segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Tingui Botó

 
Toy Art Tingui Botó

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
194Tingui Botó

UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
AL390Siasi/Sesai 2012


Os Tingui-Botó habitam a comunidade Olho D´Água do Meio, no município alagoano de Feira Grande. Até o início da década de 80, eram conhecidos como "caboclos", quando foi-lhes reconhecida a identidade indígena pela Funai. Desde esse período preservam dois hectares de mata para realizar o ritual secreto do Ouricuri, principal emblema de sua identidade, que continuam resguardando das populações vizinhas.

 Nome

Ritual Tingui Botó

O nome Tingui-Botó é de origem recente. Nos registros históricos e nos levantamentos gerais da região, como os realizados por Duarte e Hohenthal Jr., os remanescentes indígenas de Olho d'Água do Meio, povoado do município de Feira Grande, são identificados como Xocó ou Shocó. Mas, segundo relatou ao Instituto Socioambiental o cacique Eliziano de Campos e o pajé Adalberto Ferreira da Silva, os Tingui-Botó não são Xocó e sim Kariri.

A atual denominação teria sido dada por João Botó, curandeiro e pajé que, juntamente com sua família, se instalou em Olho d'Água do Meio provavelmente nos anos 1940. Isso ocorreu depois da criação do Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso, em Porto Real do Colégio. Com a formação da nova comunidade, foi revitalizado o ritual do Ouricuri, desencadeando um processo de agregação em torno da "taba", ou seja, do território sagrado, onde o ritual se realiza secretamente a cerca de dois hectares da localidade. Esta versão da origem do nome "Botó" me foi dada pelo pajé dos Kariri- Xocó na década de 1980, sendo confirmada em 2002 pelos índios acima citados ao Instituto Socioambiental. Estes também disseram que a denominação "Tingui" tem como origem uma árvore com esse nome, cujas folhas foram utilizadas no acampamento erguido durante a vinda para Olho D´Água do Meio.

 Língua

Os Tingui-Botó falam o português à moda das populações rurais do nordeste. Alegam, porém, falar sua língua ancestral no ritual secreto do Ouricuri. De acordo com o cacique Eliziano de Campos e o pajé Adalberto Ferreira da Silva, sua língua é designada Dzbokuá.

Nesse sentido, o etnólogo Ugo Maia Andrade afirma que o cariri era uma língua corrente em uma extensa área no interior do Nordeste e estava dividido em quatro dialetos, entre os quais o "dzubukuá". Por se tratar de uma língua não mais falada usualmente pelas populações locais, seu estudo linguístico é precário e quase todo baseado nas gramáticas elaboradas por missionários que estiveram na região durante os séculos XVII e XVIII (sobre o assunto, ver a página sobre o povo Tumbalalá).

 História e etnogênese

Os Tingui-Botó foram reconhecidos como grupo indígena em 1980 por Clovis Antunes, professor da Universidade Federal de Alagoas, que enviou documentação à Funai. Trata-se de um dos casos de resgate da identidade étnica de uma população anteriormente dispersa, em processo de etnogênese.  À substituição de uma identidade "acanhada" de caboclo pelo orgulho étnico de ser índio, seguem-se desdobramentos políticos tais como a reinvindicação de posse de terras por direito imemorial e a luta pelo seu reconhecimento pelo órgão tutelar.

Festividade Tingui Botó

Até 1983 possuíam apenas a pequena área de cerca de dois hectares coberta de mata para preservar o segredo do Ouricuri das populações não indígenas circunvizinhas. Moravam num arruado em Olho d'Água do Meio e trabalhavam nas fazendas da região como meeiros (com direito à metade da colheita do que plantavam) ou alugados (contratados para executar determinada tarefa agrícola em troca de pagamento).

Em 1983, a FUNAI instalou um posto indígena na área. No ano seguinte, o órgão adquiriu duas pequenas propriedades: a Fazenda Boacica, com 30 hectares, e a Fazenda Olho d'Água do Meio, de 31,5 hectares. Em 1988 comprou a Fazenda Ypioca, com 59,6 hectares. Assim, hoje a comunidade dispõe de uma área de 121,1 hectares.

Produzem artesanato de palha, além de cocares, colares e bordunas.

 Localização

Terra Indígena Tingui Botó

A comunidade Olho d'Água do Meio dista três quilômetros de Feira Grande, 23 de Arapiraca e 155 de Maceió. Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), existe uma escola na área para atender à comunidade indígena. Para atendimento médico, a população tem de deslocar-se para as cidades de Arapiraca ou Maceió.

 Nota sobre as fontes

Há somente um trabalho exclusivamente dedicado aos Tingui-Botó. É monografia de Benildo Gomes de Farias, Tingui-Botó: uma etnografia, apresentada como monografia de graduação na Univeridade Federal de Alagoas.

Ritual Tingui Botó

Tratando-se de uma denominação recente, nos levantamentos regionais mais antigos os Tingui-Botó são referidos com outros nomes. Assim, Hohenthal Jr., em As tribos indígenas do médio e baixo São Francisco (1960), identifica-os enquanto "shocós" de Olho d'Água do Meio; Duarte, em Tribos, aldeias e missões de indios nas Alagoas (1969), a eles se refere como "shocó"ou "xocó". Há também referências a eles em Claudio Sant'Ana, Alagoas seus índios e suas terras (1991), e no Atlas das Terras Indígenas do Nordeste (1993).

 Fontes de informação

DUARTE, A. Tribos, aldeias e missões de índios nas Alagoas. Rev. do Instituto Histórico, Maceió : Instituto Histórico, s.n., 1969.
 

FARIAS, Benildo Gomes de. Tingui-Botó : uma etnografia. Maceió : UFAL, 1998. 94 p. (Monografia para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais)
 

HOHENTHAL JÚNIOR, W. D. As tribos indígenas do médio e baixo São Francisco. Rev. do Museu Paulista, São Paulo : Museu Paulista, v. 12, n.s., 1960.
 

MUSEU NACIONAL. PETI. Atlas das terras indígenas do Nordeste : Alagoas, Bahia (exceto sul), Ceará, Paraíba, Pernambuco, Sergipe. Rio de Janeiro : Museu Nacional-Peti, 1993. 93 p.
 

RONDINELLI, Rosely Curi (Coord.). Inventário analítico do arquivo permanente do Museu do Índio - Funai : documentos textuais 1950-1994. Rio de Janeiro : Museu do Índio, 1997. 150 p.
 

SANT'ANA, Claudio L. F. Alagoas seus índios e suas terras. Recife : Funai, 1991.

Tapeba

 
Tapeba em Toy Art

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
184TapebaTapebano, Perna-de-pau
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
CE6600Funasa 2010



Os Tapebas são produto de um processo histórico de individuação étnica de frações de diversas sociedades indígenas nativas reunidas na Aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia - que deu origem ao município de mesmo nome, na região metropolitana de Fortaleza, Ceará. Em virtude do modo particular como se constituem e se inserem enquanto grupo distinto na sociedade regional, a discussão em torno da sua identidade indígena tem marcado a sua história recente, em particular o processo de reconhecimento oficial do seu território pelo Estado.

 Informações gerais

Até a década de 80, o estado do Ceará, assim como os do Piauí e do Rio Grande do Norte, eram dados, pelos registros da FUNAI e pelos levantamentos produzidos por antropólogos e missionários, como os únicos estados no Brasil, além do Distrito Federal, em que inexistiam índios. No Ceará, entretanto, a presença indígena deixou de ser ignorada quando a então Equipe de Assessoria às Comunidades Rurais - hoje, Equipe de Apoio à Questão Indígena - da Arquidiocese de Fortaleza passou a atuar no município de Caucaia, junto à coletividade dos Tapeba.

Os Tapeba durante visita do Fundo Brasil realizada em 2015 (Foto: Jarbas Oliveira)

"Tapeba", "tapebano" ou "perna-de-pau" são atribuições étnicas pelas quais uma dada coletividade se identifica e é reconhecida na paisagem social local do município de Caucaia como constituindo um grupo distinto. Esse reconhecimento estende-se ao nível regional, dada a repercussão, nos meios de comunicação, do movimento reivindicatório que os Tapeba encamparam, com o apoio da Arquidiocese de Fortaleza, visando a proteção de algumas áreas que ocupam hoje (entre as quais, o manguezal às margens do Rio Ceará) e a recuperação do território da antiga Aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia, exigindo junto à FUNAI a demarcação de uma área indígena.

