quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Apinajé




Toy Art da Etnia Apinajé - Família: Jê - Tronco: Macro-Jê - Localização: Tocantins - População: 1.847 (Funasa, 2010)



#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
10ApinajéApinaié, Apinajés, Timbira, Apinayé
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
TO2412Siasi/Sesai 2012


Os Apinajé estão classificados como Timbira Ocidentais e caracterizam-se por uma sofisticada organização social composta por vários sistemas de metades cerimoniais e aldeias relativamente populosas. Na segunda metade do século XX, porém, sofreram uma grande depopulação e desestruturação social, quando seu território foi invadido por centenas de famílias de migrantes e tiveram suas terras cortadas por estradas, como a Belém-Brasília e a Transamazônica (veja em Histórico do contato. O traçado desta influenciou a exclusão de uma parcela de seu território tradicional na demarcação oficial de sua terra, a qual eles vêm buscando recuperar.

Nome

Apinayé ou Apinajé não é autodenominação do grupo, porém é atualmente a forma com os quais se designam e são designados pelos demais grupos Timbira e por seus vizinhos regionais. No vocábulo Timbira Oriental,  o sufixo yê/jê assinala coletividade.

Curt Nimuendajú  fornece outras designações para o grupo, todas elas derivadas do termo hôt ou hôto entre os Timbira Orientais, que significa “canto” e se refere ao território tradicional dos Apinajé localizado no “canto” formado pelo Araguaia e Tocantins, região conhecida como Bico do Papagaio.

 Localização

Os Apinajé nunca deixaram de habitar a região compreendida pela confluência dos rios Araguaia e Tocantins, cujo limite meridional era dado, até o início do século XX,  pelas bacias dos rios Mosquito (no divisor de águas do Tocantins) e São Bento (no Araguaia).

Do ponto de vista da conservação dos ecossistemas locais, a Terra Indígena Apinajé está relativamente bem preservada, tendo se recuperado rapidamente da degradação provocada pela presença de mais de 600 famílias de regionais em suas terras até a demarcação da área em 1985.
Território Apinajé

A Terra Indígena Apinajé tem a interferência de duas estradas de terra que estão em obras com vistas a seu asfaltamento:

TO 126: liga os municípios de Tocantinópolis e  Itaguatins, passando por Maurilândia, seccionando no sentido norte-sul todo o território em seu lado leste; ao longo de seu eixo estão localizadas as aldeias do PIN Apinajé  (Mariazinha, Botica, Riachinho e Bonito);
TO 134: do município de Anjico ao entroncamento da BR 230, seguindo até Tocantinópolis, sendo, em um trecho, limite sul da área. Esta estrada, asfaltada recentemente, passa a poucos quilômetros da aldeia São José.
Apinajé em Tocantinópolis

Até 1999, a BR 230, mais conhecida como Transamazônica, atravessava o território apinajé aproximadamente por 30 Km e continuava como limite em sua parte oeste. Em junho de 1997 o Ibama interditou as obras da BR 230, em seu trecho Araguatins-Estreito, exigindo o licenciamento ambiental  para o prosseguimento das obras. Depois de audiências públicas e de uma paralisação por parte dos Apinajé dos trabalhos de asfaltamento da rodovia, houve a mudança do traçado  oficial. Do trevo do Prata, como é conhecido, a BR 230 segue para Nazaré, com o nome de TO 134, de onde segue para o município de Lagoa de São Bento.

 População


As referências históricas apontam o seguinte quadro populacional:

Série histórica da população Apinajé: 1824-1928 
DataFonteNúmero de índios
1824Cunha Matos4.200
1859Ferreira Gomes2.000
1897Coudreau400
1926Snethlage150
1928Nimuendajú150
 Esses dados mostram que em menos de 60 anos os Apinajé tiveram sua população reduzida em mais de 90%. A partir de meados do século XX, a população se estabiliza e inicia um rápido processo de recuperação demográfica, com um crescimento de 300% aproximadamente em 30 anos, como aponta os seguintes dados:

Série histórica da população Apinajé: 1967-2010 
DataFonteNúmero de índios
1967Matta253
1977Waller364
1980Galvão413
1985Funai565
1993CTI780
1997Funai1.025
2003Funasa1.262
2010Funasa1.847
Estes dados informam um crescimento demográfico acima da  média brasileira e projetam um aumento populacional da ordem de 10% ao ano.

