lingüísticos e etno-históricos recentes mostram que os Panará do Peixoto Azevedo/cabeceiras do Iriri são os últimos descendentes de um grupo bem maior e mais conhecido pelos cronistas como “Cayapó do Sul”. Esse grupo habitava, no século XVIII, uma vasta área no Brasil central, desde o norte de São Paulo, Triângulo Mineiro e sul de Goiás ao leste do Mato Grosso e leste e sudeste do Mato Grosso do Sul. A intensificação da exploração mineral, que aumentou o fluxo comercial entre São Paulo e Goiás, incidindo em suas terras, induziu os governos das duas províncias a contratar sertanistas para afastá-los da rota de viajantes e mineradores. Com a descoberta de ouro na região do rio Vermelho, em Goiás, por Bartolomeu Bueno da Silva, em 1722, os Cayapó do Sul passaram a sofrer ataques constantes com as frentes de expansão.

Foram muitos e sangrentos os conflitos entre os Cayapó do Sul e os colonizadores portugueses nos caminhos de Goiás e de Cuiabá. Nos primeiros choques, segundo um cronista da época, mil Cayapó foram capturados numa só campanha de três meses e oito mil foram escravizados nas primeiras guerras. Depois da segunda metade do século XVIII, as bandeiras organizadas contra os Cayapó abandonaram o intuito de "descer", ou seja, escravizar os índios, limitando-se a matar todos os homens que pudessem pegar em armas. A guerra contra os Cayapó provocou mortandade e aldeamento compulsório.

No século XIX, a ocupação das terras no sudoeste de Goiás recrudesceu os conflitos com os índios e levou a população dos Cayapó do Sul praticamente ao desaparecimento, restando apenas alguns grupos na região do Triângulo Mineiro, e foram tidos como extintos nas primeiras décadas do século 20. Os que não aceitaram o aldeamento e a assimilação no século XVIII e XIX se retiraram para o oeste e para o norte, rumo as matas mais fechadas do norte do Mato Grosso.

O que sabemos, por meio da etno-história, é que os atuais Panará ocuparam a bacia do Peixoto de Azevedo, afluente da margem direita do rio Teles Pires, formador do rio Tapajós, até o início do século. A riqueza natural da região contribuiu para que ali se fixassem.

A tradição oral panará conta que eles vieram do Leste, de uma região de campos cerrados, habitada por brancos extremamente selvagens e bravios, que tinham armas de fogo e mataram muitos antepassados dos Panará. Segundo o chefe Akè Panará, "os velhos disseram para nós que, antigamente, os brancos mataram muitos Panará, de espingarda. Chegavam em nossas aldeias e matavam muitos. Se eles vierem para cá – diziam – matem eles de borduna, que eles são bravos".

O contato entre os Panará e os Kayapó também é antigo. Provavelmente o primeiro encontro foi numa das freqüentes expedições no sentido norte da (antiga) aldeia Sonkànasan, para pescar e colher concha de moluscos utilizada para fazer enfeites. Gustaf Verswijver, antropólogo que produziu um detalhado estudo etno-histórico sobre os Kayapó, relata que os Panará atacaram os Kayapó Mekragnoti em 1923, numa aldeia entre o Rio Jarina e o Iriri Novo, perto do Rio Xingu. Os Mekragnoti fugiram para o rio Curuá, uns 200 Km para noroeste, onde os Panará os atacaram novamente. Também conforme esse autor, em 1943, os Mekragnoti descobriram um tapiri dos Panará numa de suas antigas aldeias entre o Rio Jarina e o Iriri Novo, ou seja, na atual área Indígena do Capoto, dos Kayapó Metuktire.

O contato oficial

Em 1968 os sertanistas Orlando e Cláudio Villas-Bôas, sobrevoaram as terras dos Panará, para contatá-los antes que a construção da BR-163 abrisse as matas da região do rio Peixoto de Azevedo. Foram necessários mais cinco anos para que os irmãos Villas-Bôas finalmente conseguissem se aproximar dos arredios Panará, no dia 4 de fevereiro de 1973, pois os índios montavam e desmontavam aldeias e fugiam sempre. Mas antes desse encontro histórico, o contato esporádico com os vírus dos brancos da frente de obras da estrada já havia atingido a população Panará.