Tapeba também é um topônimo. É o nome de uma lagoa e um riacho periódico - afluente da lagoa da Barra Nova (ou do Poço) - da área rural do distrito da sede do município de Caucaia, na proximidade dos quais moram famílias Tapeba, numa área onde a sua presença é majoritária. Já em 1721, registrava-se o topônimo Tapeba para a referida lagoa. O emprego toponímico do termo tapeba, entretanto, é mais freqüente para designar uma área mais inclusiva, genérica e de limites vagamente definidos, abarcando a lagoa e o riacho homônimos, limitando-se ao sul com a lagoa dos Porcos, ao norte com a localidade de Pedreira e o povoado do Capuan, a oeste com a localidade de Cutia e a leste com o rio Ceará. Às vezes, contudo, estas localidades mesmas acabam sendo englobadas pelo topônimo Tapeba, dando ao observador a impressão de que - como eles dizem - "é tudo um lugar só, tudo é só uma terra só".

Tapebano, assim, é uma locução adjetiva para "do Tapeba", "da lagoa do Tapeba". Perna-de-Pau, por sua vez, constitui uma referência ao apelido de um ancestral ao qual comumente remontam ao traçar a sua genealogia - no que diz respeito a pelo menos um segmento dos Tapeba, a família de Zabel.

A etimologia da palavra tapeba é tupi, segundo acordo entre vários autores (como Alfredo Moreira Pinto e Thomaz Pompeu Sobrinho), constituindo uma variação fonética de itapeva (de itá/tá, i. é, "pedra"; e peva, i. é, "plano", "chato"): "pedra plana", "pedra chata", "pedra polida", etc. O nome do município em que se encontram também é de origem tupi, representando uma variação de ka'a-okai (de ka'a, i. é, "erva", "mato", "bosque", "floresta"; e okai, i. é, "queimar"): "mato queimado", "bem queimado está o mato", "queimada", "mato que se queima". A toponímia local é quase toda ela de origem tupi: Capuan, Iparana, Icaraí, Jandaiguaba, Paumirim, Pabussu, Tabapuá etc.

A estimativa populacional de 1.150 pessoas foi estabelecida a partir de censo genealógico realizado em algumas localidades, comparado e cruzado com os dados do "Cadastramento dos Índios Tapeba", realizado pela Arquidiocese de Fortaleza entre março e setembro de 1986 - que apontou 914 pessoas em 185 famílias. Contudo, esse é um dado difícil de ser estabelecido de modo definitivo devido à dinâmica mesma da fronteira étnica. Eles vivem em intenso e permanente contato com "brancos": seja no desenvolvimento de atividades produtivas, seja em razão de casamentos interétnicos, seja pela manutenção de relações de proximidade social através da constituição de relações de parentesco fictícias, seja pela cordialidade - em alguns casos - das relações de vizinhança com "brancos".

 Caucaia, os grupos locais Tapeba e sua economia

Dos municípios da região metropolitana de Fortaleza, Caucaia é a cidade mais próxima da capital, distando 16 km em linha reta. Com sua sede a uma altitude de 29,91 metros acima do nível do mar, o município de Caucaia é mais acidentado do que plano. Começam nele as elevações que vão constituir o cordão central do estado do Ceará. É um dos municípios cearenses mais ricos em lagoas permanentes. Os rios de Caucaia, entretanto, caracterizam-se por serem temporários, como é o caso do riacho Tapeba. Sua principal via fluvial é o rio Ceará, que corta o município em sua maior extensão, dirigindo-se de sudoeste a nordeste, com um curso de aproximadamente 50 km. Às margens do rio Ceará, nas proximidades da faixa litorânea, cresce uma exuberante vegetação de mangue. A cobertura vegetal na área do município é caracterizada, predominantemente, por caatingas, capoeiras e carrascos. O clima do município é ameno, com duas estações: a chuvosa, o "inverno", que se estende de janeiro a junho; e a seca, o "verão", de julho a dezembro.

Terra Indígena Tapeba

As áreas em que os Tapeba residem constituem grupos locais de tamanho, padrão de assentamento, densidade e localização distintos, dentro da geografia multifacetada do município. Ocupando nichos diferentes, os Tapeba atualizam formas diferenciadas de apropriação dos recursos naturais, basicamente extrativistas e sazonais. Assim, os grupos locais apresentam caracteres contrastantes. Há desde áreas habitadas majoritariamente por tapebanos, como a paisagem rural do Tapeba (lagoa do Tapeba, Cutia, lagoa dos Porcos e Pedreira Sta Terezinha), em que trabalham na palha, na agricultura (como diaristas e arrendatários) e no "negócio com frutas"; até áreas onde a presença deles é residual, como é o caso dos bairros do perímetro urbano da sede do município (Capoeira/bairro Pe. Júlio Maria, Açude, Cigana, Itambé, Grilo, Vila São José, Vila Nova/bairro Sta. Rita), em que predominam o comércio ambulante, os pequenos serviços e o trabalho assalariado. Alguns desses bairros já estão crescendo para dentro dos imóveis rurais que os limitam. Há também áreas com um padrão de assentamento singular, como é o caso do Trilho, nas localidades de Paumirim e Capuan, e da(s) Ponte(s), localidade de Soledade: no primeiro, as casas encontram-se distribuídas, longitudinalmente, às margens da Ferrovia Fortaleza-Sobral, num trecho de 2,5 km., em terreno da R.F.F.S.A., entre as barreiras do "corte" e as cercas das propriedades rurais vizinhas; e na segunda, as casas se situam às margens do rio Ceará, nas únicas áreas de aterro sólido do mangue, geradas quando da pavimentação da rodovia BR-222 - cuja ponte sobre o mesmo rio empresta o nome à localidade. No Trilho, vamos encontrar os Tapeba negociando com frutas, fabricando carvão vegetal, coletando mudas de plantas de valor ornamental e capturando animais silvestres nas serras para a venda. Já nas Pontes, a pesca artesanal não colonizada de crustáceos, no mangue, e a retirada de areia do leito do rio Ceará constituem as atividades produtivas principais.

 Elementos de história indígena local

A história dos grupos locais e localidades onde hoje vivem os Tapeba relaciona-se às mudanças recentes nas formas de apropriação fundiária anteriormente obtidas no Tapeba e no Paumirim - tidos como locais tradicionais de habitação deles. Os Tapeba não conheceram apenas uma única modalidade de apropriação fundiária e uso dos recursos naturais disponíveis. Partindo dos dados da historiografia disponível, que caracteriza uma situação de instabilidade, no século passado, quanto à destinação das terras dos extintos aldeamentos indígenas, poder-se-ia caracterizar a situação dos Tapeba como o produto de dois resultados históricos distintos, geralmente encontrados em áreas de colonização antiga: (1) a desagregação de domínios territoriais pertencentes à igreja, onde tenham passado a prevalecer formas de uso comum, onde a "santa" (Na Sa dos Prazeres) apareceria como proprietária; e (2) a perda da posse de eventuais domínios titulados, que teriam sido entregues formalmente a grupos indígenas sob a forma de doação ou em retribuição a serviços prestados ao Estado.

Esse foi o caso em Caucaia. As fontes disponíveis mencionam que o município de Caucaia origina-se da Aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia, missionada regularmente pelos jesuítas entre 1741 e 1759, mas cuja origem remonta a uma época imprecisa do século XVIII, entre 1603 e 1666. A natureza das fontes não possibilita determinar com rigor a procedência e a composição do contingente indígena originalmente reunido ali: se os Potiguara que ali já se encontravam comerciando com os franceses quando da expedição de Pero Coelho, em 1603 (Potiguara esses que, ao refluírem de suas derrotas para os portugueses, foram responsáveis pelo deslocamento para o interior dos Cariri e Tremembé - "senhores originais da orla cearense" -, segundo Carlos Pereira Studart); se os 200 ou 800 Potiguara que compuseram o próprio exército recrutado por Pero Coelho; se os Potiguara e Tabajara que o Pe. Luís Figueira logrou fazer acompanhá-lo no retorno da sua primeira missão à serra da Ibiapaba; ou se todas essas alternativas.

Os Tapeba durante manifestação em Caucaia (Foto: Jarbas Oliveira)

Carlos Studart Fo informa que os Potiguara obtiveram do governo português várias datas de sesmaria, possivelmente em retribuição à sua colaboração na supressão dos levantes "tapuios". As missões, por sua vez, foram beneficiadas na conjuntura de expansão e consolidação da administração religiosa do espiritual e do secular dos aldeamentos. O Barão de Studart registra que, em 23 de novembro de 1700, Alvará em forma de lei concede a cada missão uma légua de terra em quadra para sustentação dos índios e missionários. Há registros de concessões de datas e sesmarias a colonos e a índios, em Caucaia, para a primeira metade do século XVIII. Em 31 de março de 1723, João Brigido registra uma concessão feita pelo Capitão-Mór da Capitania "ao principal da aldeia de Caucaia João Paiva e mais officiaes e índios, para elles e seus herdeiros, de três legoas de terra com uma de largura, meia legoa para cada lado, fazendo peão no olho d'água chamado Taboca".