 Histórico do contato

Os primeiros “civilizados” a alcançar o território ocupado pelos Apinajé foram jesuítas que, entre 1633 e 1658, empreenderam quatro entradas Tocantins acima, a fim de “descerem” índios para as aldeias do Pará. À medida que os caminhos pelos rios Araguaia e Tocantins foram sendo abertos, o contato com os grupos indígenas que habitavam esta região tornaram-se mais constantes e as referências aos Apinajé cada vez mais precisas. Os rios Araguaia e Tocantins tiveram várias expedições coloniais a percorrer suas águas no primeiro quartel do século XVIII, vindas não apenas do sul, mas também do Maranhão e Pará, que disputavam a posse da rica região aurífera recentemente descoberta pelos bandeirantes de São Paulo no sul de Goiás. Até o final do século XVIII os Apinajé entraram diversas vezes em contato hostil com os “civilizados”, empreendendo “correrias” pelo Tocantins para apoderarem-se de ferramentas.

Em conseqüência dessas correrias foi fundado, em 1780, o posto militar de Alcobaça, que apesar de suas seis peças de artilharia foi abandonado devido as incursões dos Apinajé. E, em 1791,  foi fundado outro  posto militar no rio Arapary. Em 1797 foi fundado o posto São João das Duas Barras, atual São João do Araguaia. Esse fato marcou a entrada dos Apinajé em contato permanente com a sociedade nacional.

Entretanto, as relações entre a guarnição do posto e os índios continuaram conflituosas. Em 1810 foi fundada, por um comerciante, a localidade de São Pedro de Alcântara. Estabelecendo relações amistosas com os vizinhos Krahô, os Apinajé utilizaram-se deles para atacar outros grupos indígenas. Em 1826, foi fundado no próprio território então ocupado pelos Apinajé o primeiro povoado, Santo Antônio, logo abaixo da cachoeira das Três Barras.  Possuíam então os Apinajé cinco aldeias. Em 1816 este vilarejo foi incorporado ao arraial de São Pedro de Alcântara, formando então a cidade de Carolina, na margem maranhense do Tocantins.

Em 1824, o arraial de Carolina contava com uma população de 81 “brancos” e cerca de 120 a 150 Apinajé. Neste mesmo ano, Cunha Mattos, localizou os Apinajé em quatro aldeias com uma população aproximada de 4.200 índios. Em 1831 seria fundada Boa Vista, que se tornaria a atual Tocantinópolis, reunindo uma pequena população nordestina, provavelmente constituída por elementos refugiados dos freqüentes conflitos entre chefes políticos nordestinos.

Em 1840, é fundada por Frei Vito uma missão em uma das aldeias Apinajé, estendendo sua influência a outras três, atingindo um total de cerca de três mil índios. A tradição oral do Apinajé não guarda lembrança deste aldeamento, fazendo menção à fundação de Boa Vista apenas a partir da chegada de Frei Gil Vilanova, em finais do século XIX.

Em 1850, já navegavam pelo Tocantins de maneira regular 31 embarcações comerciais, empregando quase 500 pessoas, ao passo que a navegação no Araguaia continuava fortemente dependente de auxílio governamental. Mas ainda na segunda metade do século XIX a população Apinajé era numericamente expressiva, sendo revelada pelos vários relatórios oficiais de negócios da Província de então. Em 1851, o aldeamento de Bôa Vista era calculado como tendo 2.822 índios. Em 1877, novo relatório provincial informava uma população de 1.564 Apinajé, justificando o decréscimo populacional em razão de uma epidemia de sarampo.