De 1973 a 75, foram tantas as mortes em razão de gripe e diarréia que o grupo quase desapareceu: "Nós estávamos na aldeia – lembra-se o chefe Akè Panará – e começou a morrer todo mundo. Os outros foram embora pelo mato, e aí morreram mais. Nós estávamos doentes e fracos e, então, não conseguimos enterrar os mortos. Ficaram apodrecendo no chão. Os urubus comeram tudo".

No Xingu

Por causa da tragédia, em 1975 um avião da Força Aérea Brasileira removeu os sobreviventes em uma ponte aérea do Peixoto de Azevedo para o Parque Indígena do Xingu, a 250 Km a oeste. Os Panará chegaram famintos, sem nenhuma grávida, todos portando malária, muito anêmicos e infestados de parasitas. O planejamento para recebê-los no Xingu consistiu na plantação de uma roça de milho e construção de uma casa na aldeia dos Kayabi. Chegaram no posto Diauarum, foram examinados pela equipe médica da Escola Paulista de medicina e subiram para a aldeia Kayabi. Segundo Heelas, antropólogo que trabalhara na época com o grupo, em 1975 “quase todos estavam sofrendo ou de malária, ou gripe, ou pneumonia ou de vários desses... durante os primeiros dois meses na aldeia nova, morreram cinco, deixando um total de 74 pessoas”. Em março de 1975 as autoridades do Parque resolveram transferir os Panará para a aldeia Kretire, dos seus antigos inimigos, os Kayapó. Embora houvesse mais comida nessa aldeia, a situação era extremamente opressiva. A condição de saúde continuou precária e várias mulheres se casaram com Kayapó. Após uma difícil negociação, em outubro de 1975, os Panará foram retirados dali, embora deixando várias mulheres e crianças com os Kayapó. Até então, tinham morrido mais cinco pessoas, ficando 69 Panará.

Passaram um mês no posto Diauarum, fazendo tratamento médico, e foram para aldeia Suyá, no Rio Suyá-Missu. Ali sua saúde melhorou, plantaram roça própria e, em um clima social marcadamente menos opressivo, passaram a retomar suas iniciativas próprias. Surgiram lideranças novas, estimulando a prática de danças, canções e ritos tradicionais. Na estação seca de 1976, identificaram o sítio para construção de uma aldeia própria numa antiga aldeia dos Kayabi, entre os rios Suyá-Missu e Xingu. No final do ano, mudaram-se para lá.

A fundação da primeira aldeia própria dos Panará no Xingu foi evidentemente um ponto chave na trajetória do grupo. A partir daí, iniciou-se um processo de crescimento populacional, reconstrução cultural e social, e adaptação ativa às novas circunstâncias econômicas, ecológicas e sociais com as quais se depararam no Xingu.

Os Panará cresceram significativamente na nova aldeia. Em setembro de 1980, havia 84 pessoas (contando-se os Panará residentes com outros grupos) e até dezembro de 1982 somavam 95 indivíduos. Em agosto de 1992, a população total havia atingido cerca de 135 pessoas. Mesmo assim, eram considerados pelos outros habitantes do Parque como politicamente menos importante do que outras etnias maiores.

As condições ambientais também trouxeram grande insatisfação aos Panará nessa transferência forçada. Praticavam uma agricultura diversificada, muito mais do que a dos povos do Xingu. Tradicionalmente, plantavam quatro variedades de batata, cinco de cará, seis de mandioca, além de mangarito, abóbora, cabaça, urucum e algodão. Na sua classificação, só a “terra preta” (kupa kyan) é apta para cultivar as plantas mais exigentes. No Xingu, a agricultura Panará fora reconstruída vagarosamente, já que saíram do Peixoto sem nenhuma muda, semente ou raiz. Pelo menos dois tipos de batata doce e dois tipos de cará não foram recuperados.