Implementado o Diretório Pombalino, os jesuítas são expulsos e a Aldeia de Caucaia é erigida em Vila Nova de Soure, em 1759. Aos Potiguara que ali encontravam-se aldeados ter-se-iam reunido frações Cariri, Tremembé e Jucá, oriundas de deslocamentos forçados de aldeamentos do interior para os do litoral (com o intuito de facilitar a administração) ou de solicitações dos próprios índios - conforme deixa entrever correspondência entre os diretores de índios dessas Aldeias e o Capitão-Mór da Capitania.

Extinto o Diretório Pombalino em 1798, há relatórios dos Presidentes da Província do Ceará que revelam uma situação singular, na qual, em meados do século XIX, ainda existiriam índios reivindicando a restituição do Diretório e dos bens seqüestrados, sem falar na proposta de restabelecimento das Aldeias de Soure e Vila Viçosa da parte da Assembléia Provincial. Vila Nova de Soure permanece sendo mencionada como "vila de índios", desde a sua criação até o segundo terço do século passado. Em 1863, por ocasião da instalação da Assembléia Legislativa Provincial, o Presidente da Província do Ceará dá por extinta a população indígena da província e afirma que os patrimônios territoriais das Aldeias "foram mandados incorporar à fazenda por ordem imperial", mas ressalvando contraditoriamente: "respeitando-se as posses de alguns índios". Entretanto, Alfredo Moreira Pinto reproduz o conteúdo de uma escritura de doação de terras feita por Francisco Barros de Souza Cordeiro e sua mulher à "Nossa Senhora dos Prazeres desta Real Villa de Soure", onde se faz menção aos "possuidores índios desta mesma villa".

As referências, portanto, destacam que a história da área em que hoje se situa o município de Caucaia e vivem os Tapeba, está relacionada ao trânsito das populações aborígenes que ali habitaram antes e depois da chegada dos primeiros colonizadores, e à conquista e ao povoamento pelos europeus (franceses, holandeses e portugueses) do que hoje é a costa cearense. Isso faz com que se sustente hoje a tese de que os Tapeba sejam o resultado de um lento processo de individuação étnica dos contingentes indígenas originários (Potiguara, Tremembé, Cariri e Jucá) reunidos sob a autoridade da administração colonial.

 A "terra da santa" e as formas de apropriação fundiária
Quaisquer que tenham sido os seus domínios, os Tapeba não conseguiram assegurar a manutenção destes, geração após geração, de modo pleno até os dias de hoje. Expropriados de suas terras por vários mecanismos de troca desigual, eles foram levados a ocupar domínios da União e a residir em bairros do perímetro urbano da cidade.

Os Tapeba e demais regionais referem-se com alguma freqüência à "terra da santa" (Nossa Senhora dos Prazeres). Esta noção de um território dado à santa, expressa nas referências ao passado atualizadas por eles, guarda coerência com os registros históricos de concessões territoriais feitas à missão e ao líder dos índios, bem como com o que ocorreu a esse patrimônio territorial, com as sucessivas mudanças no ordenamento da administração dos indígenas e na legislação fundiária.

Ao lado da condição de "moradores" em propriedades de terceiros, aos quais eles tinham que retribuir com "agrados" da colheita anual, mas com o uso relativamente consentido dos recursos naturais, e da condição de controle livre e individual da terra e dos recursos básicos por um ou outro grupo doméstico (situação que se obtinha num passado recente nas áreas do Tapeba e do Capuan), os Tapeba também conheceram e atualizaram sistemas de "uso comum". Alguns grupos de descendência - isto é, os que consistem de todos os descendentes, através de homens e mulheres, de um ancestral comum - identificados principalmente no Paumirim, exerceram o controle dos recursos naturais básicos de determinadas áreas durante um longo período de tempo, segundo regras específicas consensualmente acatadas nos meandros das relações sociais estabelecidas entre os grupos domésticos que compunham aquelas unidades.

Observa-se, assim, uma multiplicidade de soluções históricas produzidas e conhecidas pelos Tapeba na relação com a terra e os recursos naturais valorizados (madeira para lenha, caça, pesca, mananciais, açudes naturais, lagoas, rios), bem como com suas benfeitorias (fruteiras, taperas, etc.). A valorização progressiva da propriedade imobiliária rural na zona metropolitana da capital está na raiz da desagregação das relações sociais anteriormente vigentes, da formação dos atuais grupos locais em que vivem os Tapeba e da mudança no caráter da relação de moradia que se verifica hoje.

Na segunda metade deste século, vamos encontrar referências aos Tapeba em matérias de jornais de grande circulação, nas quais são destacadas as péssimas condições em que vivem. O Jornal do Brasil de 7 de abril de 1968 publica matéria intitulada "Indígena no Ceará não é nem cidadão", em que se descreve "a forma primitiva de vida [sic] que cultivam" e - o que é interessante - o fato deles não existirem legalmente, dado o desconhecimento oficial de sua existência pelo governo estadual e pela FUNAI. Já em 6 de julho de 1969, O Estado de S. Paulo publica matéria intitulada "O triste fim dos indígenas cearenses. Nos costumes toda decadência", em que se descreve as condições de vida subumanas dos Tapeba ("farrapos humanos", "animais" etc.) e o fato deles não terem "ninguém no governo que se importe com eles". Mais uma vez, o Estado, em 2 de maio de 1982, publica artigo do correspondente local, Rodolfo Espíndola, intitulado "Os últimos Tapeba, na miséria", descrevendo as suas condições de vida e informando que vivem em palhoças às margens do rio Ceará.

 Território, parentesco e estigma

O referente toponímico e territorial, já referido, vincula-se estreitamente à referência "familiar", isto é, ao modo como as pessoas traçam ou vêem traçada sua descendência por relações de parentesco com ancestrais que teriam vivido naquelas áreas. No Tapeba, destaca-se a figura de Manoel Raimundo, "cabeça" dos "troncos velhos" da lagoa do Tapeba. No Paumirim, a figura emblemática de José Alves dos Reis, o Zé Zabel "Perna-de-Pau", tido como a última forte liderança, o "último Tuxaua", após a morte do qual conta-se que os Tapeba do Paumirim, que viviam sob a sua autoridade, se dispersaram numa espécie de diáspora. O caso singular de poliginia sororal que ele manteve e os muitos filhos que ele teve com as suas duas mulheres geraram um grupo de descendência claramente delimitado, alguns elementos do qual (notadamente, da segunda geração descendente) casaram entre si.

O modo como são pensadas e apropriadas as relações de parentesco, como é figurada a unidade do grupo e como se expressa o sentimento subjetivo de constituírem um todo, é atestado e instituído pelo uso do termo "família", recorrentemente associado ao termo tapeba: "família de tapeba". Do mesmo modo, diz-se que os "Zabel" (supracitados), os "Coco", os "Jacinto", os Alves dos Reis, os Alves de Matos, os Teixeira de Matos, os Alves Teixeira e outros grupos de descendência irrestrita são (ou não são) Tapeba, da "família de tapeba" (dependendo do contexto de interação definido).

A esses fatos básicos (procedência comum e descendência irrestrita) vincula-se uma série de atributos desabonadores. Tapeba funcionou - e em certos circuitos e contextos ainda funciona - como um insulto e um xingamento, dada a informação social pejorativa que o termo veicula. Está associado a condutas como comer carne podre (carniça), consumo de álcool, promiscuidade, desonestidade, desrespeito pela propriedade alheia, indolência e indisposição para o trabalho, bem como à imundície em que vivem e à imagem de miséria, em geral, a que estão associados. Essa "imagem pública" dos Tapeba ainda tem muita força no contexto local, sendo os regionais socializados nessa concepção sobre a conduta dos Tapeba e na expectativa de que se comportem costumeiramente assim. É comum alguns Tapeba assentirem em alguns elementos desse reconhecimento negativo de que são objeto, como definidores das características singulares que os distinguem.

 Luta pela terra

Foi com esse grupo estigmatizado que a Equipe de Assessoria às Comunidades Rurais da Arquidiocese de Fortaleza começou a trabalhar em Caucaia em 1984, assistindo indistintamente os Tapeba e os "brancos", e tentando equacionar os problemas de ambos, "índios" e pequenos posseiros. O seu projeto original consistia em dar suporte tanto a "índios" e "brancos" numa luta comum pela terra - o que levou à criação, em 1985, da Associação das Comunidades do Rio Ceará, com representação paritária dos Tapeba e dos "brancos", meio a meio (da presidência ao conselho, passando pela tesouraria e a secretaria). Em parte devido à sua própria forma de atuação - marcadamente assistencialista num primeiro momento - e em parte devido a uma mudança de conjuntura - o naufrágio do Plano Nacional de Reforma Agrária - a Equipe descuidou dessa proposta.