Contato e depopulação

Em fins do século XIX, a ocupação da região dos Apinajé adquiriu caráter mais sistemático, iniciando a história dos conflitos pela posse da terra no local. As conseqüências desta ocupação foram arrasadoras: ao mesmo tempo em que a população “branca” aumentava, os índios sofreram uma diminuição drástica em seu contingente populacional. Em 1897, Coudreau estimou a população Apinajé em 400 pessoas e na virada do século Buscalioni, em expedição a Goiás, visita os Apinajé da aldeia de S. Vicente e calcula sua população em cerca de 150 indivíduos. Assim os Apinajé, que até então haviam sido o grupo humano mais expressivo da região, conhecida como  “Bico do Papagaio” ou “Triângulo do Tocantins”, ingressam no novo século como uma minoria inexpressiva frente aos ocupantes regionais em pleno processo de ocupação fundiária.

Nos primeiros anos do século XX, a região do “Bico do Papagaio” foi alcançada por uma frente extrativista de babaçu, que veio se juntar à pecuária como uma das principais atividades econômicas . Nesta região, diferentemente do que ocorria nas zonas de extração de borracha e castanha, pouco mais ao norte, nenhuma atividade econômica adquiriu hegemonia sobre as outras. A pecuária perdeu a força quando a frente de expansão nordestina atravessou o Tocantins, devido às dificuldades de transporte do gado para os mercados consumidores do nordeste.

O babaçu, de menor preço e não sofrendo com as variações do mercado internacional, como a borracha e a castanha, jamais chegou a envolver o conjunto da população do município. Assim o povoamento do território apinajé ocorreu de maneira relativamente constante durante o século XX, sem bruscas mudanças econômicas e sociais. Essa situação foi essencial para a sobrevivência dos Apinajé, ainda que com a população significativamente diminuída nos últimos anos do século XIX.

Entre 1928 e 1937,  Nimuendajú  visitou  várias vezes os Apinajé, apresentando um relato bastante pessimista  da situação  fundiária de então no território indígena:

(...) de seu antigo território, dificilmente uma parte sequer dele está em posse da tribo, pois os colonos neo-brasileiros estão espalhados por todo o seu habitat hereditário, ainda que esparsamente. Até cerca de 20 anos atrás, não ocorrera a nenhum Apinajé suspeitar que isso representasse algum perigo para seu próprio futuro. Pelo contrário, eles aceitaram de bom grado, por seu valor aparente, os protestos de amizade dos intrusos, e quando abriram seus olhos já era muito tarde......todo o seu território tem agora senhores estranhos, e o pouco que sobrou corre perigo de ser apropriado algum dia por algum fazendeiro suficientemente poderoso e sem escrúpulos.
A possibilidade de uma certa convivência entre os Apinajé e regionais era dada pela própria forma de ocupação da região pela sociedade nacional: uma população dispersa, vivendo basicamente da agricultura de subsistência, criação de animais de pequeno porte e extração, em pequena escala, de babaçu. Esta população pôde manter relações personalizadas com os Apinajé, como, por exemplo, as relações de compadrio, comum nas zonas camponesas do país. Este tipo de relação nunca foi possível, por exemplo, em zonas de extração de castanha-do-Pará e de borracha, onde a organização do trabalho no regime de barracão impediu qualquer contato individualizado com os índios.

Esta era, basicamente, a natureza da ocupação do território apinajé por não-índios até a década de 1940, excetuando-se o limite leste (território do subgrupo Krindjobrêire e atual município de Nazaré), ocupado por criadores de gado. Até 1940 são constantes também os registros de epidemias (sarampo, febre, varicela) que dizimaram grande parte da população Apinajé.

Por volta de 1944 o Serviço de Proteção aos Índios instala na aldeia São José (ainda Bacaba) um posto de Assistência como forma de mediar estes conflitos. Sem dúvida a criação do Posto do SPI auxiliou a recuperação demográfica do grupo, já iniciada na década de 1930. Apesar de não conseguir evitar novas invasões e nem buscar alternativas judiciais, o SPI institucionalizaria  a prática do “arrendamento” como meio de demonstrar aos regionais que “habitavam em terra alheia”. No final dos anos 50 estes arrendamentos deixariam de ser cobrados e muitos dos antigos posseiros acabaram por  “vender” suas posses.