A volta ao território

Essa disposição e as limitações impostas pelo Parque Indígena do Xingu levou os Panará a reivindicarem o retorno ao seu território tradicional. Em outubro de 1991, seis Panará e seis brancos tomaram um ônibus para uma histórica viagem rumo ao Peixoto de Azevedo. Foi a primeira vez que os Panará voltaram à sua região desde a transferência, em 1975, embora já falassem de sua vontade de visitar o lugar desde 1983. O grupo chegou na cidade de Matupá, na BR-163, extremo-norte do Mato Grosso, e começou a fazer o reconhecimento do território.

O vale do Peixoto de Azevedo mostrava um aspecto desolador. Os garimpos e as fazendas haviam derrubado a mata, poluído e assoreado os rios, especialmente o Braço Norte. Muitas calhas tinham virado lamaçais. Vastos trechos do paradisíaco Peixoto de Azevedo eram lodo puro. Os índios constataram os efeitos do desmatamento desordenado, da pecuária e de 20 anos de garimpagem. Ali mesmo, manifestaram o desejo de se encontrar imediatamente com as autoridades responsáveis pela construção da estrada que induziu à ocupação da região e pedirem satisfações.

Ainda nesta viagem, os Panará sobrevoaram a área, constatando que, das oito aldeias existentes em 1968, seis tinham sido destruídas pelos garimpos e projetos de colonização e pecuária. Surgiu aí a idéia de reivindicar uma indenização pela ocupação e destruição das terras. Nesse mesmo sobrevôo, identificaram um trecho de território, próximo à Serra do Cachimbo, chegando às cabeceiras do rio Iriri, ainda coberto com matas e rios conservados, uma parte da terra que ainda não tinha sido ocupada.

A partir daí, os Panará discutiram longa e repetidamente entre eles, na sua aldeia, sobre o que tinham visto, identificando a área tradicional que ainda não estava ocupada e chegando a um consenso sobre a área pretendida. Decidiram abrir mão de grande parte do território tradicional, ao qual por Lei teriam direito, para evitar confronto com os brancos, e reivindicaram a área sem ocupação efetiva de aproximadamente 500 mil hectares nas cabeceiras dos rios Iriri e Ipiranga, na fronteira entre Pará e Mato Grosso, incluindo a gleba de propriedade do Incra, no Mato Grosso. Em março de 1993, os Panará solicitaram, formalmente, a demarcação das terras.

Em Brasília, os Panará, representados pelo Núcleo de Direitos Indígenas (uma das organizações que posteriormente se uniria ao Cedi – Centro Ecumênico de Documentação e Informação – para, em 1994, criar o Instituto Socioambiental), apresentaram na 8ª Vara da Justiça Federal uma Ação Declaratória contra a União Federal, a Funai e o Incra. Pediam a posse permanente da área Panará tradicional e seu usufruto exclusivo. Afinal, recuperaram suas terras.

Novos tempos

Em novembro de 1994, os Panará convocaram os líderes dos povos do Parque do Xingu para uma reunião na aldeia do rio Arraias, para apresentar e discutir o plano de retorno para o território original. Foi uma reunião histórica, que durou três dias. Muitos co-personagens da saga estavam presentes – como o chefe kayapó txukarramãe Raoni; seu sobrinho e na época diretor do Parque, Megaron; o líder Kayabi Mairawe, chefe do Posto Diauarum da Funai; e os chefes kayabi Prepuri e Cuiabano. Cláudio e Orlando Villas-Bôas foram convidados, mas não puderam comparecer. Pela primeira vez toda a liderança xinguana reuniu-se na aldeia panará.

Quatro chefes panará, Akè, Teseya, Kôkriti e Krekõ, os quatro homens mais velhos, declararam pública e energicamente a intenção de retornar para a terra de seus pais e avós, no Peixoto de Azevedo. Enfatizaram que o Xingu não é terra panará e que sua verdadeira terra é fértil, com caça e pesca abundante. Nove panará, homens e mulheres, discursaram defendendo a volta. Um jovem panará discursou contra o retorno. A grande maioria dos líderes convidados que falaram apoiaram a iniciativa e muitos, como os líderes dos Txikão, Suyá e Kayabi, falaram com saudade das terras deixadas para trás, quando vieram morar no Parque. Olympio Serra, que sucedeu os irmãos Villas-Bôas na direção do Parque, lembrou que a idéia original da criação do Parque contemplava um território muito maior, que, se tivesse sido criado, teria protegido as terras originais dos Panará, Txikão e Kayabi, tornando desnecessária a atração e transferência desses grupos para o interior das fronteiras atuais do Parque. A conferência dos chefes xinguanos na aldeia do rio Arraias sacramentou o retorno dos Panará ao Peixoto de Azevedo.