De uma solução na qual o interlocutor principal no governo era o extinto Mirad/Ministério da Reforma Agrária, a Equipe Arquidiocesana concentrou seus esforços em equacionar a demanda por terra propondo a criação de uma Área Indígena no município de Caucaia, beneficiando os Tapeba. Estes, então, começaram a estabelecer novas relações (com a ação da Igreja e com várias agências governamentais) e novas alternativas de futuro se abriram para eles. Contudo, o que foi mais importante para a(s) sua(s) auto-imagem(ns) e a(s) imagem(ns) que os outros têm deles foi a transição de "Tapebas imundos" para índios sujeitos de direitos e a reativação de vínculos com parentes efetivos e parentes distantes.

Vítimas constantes das arbitrariedades da polícia e das ameaças dos supostos proprietários de terra, principalmente na área do mangue do rio Ceará, os Tapeba viram-se na situação, inédita para eles, de poder reverter a correlação de forças - até então, completamente desfavorável a eles: a luta pelo direito à pesca de crustáceos na área de mangue, à margem esquerda do rio Ceará, contra as pressões dos condôminos da Fazenda Soledade; a luta pela posse de terreno da marinha à margem direita do rio Ceará, ainda em área de mangue, contra a transferência do foro para as indústrias T.B.A. (Técnica Brasileira de Alimentos) e Cerapeles; as denúncias contra a localização da rampa de lixo da companhia de limpeza urbana do município nessa mesma localidade; a luta pelo direito dos Tapeba da Capoeira continuarem retirando areia do leito do rio Ceará, contra as violentas tentativas de intimidação de vereadores que haviam arrendado a Fazenda Malícias, em 1988, no interior da qual corre o rio Ceará; entre outras.

A discussão em torno da identidade indígena dos Tapeba é o elemento que vem norteando o processo de reconhecimento jurídico-administrativo da TI Tapeba desde o seu início, em 1985. A TI Tapeba foi identificada em outubro de 1986 por um Grupo de Trabalho (GT) constituído por um sociólogo e um engenheiro agrônomo da Funai, e um representante da Equipe Arquidiocesana.

O levantamento fundiário dos imóveis rurais incidentes na Área Indígena Tapeba, realizado em agosto de 1987, foi a etapa mais conflitiva do processo, marcada por resistência ativa e passiva dos supostos proprietários de imóveis rurais à vistoria dos mesmos. São dessa época as declarações públicas de alguns potentados locais contestando a existência histórica dos índios Tapeba. Foram levantados, à época, 118 ocupantes não índios, sendo 55 supostos proprietários com títulos registrados em cartório, 61 pequenos posseiros e dois foreiros.

De lá para cá, o processo sofreu inúmeras reviravoltas. Foi arquivado em julho de 1988 por decisão do "grupão" - o Grupo de Trabalho Interministerial instituído pelo Decreto 88.118/83 como instância com a atribuição formal de avaliar as propostas de criação de áreas indígenas. O "grupão", cuja composição foi modificada pelo Decreto 94.945/87, determinou em 1988 que a área proposta pela Funai não deveria ser considerada como terra indígena, "tendo em vista as dúvidas quanto à etnia dos remanescentes", mas "que se aguardassem, para enriquecer o processo, novos dados acerca da etnia, quando então a Funai voltaria a analisar o caso".

Na ocasião, houve uma reação generalizada contra a decisão do "grupão", não só dos Tapeba, da Arquidiocese e de organizações de apoio como o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e o Comitê Pró-Tapeba, mas também do próprio Governo do Estado, da Assembléia Legislativa e da Procuradoria Geral da República no Estado.

Reaberto em maio de 1989, ao nível da Assessoria da Superintendência de Assuntos Fundiários da Funai, por considerar-se "indiscutível tratar-se de terra de ocupação tradicional e permanente indígena", foi necessário aguardar mais oito anos para que o Ministro da Justiça, Íris Rezende, assinasse uma portaria, declarando a AI Tapeba como território tradicional indígena.

Dessa vez foi a Prefeitura Municipal de Caucaia, por meio do Prefeito José Gerardo Arruda, que reagiu e contestou a Portaria declaratória, com base na alegação de vício de procedimento. O mandado foi acatado por unanimidade e a portaria anulada, perdendo toda a validade.

Como se não bastasse isso, a situação de destinação efetiva da terra complicou-se no fim da década de 1990. Apesar da Funai ter instalado um posto indígena na área, as notícias na imprensa local e da Equipe Arquidiocesana de Apoio à Questão Indígena apontavam uma situação de agravamento da presença não-indígena na área, patrocinada por supostos proprietários de terra, antagonistas dos Tapeba, que têm promovido loteamentos irregulares. O agravamento das tensões levou ao assassinato de dois líderes tapeba em 1996 e 1997.

 Nota sobre as fontes

As monografias etnográficas mais relevantes, compreensivas e abrangentes sobre os Tapeba são aquelas de autoria do autor do verbete (dissertação de mestrado Tapebas, Tapebanos e Pernas-de-Pau, defendida no Museu Nacional, UFRJ, em 1993) e da antropóloga norte americana Karen Hjerpe (tese de Ph.D. em Antropologia Social, apresentada na Universidade da Flórida em 1998).

Há também artigos de ambos sobre a questão da fronteira e da identidade étnica, a relação destas com concepções em torno do corpo e práticas alimentares, a organização das atividades produtivas e outros aspectos da sociedade e cultura dos Tapeba.

Além desses trabalhos, há um conjunto diversificado de informações e relatórios elaborados por técnicos de órgãos governamentais (Rita Heloisa de Almeida, Jussara Vieira Gomes, Élia Menezes Rola) produzidos no âmbito do processo de reconhecimento oficial dos Tapeba e do seu território, alguns deles constituindo as primeiras tentativas de oferecer um quadro integrado da sociedade e da história dos Tapeba - sintetizando informações e fontes antes dispersas.

Há, por fim, aqueles trabalhos produzidos por intelectuais cearenses de diferentes gerações que têm em comum a orientação historiográfica, ainda que com perspectivas muito distintas - alguns, inclusive, com pretensão etnológica, como os trabalhos de Carlos Studart pai e filho.

Encontramos desde pequenos verbetes pontuais, até obras de maior envergadura. Destacam-se pela sua contemporaneidade e seu esforço de síntese - tanto analítica, quanto enciclopédica - sobre os índios do Ceará, os trabalhos de José Cordeiro e Maria Sylvia Porto Alegre. Tratam-se de trabalhos que, ainda que não especificamente sobre os Tapeba, aportam dados e informações sobre a história indígena do Ceará e da colonização deste, relevantes para a compreensão da situação atual.