Com a instalação do posto do SPI, os Apinajé passaram a ser estimulados pelos funcionários deste serviço a se engajarem na coleta do coco babaçu. A partir dos anos 70, com a presença da Funai na área, passaram a ser pressionados a produzirem babaçu em escala industrial. A Funai substituiu a cantina do SPI por outra gerenciada em moldes “empresariais”, como instância intermediária para a comercialização do coco coletado pelos Apinajé.

Em 1976, o antropólogo Roberto da Matta anotou que os Apinajé consideravam a coleta de babaçu como um “mal necessário”: coletar e quebrar coco era para eles uma atividade marcadamente negativa quando comparada às atividades tradicionais de caça e agricultura. Primeiro por ser uma atividade de coleta e segundo por ser uma atividade orientada para a venda que não implica nas mesmas obrigações sociais que a caça e a agricultura.

Os recursos do Convênio CVRD/Funai (a partir de 1982) vieram a consolidar esta forma de atuação da Funai: na aldeia Mariazinha, os índios foram sendo obrigados a vender sua produção exclusivamente no posto, sem a anterior alternativa de procurar um comprador que remunerasse melhor o produto, tendo como “contrapartida” o  patrocínio pela Funai  de grandes roças de arroz,  através de “projetos de desenvolvimento comunitário”. Foi sendo construído um regime de trabalho no qual os índios dessa aldeia ou trabalhavam na “roça do projeto” ou tiravam e quebravam coco para a cantina, ambos controlados integralmente pela Funai. Atividades de caça e pesca só eram permitidas aos domingos, os índios não possuíam roças familiares e disputavam seus babaçuais com os regionais.

Como reação a esse sistema, a aldeia Mariazinha se segmentaria no início dos anos 1990, dispersando a maioria das famílias para outras regiões da área indígena, onde voltariam a viver exclusivamente das roças de subsistência e da caça e coleta de frutas nativas - como as demais aldeias.

Ao norte, na aldeia Cocalinho, a falta de assistência da Funai obrigou as famílias ali residentes a permitirem, entre 1990 e 94, a retirada de madeira de lei, fava d’anta e jaborandi  por terceiros, mediante o pagamento de uma quantia que lhes permitisse adquirir  algum bem industrializado para o PI. Depois de 1995, com a retirada, pela Funai, dos últimos invasores daquela parte da reserva, este tipo de “arrendamento” não tem mais sido feito pelos índios.

Se o processo de ocupação do território apinajé vem se dando desde o final do século XVIII, acentuando-se no início do século XX, ele foi sem dúvida intensificado com a implantação dos grandes projetos de desenvolvimento na região norte de Goiás, principalmente depois da construção das rodovias Belém-Brasília e Transamazônica, que cortam o território apinajé. Ao longo desta última estrada existiam até a demarcação física da área apinajé, em 1985, pequenos núcleos de moradores onde antes estavam situados os acampamentos de obras. Estes núcleos que viviam da venda de refeições, café, cachaça aos usuários da estrada trouxeram inúmeros problemas para os Apinajé, servindo como pólo de prostituição e transmissão de doenças, além de terem devastado o seu entorno em 10 anos de existência, o que os Apinajé não fizeram em mais de cem anos de ocupação.

Direito territorial: reconhecimento incompleto

Entre 1975 e 1982 são instituídos pela Funai vários GT para delimitação da área Apinajé, tendo sido iniciado, em 1979, o processo de demarcação física da área, que teve de ser suspenso por imposição dos índios, que discordavam dos limites que lhes estavam sendo impostos, na medida em que não incorporavam a faixa de terras do ribeirão Gameleira e Mumbuca.