Em dezembro de 1994, a Funai concluiu o processo de identificação e delimitação da Terra Indígena Panará. Ao longo de 1995 e 1996, gradualmente, os Panará foram se mudando para uma nova aldeia, aberta pouco a pouco, a qual batizaram de Nãs’potiti, nome panará para o rio Iriri. Em setembro de 1996 já havia nessa aldeia nova 75 pessoas, onze casas, um posto da Funai e uma pista de aterrissagem razoável. Os que ficaram no Xingu só pensavam na mudança, mas tinham que esperar que as roças plantadas no Iriri vingassem, para garantir a sustentação de 183 pessoas.

No dia 1° de novembro de 1996, o ministro da Justiça declarou de "posse permanente" dos índios a Terra Indígena Panará, com 494.017 hectares, nos municípios de Guarantã (MT) e Altamira (PA). O mesmo ato encarregou a Funai de providenciar a demarcação física do território, fixando marcos no local. O governo reconheceu, politicamente, os direitos dos Panará e os limites de suas terras. O Presidente da República assinou um decreto homologando a demarcação da Terra Indígena Panará, que foi registrada nos cartórios de imóveis de Guarantã e Altamira, e registrada no Serviço do Patrimônio da União, em Brasília.

Em agosto de 2003, os Panará foram protagonistas de um fato inédito na história do país: pela primeira vez, o Poder Judiciário reconheceu a um povo indígena o direito de indenização por danos morais decorrentes das ações do Estado. A indenização recebida pelos Panará foi o desfecho de um longo processo jurídico, iniciado em 1994. Naquele ano, os índios entraram com uma Ação Ordinária de Reparação de Danos Materiais e Morais na 7ª Vara da Justiça Federal, no Distrito Federal contra a União Federal e a Funai, pedindo reparação de danos e indenização "a ser apurada em liquidação de sentença”. Esta ação foi viabilizada com o apoio de antropólogos e advogados do Cedi e do NDI, que hoje formam o ISA. A indenização, que soma mais de 1,2 milhões de reais, diz respeito aos danos sofridos pelos Panará em razão do contato e da transferência forçada de suas terras tradicionais por causa da construção da BR-163 Cuiabá-Santarém.

 Organização social

As mulheres adultas não usam mais o corte tradicional de cabelos curtos, com duas linhas paralelas raspadas em cima da cabeça, que foi substituído pelos cabelos compridos com franjas, no estilo feminino suyá. A pintura corporal, a arte plumária e a música assimilaram elementos da cultura xinguana, principalmente dos Kayapó, seus vizinhos mais próximos.

Os Panará dividem suas aldeias de acordo com os clãs que compõem a sua sociedade, mantendo uma relação direta entre espacialidade e organização social. Quatro são os clãs que relacionam-se exogamicamente, cada Panará pertencendo a um deles, de acordo com a descendência materna. Como acontece nos clãs Bororo, os clãs Panará possuem uma localização fixa no círculo aldeão. São dispostos literalmente a partir do eixo leste-oeste, determinado a partir do caminho do sol durante o dia.

Os Panará vivem numa aldeia circular, com residências situadas na periferia do círculo. No centro fica a Casa dos Homens, como em outras aldeias dos grupos de família lingüística Jê. No círculo da aldeia estão fixados os lugares dos quatro clãs existentes .Os nomes dos clãs sugerem um mapeamento, no espaço, dos processos temporais de crescimento e mudança. Eles se chamam: kwakyatantera (“os da raiz do buriti”), keatsôtantera (“os das folhas do buriti”), kukrenôantera (“os sem casa”) e kwôtsitantera (“os da costela”). Esses nomes também indicam os pontos cardeais, ou os pontos cardeais, por assim dizer, são determinados por esses nomes, muda-se apenas o sufixo. Antera, que determina o coletivo humano, é substituído por -pên, sufixo que designa lugar: kwakyatpên (“lugar das raízes do buriti”) ou kwatsopên (“lugar das folhas de buriti”). Para sabermos qual o clã a que determinada pessoa pertence devemos perguntar “De onde você vêm?” (yu pên kya- interrogativa/ adj. lugar/ possessivo).