 Fontes de informação

AIRES, Jouberth Max Maranhão Piorsky. A escola entre os índios Tapeba : o currículo num contexto de etnogênese. Fortaleza : UFCE, 2000. 165 p. (Dissertação de Mestrado)
ALMEIDA, Geraldo Gustavo de. Perna de Pau. In: HERÓIS indígenas do Brasil : memórias sinceras de uma raça. Rio de Janeiro : Cátedra, 1988. p. 103.
ALMEIDA, Rita Heloisa de. Relatório de viagem ao município de Caucaia, Ceará. Brasília : CTI/SG/MIRAD, 1986. 51 p.
BARRETTO FILHO, Henyo Trindade. Economia Tapeba : atividades econômicas e suas formas de organização. Rio de Janeiro : Peti, 1987. (paper)
. Os índios Tapebas. In: CORDEIRO, José. Os índios no Siará : massacre e resistência. Fortaleza : Hoje/Assessoria em Educação, 1989. p. 191-3
. A invenção multilocalizada da tradição : os tapebas de Caucaia. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, v. 96, p. 103-11, 1997.
. Tapebas, tapebanos e pernas-de-pau : etnogênese como processo social e luta simbólica. Rio de Janeiro : UFRJ, 1993. 692 p. (Dissertação de Mestrado)
. Tapebas, tapebanos e pernas-de-pau de Caucaia, Ceará : da etnogênese como processo social e luta simbólica. Brasília : UnB, 1994. 32 p. (Série Antropologia, 165)
CORDEIRO, José. Os índios no Siará : massacre e resistência. Fortaleza : Hoje/Assessoria em Educação, 1989. 272 p.
GOMES, Jussara Vieira. Breve informação sobre os índios do município de Caucaia, Estado do Ceará. Rio de Janeiro : Museu do Índio, 1985.
. Relatório sobre os índios do município de Caucaia, Ceará. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 1985.
HJERPE, Karen. Food, nutrition and identity in Northeastern Brazil : a case study among the Tapeba of Ceara. Gainsville : Univer. of Florida, 1998. (Ph.D. Thesis)
OLIVEIRA, Kelly G. Cultura e memória : oralidade na transmissão das lendas e rituais indígenas tapeba. Fortaleza : UFCE, 2004. 78 p. (Monografia em Comunicação Social).
PINHEIRO, Joceny (Org.). Ceará, terra da luz, terra dos índios : história, presença, perspectivas. Fortaleza : MPF ; Funai, 2002. 166 p.
PINTO, Alfredo Moreira. Tapeba. In: APONTAMENTOS para o diccionário geographico Brasileiro. v. 3. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional, 1899. p. 559.
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Ethymologia de algumas palavras indígenas. Rev. Trimensal do Instituto do Ceará, Fortaleza : Typ. Studart, n. 33, p. 208-27, 1919.
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Aldeias indígenas e povoamento no Nordeste no final do século XVIII : aspectos demográficos da "cultura do contato". (Trabalho apresentado no GT "História Indígena e do Indigenismo", no XVI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambú-MG, 1992).
ROLA, Élia Menezes. Caracterização da situação atual dos Tapeba. Brasília : CTI/Mirad, 1986. 34 p. (Informação Técnica, 71)
. Sobre a situação atual dos Tapeba, Caucaia-CE. Brasília : CTI/Mirad, 1986. (Informação Técnica, 37)
STUDART, Carlos Pereira. 1926. Contribuição para a ethnologia brasileira : as tribus Indígenas do Ceará. Rev. Trimestral do Instituto do Ceará, Fortaleza : s.ed., v. 40, p. 39-53, 1926.
STUDART, Guilherme. Datas e factos para a história do Ceará. Fortaleza: Typ. Studart, 1896.
STUDART FILHO, Carlos. Notas históricas sobre os indígenas Cearenses. Rev. Trimensal do Instituto do Ceará, Fortaleza : s.ed., v. 45, p. 54-103, 1931.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Pitaguary

Toy Art Pitaguary

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
172PitaguaryPotiguara, Pitaguari

UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
CE3793Funasa 2010


O Ceará foi a primeira província a negar a existência da presença indígena em seu território, ainda no século XIX. Como resultado dessa medida, extensas faixas de terra tornaram-se disponíveis, o que beneficiou de forma direta a pecuária extensiva. Nesse contexto, povoados originados pela expansão dessa atividade foram transformados em vilas e o Estado passou a exercer controle crescente sobre a mão-de-obra local, uma mão-de-obra que era basicamente formada por índios submetidos ao regime de trabalho forçado.

Familia Pitaguary

A hegemonia que o Estado conquistou sobre os índios após a expulsão dos jesuítas deu lugar a um processo de perda de visibilidade indígena que só começou a ser revertido na segunda metade do século XX, quando, a partir da década de 80, dada à mobilização do povo Tapeba, voltou-se a falar sobre a presença indígena no Ceará. Logo em seguida, já no início da década de 90, foi a vez dos Pitaguary, que começaram a se organizar politicamente para pressionar pela demarcação de sua terra.

 Denominação

Pitaguary é a auto-denominação do povo indígena que vive ao pé da serra entre os municípios cearenses de Maracanaú, Pacatuba e Maranguape. Distando aproximadamente 26 Km de Fortaleza, a Terra Indígena (TI) Pitaguary está situada na região metropolitana da capital cearense, tendo em seus arredores uma área caracterizada pela concentração de indústrias e urbanização crescente. Habitada pelos Pitaguary desde há muito, essa terra é socialmente marcada por uma série de acontecimentos que fundam a memória coletiva de seu povo. Foi nela que os “troncos velhos” pereceram, deixando suas “raízes antigas”, assim como é dela que sobrevivem os Pitaguary de hoje.

De origem Tupi, o termo Pitaguary sempre aparece, nos documentos oficiais dos séculos XVII, XVIII e XIX, designando um lugar: uma serra, um sítio ou um terreno. Possivelmente, é um termo derivado de variáveis do nome Potiguara, etnia que teria ocupado extensas terras, já em 1603, na costa cearense. Para o termo “Potiguara” há diversas interpretações e é nelas que se pode perceber a semelhança existente para com a denominação Pitaguary.

Lima Figuerêdo, por exemplo, na obra Índios do Brasil (1939), enumera as variantes de “Potyguaras” como “Pitinguaras” e “Petinguara”. Fernão Cardim, em Tratados de Terra e Gente do Brasil (1939), refere-se aos mesmos grafando sua variante como “Pitiguaras”. Entre essas denominações surgem outras, como “Potiguare”, “Potigoar”, “Pitagoar”, “Pitinguares” e “Petinguares”. Hoje em dia, além da grafia de Pitaguary com “y” no final, são de uso corrente as formas “Pitaguarí” e “Pitaguari”.

 História

Em 1665, após os conflitos que envolveram habitantes nativos, portugueses e holandeses no Ceará, os Potiguara formaram um grande aldeamento original cujo nome se conheceria, mais tarde, como Bom Jesus da Aldeia de Parangaba. Grupos menores daí se destacaram e por volta de 1680 constituíram as Aldeias de São Sebastião de Paupina, de onde se originariam mais tarde as aldeias de Caucaia e a Aldeia Nova de Pitaguari.

Também consta nos arquivos que, em 1707 e 1718, os índios de Parangaba receberam, por data de sesmaria, posses de terra na costa da Serra de Sapupara e na Serra de Maranguape, enquanto os índios de Paupina, em 1722, receberam suas terras na Serra de Pacatuba. Um século mais tarde, em 1854, o sítio Pitaguarÿ era registrado como terra de posse indígena, levando o nome de 21 índios e seu líder, Marcos de Souza Cahaiba Arco Verde Camarão. Acredita-se, assim, que os Pitaguary de hoje descendam diretamente da população que se fixou nessa região, compreendendo parte dos municípios de Pacatuba e Maranguape (do qual se originaria mais tarde Maracanaú).

Já em 1863, foram registradas queixas dos índios contra posseiros que tentaram usurpar suas terras. Em complemento às fontes escritas, nas narrativas Pitaguary o contato é representado como sinônimo de invasão e perda de autonomia. Essas histórias revelam, inclusive, que parte das obras hoje encontradas na localidade de Santo Antônio dos Pitaguary, como a igreja e o açude de mesmo nome, foram construídas à custa de trabalho escravo indígena.

No princípio, contam os narradores indígenas, “era tudo um povo só”, “uma só nação”, levada à divisão em face do contato. Esse era o tempo pretérito, onde havia liberdade. Com a chegada dos “ricos fazendeiros” veio, então, o tempo da “escravidão”, em que os índios foram levados a trabalhar na construção de grandes edificações. A escravidão ou o “cativeiro”, que aparece nessas narrativas, tanto quer significar uma prisão, de fato, quanto, simbolicamente, um estado de sujeição coletiva em que há perda de autonomia, ou seja, perda da liberdade de produzir e se reproduzir.

Além dos fazendeiros, a terra indígena Pitaguary sofreu a ocupação do Estado, através de diversas instituições, durante um período consideravelmente extenso. Essa presença marcou profundamente a história da comunidade de Santo Antônio dos Pitaguary. Ao longo de décadas, em toda a região habitada pelos índios, o chefe da Secretaria de Agricultura do Estado do Ceará parece ter figurado como autoridade máxima, sendo posteriormente substituído pelos representantes da Empresa de Pesquisa Agro-pecuária do Ceará e, mais tarde, pela Polícia Militar do Ceará.

Durante grande parte do século passado, os Pitaguary viveram num regime ditado pelos chamados “doutores”, ocupando, no máximo, posições subalternas que lhes eram destinadas nas casas dos chefes ou nas repartições públicas. Foi somente no início deste século que, após mobilização intensa por parte dos moradores, a Polícia Militar do Ceará, juntamente com a sua cavalaria, foi retirada de dentro da área Pitaguary. Paralelamente, outras medidas (como o fechamento do portão que dá acesso à localidade de Santo Antônio e ao açude de mesmo nome) deram continuidade à retomada, por parte dos índios, da terra que lhes cabia e do patrimônio material nela presente. De um modo geral, a retirada da Polícia Militar do Ceará, o fechamento do açude e o fim da comercialização de bebidas alcoólicas dentro da área representou, cada qual, um marco na história recente desse povo.

 População

Com uma população de índios, todos falantes do português, os Pitaguary apresentam uma tendência ao crescimento populacional, negando, com isso, a tão propagada idéia do “desaparecimento” indígena no Ceará. A maioria dos habitantes da TI Pitaguary por lá sempre morou, mudando apenas de casa, de terreno ou, no máximo, deslocando-se para espaços circunvizinhos. Isso explica a recorrência de inúmeros cruzamentos familiares e de uma rede de parentesco bastante particular, na qual bem se evidencia a preservação, através de várias gerações, de sobrenomes de famílias como “Ferreira da Silva”, “Marcolino”, “Targino”, “Alves”, “Feitosa” e outros.