Os Apinajé tiveram parte de suas terras reconhecidas  pelo Estado brasileiro em fevereiro de 1985, após terem interrompido o tráfego da Transamazônica e terem iniciado “por conta própria” com o apoio de guerreiros Krahô, Xerente, Xavante e alguns Kayapó, a demarcação de seu território.

Durante esse tumultuado processo de delimitação e demarcação da área Apinajé, o MIRAD (órgão então responsável pelo reconhecimento das áreas indígenas) acabaria por decretar uma área de 142.000 hectares, alterando a proposta encaminhada pela Funai e retirando áreas importantes situadas nos ribeirões do Gameleira, Mumbuca e Cruz.
Festa Apinajé em Tocantinópolis

Por ocasião da luta pela demarcação física, esta área estava  ocupada por 641 invasões, com um total aproximado de 5 mil pessoas. Esses ocupantes foram indenizados por suas benfeitorias e intimados a deixar a área demarcada apenas 12 anos depois, em abril de 1997, com recursos do Convênio CVRD/Funai. Somente não foram indenizadas as famílias que residiam no limite norte da área, a região do ribeirão Pecobo, onde a Funai não havia realizado o levantamento fundiário necessário para o cálculo das indenizações.

Após a demarcação, ainda em 1985 a  Funai enviou dois GTs para a redefinição dos limites da TI Apinajé, sem, entretanto, dar continuidade ao processo. Foi somente em 27 de abril de 1994 que a Funai assinaria a Portaria nº 0429/94, criando o Grupo Técnico de Revisão da Área Indígena Apinajé. O GT instituído incluiu parte desta área reivindicada pelos Apinajé, mas o processo encontra-se aguardando a realização do levantamento fundiário na área a ser acrescida como condição para seu encaminhamento para a decisão do Ministro da Justiça.

 Organização social

Como as demais sociedades Jê que habitam o Brasil Central, os Apinajé têm em comum uma sofisticada organização social composta por vários sistemas de metades cerimoniais e grupos rituais, assim como aldeias relativamente populosas. São predominantemente caçadores-coletores, praticando - antigamente mais do que hoje - apenas uma horticultura centrada em tubérculos.

A adaptação destas sociedades ao ambiente dos cerrados atingiu um tal requinte que impressionou os primeiros estudiosos europeus, que, perplexos, indagavam como seria possível se constituírem, sobre uma base material tão pobre (isto é, sem cerâmica, sem agricultura desenvolvida, sem tecelagem), sociedades requintadas, demograficamente importantes e, sobretudo, expansionistas. De fato, antes do contato dizimador com os europeus - que se inicia no final do século XVII - estas sociedades possuíam aldeias circulares ou semicirculares com 2 mil a 3 mil pessoas.

A região dos cerrados, com seus amplos horizontes - que lhes permite uma movimentação fácil (todos os Jê são andarilhos e corredores) e a possibilidade de explorarem, simultaneamente, as várias fisionomias vegetais que caracterizam o cerrado (matas de galeria, cerradões, campos etc.) sedimentou nos Jê o que se chama de “cultura de cerrado”.

Até a década de 1940, os Apinajé  mantinham, com rigor, seu sistema ritual operante - e com ele toda a estrutura social e cultural que os aproximavam e afastavam, ao mesmo tempo, dos demais Timbira. As fotografias tiradas por Curt Nimuendajú entre estes índios, nos anos 1930, são deslumbrantes: os homens ainda nus, toras de corrida espalhadas por todos os cantos da aldeia (a marca da intensidade da vida ritual), o rigor dos enfeites e adereços usados pelos rapazes e “donzelas associadas” nos flagrantes dos rituais de iniciação.

A depopulação drástica que sofreram, aliada ao engajamento imposto pelo SPI e posteriormente pela Funai nas atividades produtivas de coleta e quebra de coco, vieram a interferir neste quadro, particularmente no abandono do calendário ritual como norteador das atividades econômicas. Atualmente, depois da área demarcada e de uma re-aproximação mais intensa com os demais grupos Timbira, acentuada pela participação na Associação Vyty–Cati, os Apinajé vem retomando com maior empenho alguns de seus rituais.      