Em um sentido geral o termo Panará indica o pertencimento a uma rede de parentesco mais ampla, ou seja, todo o grupo, tendo a partir daí suas subcategorias determinadas pelos clãs. O pertencimento ao clã e a localização das casas do pai ou da mãe, respectivamente, no círculo da aldeia, são as referências para se explicar as relações e posições na sociedade.

Parentesco

Cada indivíduo pertence a dois clãs, o clã materno e o clã paterno, e a família nuclear (esposa, marido e filhos) é a unidade social mais simples, cada uma possuindo o seu fogo. A mulher trabalha na roça plantando e processando alimentos para a família, enquanto o homem caça e pesca com o mesmo objetivo.

Os clãs são exogâmicos, de modo que as pessoas de um mesmo clã não casam entre si, e a residência é uxorilical, o marido deve morar na casa da família de sua esposa. Isto quer dizer que os homens nascem em suas casas e casam fora dela, enquanto as mulheres permanecem na casa onde nasceram por toda a vida.

Depois da família nuclear, a unidade mais inclusiva da sociedade Panará é a família extensa, representada pelo grupo familiar da mulher, composto pelo grupo de irmãs, suas filhas, netas, homens solteiros e jovens meninos. Um clã, por sua vez, é formado por uma ou algumas dessas unidades, localizado em seu local apropriado do círculo da aldeia.

Nominação

Os nomes panará são transmitidos pelos homens. É o pai que dá nome ao filho e é a irmã do pai, ou algum outro parente feminino do clã do pai, que dá o nome à filha. Os homens dão para seus filhos seus próprios nomes, ou os nomes dos seus irmãos ou outros parentes. Todo mundo tem pelo menos dois nomes, alguns até uma dúzia. Todo nome corresponde ao nome de algum antepassado e foram os antepassados míticos que deram os nomes aos Panará, bem como aos animais, aos pássaros e aos peixes.

Embora existam mecanismos para a invenção de nomes, via de regra o sistema não admite tal coisa; nome verdadeiro é nome dos antepassados, os suankyara, os "de antes". O leque dos nomes panará sugere nada menos do que uma lista de todas as coisas do mundo. Assim, Tekyã é "canela curta", Kokoti, "inchado", Kyùti, "anta", Pè'su, "castanha-do-pará", Nansô, "rato", Sampuyaka, "Matrinchã" (literalmente, "rabo branco"), Sôkriti, "folha falsa" ou "coisa que parece folha". O sistema dos nomes afirma a adequação do saber dos antepassados à tudo que existe, pondo em circulação perpétua, ao longo das gerações, os nomes do tempo mítico dos primeiros velhos.
Akã Panará

São essas as relações básicas que organizam os eventos da vida da aldeia. Tradicionalmente, os meninos até 12 ou 13 anos moram com seus pais, na casa da mãe, atingindo essa idade, vão dormir na Casa dos Homens, conforme sua metade cerimonial. Depois de alguns anos de residência na Casa dos Homens, o menino estabelece relações mais estáveis com uma menina e, paulatinamente, vai se incorporando à casa da futura esposa, assim a relação do menino com a sua família de origem é cortada pela residência na Casa dos Homens e, a partir daí, ele começa a sua família incorporado à casa de seus sogros onde terá filhos. O casamento consolida-se com o nascimento de filhos.

As mulheres não apenas sinalizam o pertencimento aos clãs como são, efetivamente, as donas das casas, nas quais vivem com o marido, com as filhas e os maridos delas e os filhos até a maturidade desses. Se o casamento monogâmico acaba - e pode acabar várias vezes na vida adulta - o homem é que sai de casa. É comum desfazerem-se uniões e casar-se novamente quatro ou cinco vezes.