Nesse contexto, a auto-identificação indígena tem como pilares o sentimento de uma origem e de uma unidade comum que é baseada nos laços de parentesco e que muitas vezes utiliza como recurso a invocação da memória dos antepassados. Isso fica expresso em falas como “porque minha avó era índia, minha mãe era índia”, “meu avô era índio brabo”, “são raízes antigas”, “aqui tudinho é índio, uma coisa só” e “aqui todo mundo se conhece, porque todo mundo se criou junto”. Em conversas cotidianas, também se observa o sentimento de pertencimento a um espaço comum. Igualmente fortes na sustentação da identificação que os Pitaguary fazem de si, esses pilares definem a idéia de uma comunidade que permanece sobre um território que lhes é deveras específico.

 Situação fundiária e localização

Terra Indígena Pitaguary

Os Pitaguary vivem em localidades diversas, dentre as quais estão o já mencionado Santo Antônio, assim como Olho D’Água, Horto (sob a jurisdição do município de Maracanaú) e Monguba (no município de Pacatuba). Essas localidades estão dentro da Terra Indígena Pitaguary.

As localidades aqui mencionadas variam bastante quanto à sua caracterização, à densidade demográfica e o grau de atenção que têm dentro e fora da Terra Indígena. Santo Antônio talvez seja a comunidade de maior visibilidade para os Pitaguary. Isso se deve ao fato de que, além da paisagem exuberante de que dispõe, é o local que concentra a maior parte dos lugares de memória desse povo. Também foi lá que se deu o pontapé inicial para a mobilização em torno da demarcação da terra Pitaguary.

Santo Antônio conta ainda com amplo patrimônio material erguido ao longo dos anos de ocupação estatal. A casa de apoio, o prédio comunitário, a vacaria e outras construções menores são exemplos do que ficou dessa ocupação. Afora isso, são marcos locais a pequena igreja de Santo Antônio, que atrai inúmeros romeiros todos os anos, e o açude, razão de muitos conflitos entre aqueles que defenderam a proibição da entrada de banhistas que invadiam a área de sexta a domingo e aqueles que advogavam pela passagem livre dos mesmos, geralmente representando o interesse de comerciantes locais que lucravam com a venda de bebidas nos finais de semana.

Dada a extensão de sua área verde, em conjunto com a existência de formações rochosas, de rios sazonais e outros recursos naturais, Santo Antônio apresenta imenso potencial, ainda não explorado, para um turismo de caráter ecológico e comunitário. Por outro lado, é também nesta localidade, mais precisamente na parte denominada de Aldeia Nova, que se encontram algumas das moradias Pitaguary mais precárias. A Aldeia Nova continua a sofrer com parco abastecimento de água, o que leva a um sem número de dificuldades, especialmente no que diz respeito à saúde desses moradores.

As localidades do Olho D’Água e Horto, por estarem mais próximas do centro comercial de Maracanaú, apresentam uma paisagem que as difere consideravelmente do Santo Antônio. Parte dessas localidades são também áreas de passagem para municípios vizinhos (como Pacatuba e Maranguape), o que significa dizer que estão mais bem servidas no que se refere a opções de comércio e transporte. Ainda assim, na ponte que liga Olho D’Água à estrada que dá acesso ao Santo Antônio, há uma área desde há muito estigmatizada como “favela”, onde uma parte da população local enfrenta dificuldades que vão desde o alto índice de criminalidade, nos arredores da estrada, até a falta de saneamento básico e a poluição do rio à beira do qual vivem.

Monguba já apresenta um perfil bastante distinto. Fora da jurisdição de Maracanaú, em direção ao centro de Pacatuba, a localidade de Monguba, embora próxima à auto-estrada e tendo como limite uma linha da antiga Rede Ferroviária Federal, está em grande parte encravada no pé da serra, cercada aos fundos pelo verde da mata serrana. Além disso, Monguba destaca-se como um dos lugares de maior atividade cultural dentro da área indígena. Os Pitaguary de Monguba, como gostam de ser chamados, formam um grupo de presença marcante em eventos dentro e fora de sua área. Também dispõem de uma casa de apoio, onde se realizam as reuniões do conselho local e as atividades da escola. Afora tais características, vale ressaltar que a existência de uma tradição religiosa de matriz afro-índio-brasileira faz de vários moradores dessa localidade exímios artistas, alguns dos quais se dedicam, entre outras modalidades, à percussão, à dança e ao teatro. Em adição, percebe-se ainda o valor dado às pinturas corporais e algumas práticas esportivas como o vôlei e o futebol.

 Organização política

No início dos anos 90, quando um pequeno grupo de índios Pitaguary começou a pressionar pela demarcação de sua terra, foi criado o Conselho Indígena Pitaguary – COIPY. Com o passar do tempo, as reuniões quinzenais, que costumavam se realizar numa palhoça construída ao lado da casa do cacique, passaram a acontecer num galpão, no centro da localidade de Santo Antônio, onde anteriormente funcionava parte da Empresa de Pesquisa Agro-pecuária do Ceará – EPACE. Ainda no princípio, o índio Daniel Araújo desenvolvia tanto a função de cacique quanto a de presidente do conselho. Mais tarde, porém, o número de pessoas engajadas na “luta” pela conquista dos direitos indígenas foi crescendo e, como resultado, novos espaços de organização política foram criados, surgindo daí o Conselho de Articulação Indígena Pitaguary – CAINPY e o Conselho Indígena Pitaguary de Monguba – COIPYM.

Cada um destes conselhos se volta para uma região específica dentro da TI Pitaguary e é composto por um presidente, um vice-presidente, um tesoureiro e outros representantes eleitos em reuniões. No ano de 2005, uma quarta organização foi criada, a Associação dos Produtores Indígenas Pitaguary – APIPY, oriunda da necessidade de se pensar a questão da produtividade dentro da área indígena, abrangendo assim tanto Santo Antônio quanto Horto/Olho D’Água e Monguba. Afora isso, existe ainda o Conselho Local de Saúde, com representantes das três comunidades.

À frente de cada uma dessas organizações, as lideranças Pitaguary têm estado cada vez mais envolvidas com a implementação de políticas públicas voltadas para a questão indígena. O dia-a-dia desses representantes inclui negociações com o poder público local, com organizações governamentais e não-governamentais, além do constante debate com lideranças de outros povos indígenas no Ceará. Ao contrário do que ocorria no início dos anos 90, essas lideranças hoje interagem com um público de caráter bastante amplo, estando freqüentemente presentes em eventos de alcance nacional.

O perfil das lideranças indígenas Pitaguary, por sua vez, varia consideravelmente. Há pessoas usualmente denominadas de líderes “tradicionais”, o que aqui inclui principalmente a figura do cacique e do pajé, assim como há as chamadas “jovens lideranças”, que em geral vivenciaram a experiência da educação formal, seja através do programa de “magistério indígena” de nível médio, seja através da realização de cursos superiores em instituições como a Universidade Vale do Acaraú – UVA e a Universidade Federal do Ceará – UFC.

 Memória, cultura e tradição

Há vários lugares de memória na área Pitaguary. Entre esses lugares destaca-se a figura da “mangueira centenária”, da “senzala dos escravos” e da gruta ou do “buraco” de Santo Antônio, para citar apenas alguns. A mangueira é constantemente identificada com a figura da “mãe natureza”, que protege, dá paz e conforto. Ela está no centro das atenções, pois, segundo contam os narradores indígenas, “naquele pé de mangueira, exatamente lá, morreu muito índio enforcado e matado de fome”.

A mangueira é símbolo de um tempo pretérito, mas também de um momento vivido no presente. Ela é a lembrança do que se passou ao mesmo tempo em que se torna cenário de atividades contemporâneas de suma importância. Por exemplo, é sob a sombra da “mangueira sagrada” que, no dia 12 de junho de cada ano, os Pitaguary realizam um evento tradicional, cujo maior objetivo é apresentar o Toré para a própria comunidade e para visitantes que vêm de fora da área indígena.

O Toré Pitaguary é uma dança que se inicia com os participantes dando as mãos e formando um grande círculo, como numa "corrente" de oração. Aqueles que dançam seguem os comandos dos chamados “puxadores” de Toré, geralmente o cacique ou o pajé. O canto é acompanhado pelo som das maracás e muitas vezes conta com a batida de tambores que ficam no centro da roda. É nesse momento que, segundo contam os narradores, a mangueira chora. Dizem que o clamor dos índios escravizados no passado é tão forte que, ao “brincar o Toré”, debaixo da árvore chove. Para o antigo pajé Pitaguary, seu Zé Filismino, a chuva nada mais é do que o choro da mangueira.