Para se entender o que se constitui em um “território” para os Timbira em geral e para os Apinajé, em particular, é necessário o conhecimento de que uma aldeia timbira se constitui em um “grupo local” autônomo, isto é, que age politicamente e se apresenta frente as outras aldeias como unidade. Esta autonomia é gerada em e por um processo de cisão  que leva algumas famílias a se desligarem da aldeia-mãe, por razões diversas (em geral, por acusações de feitiçaria ou boataria). Mas esta autonomia só se completa quando o novo grupo tem condições reais de realizar sem concurso das demais aldeias, os rituais mais importantes do ciclo anual . Esta unidade do grupo local se manifesta ainda na chefia (o  pa’hi possui delegação dos grupos domésticos para decidir autonomamente sobre os interesses da aldeia – krï) e na utilização exclusiva de uma porção do território para caça e coleta (quando uma nova aldeia é formada, seu local de instalação é em geral acertado com os membros remanescentes da aldeia original, de forma a não sobrepor seus territórios de caça, fonte constante de atritos entre as aldeias). Assim, cada aldeia tem seu “chefe” (pa’hi) e possui autonomia de decisão; não existe nenhum outro poder, que acima das aldeias, representaria todas aldeias apinajé (como um conselho de chefes ou algo parecido).

As atividades quotidianas nas aldeias obedecem a um calendário ritual regulado pelas atividades do “pátio”, centro das aldeias circulares e lugar da cena política propriamente dita e dos homens. Ali, toda manhã e no final da tarde, os homens se reúnem com os “governadores” para decidirem ou avaliarem as atividades do dia (quem vai para a roça, quem vai caçar etc.) ou as atividades necessárias para a conclusão ou prosseguimento de um ritual em curso. Os “governadores” (sempre dois jovens) são escolhidos pelos mais velhos e pertencem necessariamente à metade sazonal que “domina” a aldeia: se no “Verão” (estação seca) pertencem à metade Wacmejê; no “Inverno” (estação das chuvas), devem pertencer à metade Catãmjê.

A dinâmica e a teia responsável pela estrutura social apinajé é dada por  dois sistemas de trocas vinculados: a troca de nomes e a troca de cônjuges, sistemas estes que fundam e determinam as relações de aliança entre os grupos domésticos e segmentos residenciais de toda e qualquer aldeia Timbira.

 Aspectos cosmológicos

Como para a maioria dos grupos indígenas do Brasil, para os Apinajé os elementos da “natureza” (sobretudo os animais) nunca são apreendidos como únicos ou isolados, mas como partícipes de uma cadeia de relações que envolve de uma só vez os humanos e não-humanos e estes entre si. Nesse sentido, caçar significa interagir com forças simbólicas da natureza, pois toda caça possui uma subjetividade particular (um “espírito” que define o “caráter” de uma espécie animal determinada)  que coloca a relação predador/presa como uma relação entre sujeitos. A mitologia também enfatiza a “humanidade” dos animais, dado que “antes todos os bichos falavam”, como dizem;  os animais são tidos como ex-humanos, a concepção indígena neste ponto se diferenciando radicalmente da cosmologia da chamada sociedade ocidental, para quem a condição “comum” entre os humanos e os bichos é a “animalidade” (somos animais racionais).

Na concepção timbira, o espírito dos humanos mortos (carõ) sofre uma série de metamorfoses, passando a utilizar os corpos de animais e vegetais como avatar, em uma escala regressiva (dos mamíferos superiores aos insetos; das plantas cultivadas ao “pau podre”, para finalmente se transformar em pedra, deixando então de se comunicar com os vivos). Além de revelar a hierarquia implícita na ordem natural na concepção timbira, estas metamorfoses indicam que, sob a pele de um ente natural, o carõ pode estabelecer contato com os humanos, contato sempre perigoso (pode trazer doença e a morte) e que dá ao sujeito contatado (se ele aceita os termos “oferecidos” pelo carõ) a possibilidade de vir a ser xamã (wajaka), adquirindo por essa via o poder de manter uma interlocução permanente com o “outro lado” e o poder de cura.