Assim como nos outros grupos Jê, com seus sistemas de classes de idade, ser plenamente adulto entre os Panará é expresso pelos termos taputun, velho, e twatun, velha, o que significa ter filhos já casados, ser avô ou avó. Os genros devem trabalhar para os sogros fazendo roça para a mulher e para a família dela, trazendo caça e peixe para sua própria casa bem como para a de sua mãe, além de manifestar respeito, uma atitude formal de deferência para com a classe de idade dos velhos.

Os jovens (piàntui, mulher nova, e piôntui, rapaz novo) tratam do trabalho produtivo: a roça, a caça, a pesca e a preparação de comida. Os velhos cuidam da organização e reprodução das atividades produtivas por meio de discursos na praça ou na Casa dos Homens, além da organização dos ritos. Nessas coisas, os homens têm um papel preponderante, tendo um espaço privilegiado nas atividades rituais e nos discursos formais. Isso se deve, em parte, à mediação dos homens nas relações com o mundo fora da sociedade panará, o que, tradicionalmente, ocorria por meio da guerra. A influência das mulheres velhas, por sua vez, é efetiva em qualquer decisão que afete a aldeia como um todo.

 Cosmologia ritual

A corrida de toras é a atividade cerimonial mais importante, feita em vários momentos: na festa da puberdade feminina; após expedições guerreiras; ou por si só. É a maior demonstração pública da força e energia masculina. Recomeçar a prática da corrida de toras dentro do Parque do Xingu teve um significado crucial no processo da reconstrução social. Durante muitos anos, os Panará não fizeram a Casa dos Homens no Parque Indígena do Xingu, sob alegação de que não havia meninos. De fato, só após sua última mudança dentro do Parque, quando se instalaram na aldeia no rio Arraias, fizeram uma. Não é por acaso que no mesmo momento em que se sentiram capazes de fazer a Casa dos Homens também começaram a ensaiar a retomada das suas terras.

Muitos rituais são realizados cada qual de acordo com a ocasião. Desde cedo as crianças têm suas orelhas furadas e, dos meninos, além das orelhas, furam-se os lábios. Além dos furos são feitas escarificações, todos permeados pelo respectivo ritual.

Na ordem cosmológica panará, a floresta, os rios, os igarapés e os lagos são fontes não só de recursos materiais, mas a base da ordem social. Os antepassados míticos, que deram seus nomes aos Panará e ao mundo, foram seres "consorciados", formados a partir da combinação de animais e gente panará. Os mortos, na aldeia dos mortos, embaixo da terra, criavam muitos animais que ofertavam aos vivos, para criar e matar, em ritos de sacrifício destinados a ordenar as relações de troca entre clãs.

A economia tradicional dos Panará, antes da transferência para o Xingu, baseava-se numa exploração extensa, porém ecologicamente equilibrada, dos recursos naturais. O sistema cerimonial ordenava longas expedições de caça, com grupos de homens andando por semanas na floresta caçando e moqueando carne para trazer para a aldeia. Era comum na estação seca, a dispersão das aldeias em grupos menores que iam pescar, caçar ou buscar frutas, acampando na floresta. A coleta de taquara para fabricar flechas também era feita por grupos grandes, que caminhavam muitos dias que além das taquaras, iam atrás da safra de castanha Transferidos do Peixoto Azevedo para o Parque Indígena do Xingu, os Panará continuaram caçando, pescando, plantando e realizando a coleta de frutos, mas as condições ecológicas do Xingu, por serem bem diferentes da encontrada em suas florestas originais reduziu em muito a variedade de seus alimentos.

Os Panará plantam milho, batata, cará, várias espécies de banana, mandioca, abóbora e amendoim. Nas terra férteis do Peixoto e do Iriri as mesmas bananeiras dão frutos durante anos a fio, enquanto no Xingu requeriam pés novos a cada ano. A dificuldade do trabalho sem ferramentas de aço foi suplantada com a aquisição de facas, facões e machados. O fascínio por esses instrumentos levou os Panará a atacarem o inglês Richard Mason, em 1961, a procurarem a Base Aérea do Cachimbo, em 1967, e a aceitarem o contato com Cláudio Villas Bôas, em 1973. Facas e miçangas eram os únicos despojos levados dos inimigos mortos nas guerras com os Kayapó. No contato com os brancos, no primeiro momento em que ganharam muitos machados de aço, os Panará jogaram seus machados de pedra no rio.