O ritual se completa com a ingestão de uma bebida, preparada à base de frutas nativas da região, e servida para todos os membros num recipiente único (uma cabaça) que deve sempre girar em sentido horário. Os Pitaguary não têm o costume de experimentar dessa bebida, a “atanhanga”, em momentos que não sejam o da dança, indicando, com isso, que se trata de uma bebida de uso ritual.

Além do Toré, as narrativas orais constituem um importante elemento da cultura Pitaguary. Nelas, é comum encontrar referências à idéia do contato entre índios e não-índios. Esse momento é representado como uma descoberta fundada sobre a violência e seguida de aprisionamento. Um dos personagens-chave de muitas histórias é o “velho Miguel Barão”, rico fazendeiro que teria usurpado larga faixa de terra pertencente aos índios. O “velho Miguel Barão” personifica a invasão e o processo de escravização de que tanto falam, em suas narrativas, os Pitaguary.

Há também as crenças nos chamados “seres encantados”, presentes nos relatos míticos que têm como personagem principal a “caipora”. A caipora é símbolo da afirmação de um saber indígena sobre a “mata”. Histórias relacionadas a ela aparecem, freqüentemente, quando o assunto é a caça. Ao sair para caçar, dizem alguns mais velhos, “o pessoal vê gemido, vê pancada, vê chiado, fica ouvindo coisa que não vê”. Por que? Porque “ali tem encanto”, “caipora é encantado”. Ao contar essa história, alguns utilizam a referência com o artigo definido “a” (a caipora), outros a colocam no masculino, com o artigo "o", fazendo concordância com a figura do “caboco” ou “caboquinho”.

Assim como o Toré, que de “brincadeira” passou à “arma de guerra”, as narrativas, além do seu caráter lúdico e pedagógico, passaram a ser instrumentos eficazes na demarcação da(s) singularidade(s) do povo Pitaguary, uma singularidade que se quer dizer histórica, política e cultural. Assim, a atividade de rememorar e narrar hoje tem uma importância que extrapola o âmbito da socialização interna desse povo.

 Aspectos sócio-econômicos

Além da caça e a pesca, que complementam parte da dieta alimentar de algumas poucas famílias, a sobrevivência dos Pitaguary é garantida a partir do extrativismo vegetal e mineral, do artesanato, da agricultura familiar, além de um pequeno número de empregos formais, dentro da área indígena, e informais, na zona urbana de Maracanaú e Fortaleza. A agricultura de subsistência, com plantio de mandioca, macaxeira, milho, feijão e jerimum, é praticada por algumas famílias, sendo entretanto inteiramente dependente da estação chuvosa. Já a atividade artesanal engloba um grande número de pessoas, mas tem se mostrado vulnerável aos riscos do extrativismo desmesurado e à sede de lucro dos atravessadores.

Os trabalhos artesanais são feitos a partir de matéria-prima da região. A produção local inclui desde a confecção de colares e trajes típicos, feitos da fibra do tucum e outros materiais, até a fabricação de cerâmica pintada à mão com com diversos tipos de barro. Figurando como o produto artesanal mais popular entre os Pitaguary, os colares são criados a partir de uma infinidade de sementes nativas, tais quais o jiriquiti, a mucunã, a linhaça, o mulungu, a lágrima de Nossa Senhora, o sabonete, o coco-babão e o coco-babaçu. Afora trabalhos manuais mais comuns como o bordado, o fuxico e o crochê, nota-se ainda a produção de cestos e sacolas de palha, além de adornos utilizados em eventos tradicionais, muitos dos quais são feitos de fibras vegetais e penas de aves como a galinha d’água, o anum-branco e o socó-boi.

Quanto às atividades econômicas de extrativismo, as mais comuns são o corte de madeira e a mineração de areia lavada, fonte de renda de muitas famílias nas localidades de Santo Antônio, Horto e Olho D’Água. Todavia, dada a degradação ambiental resultante dessas práticas, as lideranças locais têm demonstrado uma preocupação constante no sentido de se buscar outras formas de geração de emprego e renda dentro da área. Essa necessidade fica ainda mais evidente quando se observa que o corte de madeira acarretou no desmatamento de áreas de tamanho significativo, assim como a retirada de areia contínua provocou o aparecimento de cavidades de profundidade variável. Como conseqüência, a modificação da mata ciliar acabou por causar o assoreamento de alguns rios, com a morte, inclusive, de árvores de inestimável valor medicinal para os Pitaguary.

Os empregos formais estão reduzidos aos postos de trabalho advindos do processo de implementação de políticas públicas voltadas para a saúde e a educação indígena. Há, portanto, vários índios e índias nos cargos de professores das escolas diferenciadas, além de funcionários dos postos de saúde, como agentes de saúde, assistentes de enfermagem, zeladores e vigilantes.

Afora isso, nota-se o investimento de algumas famílias na criação de animais de pequeno porte, como a galinha caipira, a cabra e o porco. De um modo geral, num cenário de poucas alternativas econômicas, as lideranças Pitaguary têm tentado, a partir dos recursos financeiros disponíveis e com o apoio de órgãos governamentais, desenvolver pequenos projetos de auto-sustentação, como a criação de gado para leite, as hortas comunitárias e a agricultura familiar irrigada.

 Assistência e políticas públicas

Em 1993, ainda no início da mobilização pela demarcação da terra indígena Pitaguary, a presença desse povo foi oficialmente reconhecida por um projeto de lei da Câmara Municipal de Maracanaú. A doação de 107 hectares de terra que daí resultou constituiu uma das razões pelas quais várias famílias indígenas voltaram para dentro da área, fixando-se a partir de 1997 na localidade designada de Aldeia Nova dos Pitaguary. Foi nesse mesmo ano que o Grupo de Trabalho – GT da Funai foi enviado para dar início aos estudos de identificação e delimitação da TI Pitaguary.

Em 1998, as lideranças locais já falavam da necessidade de se equipar uma escola que pudesse funcionar como espaço de construção de um saber especializado na cultura local, desenvolvendo para isso um plano educacional que reconhecesse o modo de vida, aqui incluindo a história e a memória, do povo Pitaguary. Naquela época, o cacique Pitaguary lamentava o fato de que não existia “colégio pras crianças” porque não existia “uma escola indígena mesmo”, isto é, “professores índios para ensinar os índios”. Além disso, o cacique enumerava a falta de água, posto de saúde e telefone na área.

Já em 1999, com a pequena doação de uma ONG estrangeira, foi construída a primeira escola indígena Pitaguary, localizada na Aldeia Nova. Deu-se a ela o nome de “Cuaba”. Entretanto, sua edificação foi mais tarde condenada e, por temor aos riscos de um desabamento, a escola acabou sendo desativada. O malogro dessa experiência afetou inúmeras crianças e professores indígenas que, voluntariamente, deslocavam-se a pé ou de bicicleta todos os dias, às vezes por cerca de mais de uma hora, para tornar possível o “sonho” de uma formação diferenciada. O que estava em jogo, na realidade, era a criação de um espaço educacional em que as crianças da localidade, ao invés de marginalizadas, fossem valorizadas.

Enquanto o ideal de uma escola indígena diferenciada sofria tal abalo, a Fundação Nacional de Saúde – Funasa começava a se fazer presente dentro da TI Pitaguary. Além da seleção para o preenchimento de cargos destinados a agentes de saúde indígena, em 2000 realizou-se o cadastramento de mais de setecentos índios Pitaguary. Logo em seguida, em 2001, teve início o Curso de Magistério Indígena Diferenciado, Universidade Federal do Ceará – UFC em parceria com a FUNAI, o qual contou com a participação de diversos povos indígenas do Ceará. Esse curso, apesar de duramente criticado por lideranças Pitaguary, parece ter sido, por outro lado, diretamente responsável por um processo de interação contínua entre jovens de diversos povos indígenas no Ceará. Foi também em 2001 que se inaugurou a escola indígena do Horto, chamada de “Chuí”. Em 2002, embora sem espaço próprio, outra escola indígena, a Itaara, foi reconhecida.

No mesmo ano de 2002, a partir da mobilização dos professores Pitaguary, a escola municipal da localidade de Santo Antônio foi transformada em Escola Municipal Indígena do Povo Pitaguari. Para garantir o funcionamento dela, um convênio entre estado e município foi assinado, com o primeiro se responsabilizando pelo pagamento dos professores e o segundo se encarregando dos funcionários. Nessas escolas, além da educação infantil e o ensino fundamental, tem se tentado promover, ainda que enfrentado inúmeras dificuldades, a educação de jovens e adultos.