Além disso, o mundo natural é povoado por “espíritos guardiães” das espécies; são agentes inominados (o ijãxycatê, o “dono” do veado mateiro, por exemplo) que se manifestam na roupa de um espécime individual com alguma característica marcante (tamanho, força, esperteza etc.). Os “espíritos guardiães” se comunicam com os humanos nos sonhos ou nos estados liminares de um sujeito (doenças, resguardos), mandando mensagens sobre  o estado de seu “rebanho”. Por exemplo, são muitas as histórias em que por matar com muita freqüência uma dada caça, o caçador começa a sentir-se mal, ficando doente; logo aparece na sua frente o ikraricatê dizendo que, se ele quiser se recuperar, deverá dali em diante abster-se de matar aquela determinada caça ou mesmo comer da sua carne. Desta forma, o “espírito guardião” regula o estoque da espécie que protege, agindo como uma espécie de vetor para o manejo e controle destes estoques.

 Atividades produtivas

As roças de subsistência – que pertencem às mulheres – são abertas nas matas de galeria ou de encosta mais ou menos distantes das aldeias, que se localizam sempre perto de pequenos ribeirões e em lugares altos, com boa visão, preferencialmente na “chapada” (põpej) – com predominância de uma fisionomia vegetal de cerrado (senso estrito). Os homens são responsáveis pela “broca” (desbaste da vegetação arbustiva), a derrubada e o plantio do arroz; as mulheres participam da semeadura do milho, mandioca e demais gêneros (fava, inhame, feijões, batata-doce, abóbora, melancia, amendoim, mamão e banana). Naquelas matas, os solos são mais argilosos e ricos em nutrientes. A média colocada por grupo doméstico é de 1,5 hectares (ou de 0,5 ha por família elementar).

As roças apinajé não diferem daquelas observadas em outros grupos indígenas sulamericanos - e que se diferenciam bastante daquelas dos regionais vizinhos. Enquanto as roças destes últimos privilegiam o arroz e a mandioca, plantados separadamente, as roças indígenas aparentam um certo caos, apresentando um consorciamento de espécies. O arroz, o milho e a mandioca são plantados antes, com pequenos intervalos de tempo (novembro/dezembro) e intercalados ao longo de toda extensão do roçado; depois são plantados, em setores específicos, os inhames e a batata-doce (janeiro); após a colheita do milho verde (março), são plantados as favas e o feijão “trepa-pau” junto aos pés do milho deixados para secar; nas leiras remanescentes da coivara são plantadas abóboras e finalmente são distribuídas pela área mamão e banana. A vida útil de uma roça é determinada pelo ciclo da mandioca (9 a 10 meses) e da banana.

Os Apinajé receberam como benefício do Convênio CVRD-Funai (de 1982 a 1985), maquinários e implementos agrícolas sofisticados. As roças “da Funai” abertas com estes equipamentos servem, no passado mais do que hoje, para prover o PIN de um “excedente” (de arroz basicamente) para fazer frente às suas necessidades. Os índios eventualmente recebiam alguma parte deste “excedente”. Hoje na aldeia São José ainda se fazem roças mecanizadas, mas sua produção – descontado o excedente para os seus custos – é distribuída pelas famílias da aldeia.

A carne é  indispensável nas festas e, hoje em dia, muitas aldeias recorrem à carne de gado – e não de caça – para a finalização dos grandes rituais. A caça já não atrai como antes as novas gerações, principalmente onde ela exige um esforço maior devido a escassez de animais. A caça vem sendo substituída pela criação de pequenos animais (porcos e galinhas), o que causa constantes conflitos entre as famílias, porque são criados soltos no terreiro da aldeia e não raro “alguém” acaba matando uma peça de um terceiro.