A pesca ocorre tanto no período de cheia ou de seca, já que as técnicas de captura dos peixes variam de acordo com o nível da água: timbó na estação de águas baixas e arco e flecha nas águas cheias. A caça é a atividade masculina mais prestigiada. Anta, macaco-prego, macaco-aranha, paca, jacu, mutum e outros galináceos são abatidos com arco, flecha e borduna. Sobretudo o conhecimento dos animais e do ecossistema, mais do que força ou tecnologia, garante os resultados das empreitadas. Como coletores, os Panará valorizam muito as diversas qualidades de mel que recolhem, comendo-o puro, misturado com açaí, ou diluído n'água. Apreciam também mamão bravo, cupuaçu, cacau selvagem, caju, buriti, tucum, macaúba, inajá, mangaba, pequi e a importante castanha-do-pará, coletada entre novembro e fevereiro, justamente no período em que as roças já foram plantadas mas não começaram a produzir.
Festividade na aldeia Panará

Para os Panará todo o processo de produção de subsistência é organizado pelas relações sociais. O trabalho diário de cada família nuclear - a mulher colhendo mandioca ou outras plantas da roça, o homem indo caçar ou pescar - dá conteúdo a um ciclo ritual transcendente, através do qual toda a força do trabalho coletivo é mobilizada por complexos pedidos e prestações mútuas de serviços entre clãs, culminando na preparação coletiva de uma grande quantidade de mandioca ou milho, que tem como complemento o resultado de uma caçada coletiva que dura até semanas. No desfecho da cerimônia, todos preparam um imenso paparuto (massa de mandioca ou milho recheada com carne, embrulhada em folhas de bananeira e assada em forno de chão), aquilo que se come todo dia, para divisão entre os clãs e conseqüente consumo. Não ter caça significa, a longo prazo, que não há como manter a arquitetura social.

Da mesma forma, a roça é não só um espaço altamente socializado como também um campo de trabalho material e social fundamental. Parte daí a explicação da forma geométrica das roças que tanto deixaram perplexos os integrantes das frentes de atração. O desenho circular da roça, com certas plantas na periferia, e suas linhas, às vezes cruzadas, de bananeiras ou milho cortando o centro, é uma reprodução (parcial) do espaço da aldeia, com oposição entre centro e periferia, usando os mesmos conceitos de espaço que orientam a pintura corporal e o corte de cabelos, sempre em ressonância com o sistema social. O crescimento do milho e do amendoim são referências temporais para os ritos de perfuração das orelhas, do lábio inferior dos homens e de escarificação das coxas, que, por sua vez, articulam-se com o ciclo de trocas entre os clãs.

A questão dos recursos naturais é crucial para se compreender porque era um problema viver no Xingu. Sob o ponto de vista deles, não só estavam em terra alheia como em terra pobre. No Parque Indígena há menos caça do que no Peixoto de Azevedo, várias frutas que eram objetos importantes da coleta - inclusive a castanha - não existem, a terra é menos fértil e a roça rende menos e esgota-se mais rápido. Enquanto viviam no Xingu, os Panará não cansavam de repetir que sua sociedade era um simulacro, uma versão reduzida, inferior e empobrecida da sociedade como fora outrora no Peixoto de Azevedo.

 Nota sobre as fontes

O Verbete Panará, elaborado pela equipe da Enciclopédia dos Povos Indígenas do ISA, em grande parte foi baseado na tese do Antropólogo Stephan Schwartzman , “The Panará of The Xingu National Park: the transformation of a society”, defendida em 1988 pela Universidade de Chicago. Essa tese traz um minucioso quadro sobre a vida e transformação social ocorrida com os Panará desde antes de sua transferência até o estabelecimento no Parque Indígena do Xingu. O antropólogo trabalha junto aos Panará desde 1980 e produziu, além da tese, artigos, relatórios e diagnósticos sobre o povo Panará (ver fontes de informação).

Outra fonte de informação utilizada nesse verbete foi o livro “Panará: a volta dos índios gigantes”, dos jornalistas Ricardo Azambuja Arnt, Lúcio Flávio Pinto e Raimundo José Pinto , com ensaio fotográfico e relato de Pedro Martinelli.

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