Em 2005, um novo cadastramento da Funasa já indicava um aumento da população Pitaguary para um o número de 2.144 pessoas. Até então, o pólo base de saúde do Olho D’Água continuava a funcionar em condições precárias, expondo pacientes e profissionais de saúde a diversos riscos de contaminação. Um novo pólo base foi assim construído, dessa vez dentro da área de Santo Antônio dos Pitaguary, mas devido a uma série de divergências de cunho político e administrativo, a sua estrutura ficou sem utilização até meados de 2006.

De um modo geral, as equipes de saúde que trabalham junto aos Pitaguary não dispõem de profissionais suficientes para atender, simultaneamente, a população indígena e não-indígena, o que vem ocorrendo no caso do posto de saúde do Olho D’Água. Além disso, dada à a instabilidade que esses profissionais enfrentam no que diz respeito aos contratos de trabalho que assinam com as prefeituras locais, os Pitaguary acabam sofrendo com a alta rotatividade de pessoas que ocupam posições de extrema importância dentro dos postos de saúde.

Afora um médico e sua esposa enfermeira que se dedicaram ao longo de mais de seis anos à saúde dos Pitaguary, e com quem esses índios desenvolveram uma relação de empatia e confiança, a maior parte dos demais profissionais de saúde não passaram mais do que alguns meses na área Pitaguary. Essa descontinuidade na relação entre os profissionais de saúde e a população atendida tem se apresentado como um dos maiores desafios para a saúde indígena Pitaguary.

No que diz respeito à presença da Funai, o que se observa é que, devido à precariedade da estrutura e do reduzido número de servidores do Núcleo de Apoio Local - NAL Ceará, esta instituição tem se mantido verdadeiramente ausente da área Pitaguary. Em contraste, nota-se a presença constante de representantes da Prefeitura de Maracanaú e, mais esporadicamente, da Prefeitura de Pacatuba. Em anos recentes, a prefeitura de Pacatuba se utilizou da presença indígena Pitaguary para justificar ajuda financeira destinada à implementação de um Centro de Referência da Assistência Social – CRAS em seu município. No entanto, segundo lideranças locais, esse Centro de Referência nunca atendeu às demandas da população indígena e hoje figura como mais um exemplo da relação autoritária que o poder público às vezes assume em relação à população indígena de seu município.

Em 2006, a Prefeitura de Maracanaú também decidiu trazer, para a área de Santo Antônio dos Pitaguary, um Centro de Referência da Assistência Social – CRAS específico para a população indígena. Funcionando em duas salas da casa de apoio local, o CRAS Pitaguary pretende prestar serviços de atenção básica a famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade, além de fazer o controle dos benefícios advindos de políticas assistenciais dentro da área. Dado seu pouco tempo de funcionamento, o CRAS de Santo Antônio é um experimento ainda em fase de implantação.

Lado a lado com as políticas públicas na área da saúde, educação e assistência social, os Pitaguary contam ainda com recursos financeiros oriundos de duas indenizações pagas às suas comunidades. Isso se deve ao fato de que, em 1999, 2003 e 2004, ocorreu a passagem de linhas de transmissão de eletricidade dentro da área Pitaguary. Da instalação da primeira e segunda linhas, de propriedade da Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco – CHESF, resultou o pagamento de uma indenização no total de 150 mil reais. Já em 2004, com a chegada de mais duas linhas de propriedade do Sistema Transmissão Nordeste – STN, obteve-se o pagamento de nova indenização, dessa vez no valor de 600 mil reais, com acréscimo de uma taxa anual de 75 mil reais durante um período de cinco anos.

Esses recursos já estão oficialmente disponíveis para uso do povo Pitaguary, no entanto a burocracia para a liberação de parte desse montante tem sido tão grande que, no dia 13 de setembro de 2006, uma comitiva de 40 índios decidiu ocupar a Funai até que, em reunião com o seu administrador local, ficasse acordada uma alternativa para uso imediato desse recurso. As lideranças locais têm consciência de que a passagem das linhas de transmissão dentro da TI Pitaguary acarretou na diminuição de sua terra, a qual já é considerada de tamanho insuficiente. Todavia, existe aí a esperança de que, através das indenizações pagas, essa população possa, enfim, encontrar os meios para financiar projetos produtivos que transformem a situação de pobreza na qual muitos dos seus vivem.

 Notas sobre as fontes

Entre vários outros povos, os Pitaguary são mencionados no clássico “Os Aborígenes do Ceará” (1963), de Carlos Studart Filho. Referências a eles também aparecem em compilações tais quais como “Sesmarias Cearenses” (1970), publicação da Secretaria de Cultura do Ceará, e “Documentos para a História Indígena no Nordeste” (1994), volume organizado por Maria Sylvia Porto Alegre, Marlene da Silva Mariz e Beatriz Góis Dantas.

Há uma série de informações e relatórios elaborados por técnicos de órgãos governamentais como parte do processo de reconhecimento oficial dos Pitaguary. Nesse conjunto figuram trabalhos como “Abordagem Histórica com finalidade para suporte ao reconhecimento étnico do Grupo Indígena Pitaguary” (1998), de Soraya Campos de Almeida Assis, e “Relatório de reconhecimento étnico dos índios Pitaguary e de identificação, delimitação e levantamento fundiário da terra indígena Pitaguary” (1999), de Maria de Fátima Brito. Em anos recentes, outros estudos de caráter técnico foram desenvolvidos, dentre os quais se pode mencionar o “Diagnóstico Ambiental Preliminar da Terra Indígena Pitaguary” (2003), de M. Ribeiro, e o “Estudo Etno-ecológico Pitaguary” (2005), de Juliana Noleto, Noara Pimentel e Flávio Valerte.

Entre os textos etnográficos mais relevantes, compreensivos e abrangentes estão aqueles escritos pela autora deste verbete, precisamente em trabalhos como “Índios Pitaguary: um estudo sobre história, cultura e identidade” (1998), monografia de bacharelado defendida no Departamento de Ciências Sociais da UFC, e “Arte de contar, exercício de rememorar: as narrativas dos índios Pitaguary” (2002), dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC. Dessas produções surgiram as publicações “História, Memória e Identidade entre os Índios Pitaguary” (2002), “Memória e Narração” (2002) e “Da Arte para o Exercício: Uma Introdução às Narrativas Pitaguary” (2002). Existem ainda as dissertações de mestrado “Aldeia! Aldeia! A Formação Histórica do Grupo Indígena Pitaguary e o Ritual do Toré”, de Eloi dos Santos Magalhães, e “As Crianças e Suas Relações com a ‘Escola Diferenciada’ dos Pitaguary”, de Flávia Alves de Souza, ambas defendidas em Agosto de 2007, nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Educação da UFC. Além desses trabalhos, novas dissertações de mestrado sobre os Pitaguary estão sendo desenvolvidas por pesquisadores vinculados a várias institutições no Ceará.

 Fontes de informação

ASSIS, Soraya Campos de Almeida. Abordagem Histórica com finalidade para suporte ao reconhecimento étnico do Grupo Indígena Pitaguary. Brasília: FUNAI/DAF/DEID, 1998.
BRITO, Maria de Fátima. Relatório de reconhecimento étnico dos índios Pitaguary e de identificação, delimitação e levantamento fundiário da terra indígena Pitaguary, 1999. GT PORT. 1093 / PRS / FUNAI / 97.
CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.
FIGUEREDO, José de Lima. Índios do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939
NOLETO, Juliana et al. Estudo Etno-Ecológico Pitaguary. FUNAI, 2004.
PINHEIRO, Joceny de Deus. Índios Pitaguary: um estudo sobre história, cultura e identidade. Fortaleza: UFC, 1999 (Monografia de Bacharelado).
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_____. Arte de contar, exercício de rememorar: as narrativas dos índios Pitaguary. Fortaleza: PPGS da UFC, 2002 (Dissertação de Mestrado).
_____. Memória e Narração: Entre a Continência e a Duração. Revista Anima da Faculdade Integrada do Ceara, Fortaleza: FIC, 2002, v. 1, n. 3, p. 25-33.
_____. Da Arte para o Exercício: Uma Introdução às Narrativas Pitaguary. In: Joceny de Deus Pinheiro. (Org.). Ceará: Terra da Luz, Terra dos Índios. Fortaleza: Ministério Público Federal / FUNAI / IPHAN, 2002, p. 81-102.
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Data: 04/07/1863 – Conjunto CE1.9: Ministério da Agricultura. Livro: L3 Correspondências dos Ministérios do Império ao Presidente da Província, 1863-1864.
Data: 02/01/1864 Página: 63-65 – Conjunto CE1.18: Secretaria do Governo da Província do Ceará – Ofícios ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Livro: L144
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