Contudo, as aldeias apinajé situadas nos limites sul/noroeste e ligadas ao PIN São José (Patizal, Cocalinho e a própria São José) ainda dispõem de uma oferta razoável de animais de caça, apesar da concorrência dos caçadores clandestinos.

Em geral, a caça é praticada com espingardas e, mais raramente, com arco e flecha.  As caçadas coletivas (hoje feitas com o auxílio de cães e não utilizando o fogo, como antigamente) são feitas na estação seca, época ideal para realização dos grandes rituais. A técnica empregada na caçada individual varia com a estação do ano: no “verão” (seca), a preferência é pela “espera” (que tomaram emprestado dos regionais brancos); no “inverno” (chuvas), quando as pegadas são mais visíveis, por rastejamento. O termo que os Timbira empregam para a atividade de caça é sinônimo de “espantar” (ajahêr), o que reforça a suposição de que aprenderam a caça por espera com os regionais.

Para os Timbira em geral, os principais animais de caça são os seguinte, por ordem de importância e apreciação gastronômica: veados (mateiros, catingueiros e campeiros), anta, tatus (peba, china, verdadeiro e rabo-de-couro; o canastra desapareceu), paca, cutia, tamanduás (o mirim, pois o bandeira está cada vez mais raro), quati, o macaco-capelão, quandú (porco-espinho) e preá. Os porcos (queixada e caitetu) antes abundantes na área apinajé, principalmente nas matas do Ribeirão Grande, onde hoje localizam-se a aldeia do Patizal, praticamente desapareceram. Entre os Timbira, somente os Apinajé comem a preguiça, o tejú e a sucuri.

Como todo grupo caçador-coletor, os Apinajé têm pela atividade de caça uma verdadeira paixão: sonha-se muito com caça e caçadas e relata-se com pormenores, no pátio à noite, as aventuras do dia de cada caçador, momento em que se trocam informações sobre a caça, sua argúcia, comportamentos e até mesmo suas características individuais.

Os Apinajé também apreciam muito o peixe, que ainda constitui um item importante como substituto da caça para indivíduos em condição de “resguardo” (pessoas em estados liminares e, logo, sob restrições alimentares rígidas). Devido a escassez de caça, as aldeias  situadas a nordeste da área indígena pescam quase que quotidianamente.

Além da pesca com anzol e linha, praticam a “tinguizada”, pesca coletiva realizada na estação seca em pequenos ribeirões com o uso do tingui (planta tóxica que diminui o nível de oxigênio da água deixando os peixes “bêbados”).

As atividades de coleta dos Apinajé incluem frutas, plantas medicinais e palha para construção e confecção de utensílios domésticos (cestaria).

De uma maneira geral, pode-se dizer que  a demarcação de parte da área tradicional dos Apinajé contribuiu para diminuir a dependência econômica com a sociedade envolvente, possibilitando novamente a utilização quase integral deste território nos moldes tradicionais e o abandono da atividade extrativa do babaçu como meio exclusivo de obter o dinheiro para aquisição de bens manufaturados.

Os Apinajé, hoje, mantêm uma relação com o mercado regional apenas incipiente. Outrora, no auge do ciclo extrativista do babaçu, esta inserção foi bastante forte, chegando a representar, em termos de valor produzido na área indígena,  algo em torno de US$ 30-40 mil por mês. Atualmente, a inserção dos Apinajé se dá basicamente através da compra de bens industrializados no mercado local de Tocantinópolis com o dinheiro aferido pelos velhos aposentados pelo INSS, pelos Agentes Indígenas de Saúde remunerados pela Funasa ou professore indígenas do Estado ou ainda através do trabalho eventual dos jovens nas fazendas da região. O coco babaçu não tem mais, como no passado, um papel importante para a aquisição de bens manufaturados.

 Fontes de informação

ALBUQUERQUE, Francisco Edviges. Contato dos Apinajé de Riachinho e Bonito com o português : aspectos da situação sociolingüística. Goiânia : UFGO, 1999. 132 p. (Dissertação de Mestrado)
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