Indio em toy art Matis |
# | Nomes | Outros nomes ou grafias | Família linguística | Informações demográficas | |||||||||
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136 | Matis | Mushabo, Deshan Mikitbo | Pano |
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Mais em caça com zarabatana de mais de 3 metros |
O termo matis foi o nome que os não-índios - em particular, os funcionários da Funai - deram a um grupo que se autodenominava matses. Deve-se ressaltar, no entanto, que matses é também a autodenominação de um outro povo, culturalmente e lingüisticamente muito próximo aos Matis: os Matses (também conhecidos como Mayoruna).
Os Matis aceitaram em certa medida o nome matis, que é uma variação de matses, porém existem outras denominações bastante empregadas em nível local.
A palavra matis, além de ser um etnônimo, ou seja, o nome atribuído a uma etnia, significa, em um sentido mais estrito, “ser humano” ou “pessoa”. O termo também pode ser utilizado para designar o conjunto de parentes de um indivíduo.
Como esse termo pode ter diferentes sentidos dependendo do contexto em que é empregado, faz-se necessário estabelecer distinções entre os matis - os “humanos”. Estas podem se dar a partir do uso de palavras, como kimo e utsi, que criam nuances novas. Os Matis diferenciam os matis kimo dos matis utsi. Os primeiros são os humanos dos quais se é mais próximo, com quem se tem um forte vínculo social, são a “gente verdadeira”. Enquanto que matis utsi pode ser traduzido por “outra gente”.
Os Matis dispõem de duas outras autodenominações: mushabo e deshan mikitbo. A primeira faz alusão ao compartilhamento, entre todos os membros de uma comunidade, de um mesmo de tatuagem. Mushabo significa literalmente “os tatuados” (musha = tatuagem, -bo = plural). Mesmo se, na área pano, a semelhança entre as tatuagens faciais não seja necessariamente um marcador de identidade étnica, este parece ser o papel que elas têm ocupado nos últimos tempos. Independente de suas origens, os Matis dizem que são todos mushabo, termo que pode ser às vezes trocado por wanibo, “gente da pupunha”.
Já a denominação deshan mikitbo significa simplesmente “gente à montante” (i. e. que está rio acima). Geralmente, é para se diferenciar dos Korubo, cujo território situa-se a jusante, que os Matis utilizam essa expressão. “Estar à montante”, como marco de identificação, se define em função do curso do rio Ituí (ou do rio Coari) e sob a ótica de um contraste com os principais adversários tradicionais dos Matis
Língua
No cotidiano da aldeia se usa somente a língua materna. No entanto hoje quase todos os homens com idades entre 17 e 35 anos sabem falar um pouco o português, e isso permite que façam suas transações comerciais nas idas à cidade. Algumas mulheres também conseguem se comunicar em português.
A língua Matis pertence à família lingüística Pano.
Além disso, grande parte dos homens e algumas mulheres também sabem falar e entendem a língua falada pelos Marubo, que também é da família Pano. Estes últimos ajudaram a Funai a estabelecer os primeiros contatos com os Matis em 1976. De um modo geral, os Matis entendem as línguas dos Kulina, dos Matses (também conhecidos como Mayoruna) e dos Korubo.
Localização
A área ocupada pelos Matis é uma faixa que se estende do médio Ituí, passando pelo alto Coari (afluente da margem direita do Ituí) até o médio rio Branco (afluente da margem esquerda do Itacoaí). Essa área situa-se dentro dos limites da Terra Indígena Vale do Javari.
Localização do território Matis, nas terras indígenas do Vale do Javari |
A TI Vale do Javari é a segunda maior área indígena do Brasil e está situada na região do alto Solimões, no sudoeste do estado do Amazonas, próxima à fronteira do Brasil com o Peru. Esta área foi reconhecida como Terra Indígena em 1999, demarcada fisicamente em 2000 e homologada em maio de 2001. Abrange áreas drenadas pelos rios Javari, Curuçá , Ituí, Itacoaí e Quixito, além dos altos cursos dos rios Jutaí e Jandiatuba, compreendendo terras dos municípios brasileiros de Atalaia do Norte, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença e Jutaí.
Além dos Matis, outros povos vivem nesse território, como é o caso dos Kanamari e Tsohom Djapá (falantes de línguas da família Katukina), Marubo, Matsés (Mayoruna), Kulina Pano e Korubo (cujas línguas pertencem à família Páno). Há também a presença de cerca de oito grupos indígenas isolados.
Com base em levantamentos realizados por várias instituições atuantes na região, a população da área está em torno de 3.500 índios, considerando somente os grupos contatados [dados de 2006]. Se incluirmos as melhores estimativas para os grupos isolados, de presença confirmada, este número poderia aumentar em mais algumas centenas de pessoas. Os povos indígenas do Vale do Javari possuem traços sócio-culturais semelhantes, mas também apresentam diferenças significativas entre si.
História do contato e dados populacionais
Notícias da existência de grupos arredios na área entre os rios Ituí e Itacoaí são conhecidas desde a implantação da sede da Funai no Alto Solimões em 1971, na cidade de Benjamin Constant. Esta sede serviu de suporte aos trabalhos de abertura da rodovia Perimetral Norte que ligaria este município a Cruzeiro do Sul, no Acre. A Ajudância do Alto Solimões (Ajusol) foi estruturada com a finalidade de atrair e assistir os índios do Javari, cujos territórios seriam atravessados pela estrada (Campanha Javari, 1986; Melatti, 1981).
Não há documentos anteriores a 1970 que falem sobre os Matis e, ainda em 1972, eram confundidos com os Marubo pelos servidores da Funai. Foi somente a partir de então que se iniciou um processo de reconhecimento dos Matis, pelos funcionários do órgão tutelar e pelos não-índios da região, como um grupo de características culturais próprias.
Assim, em 1974, seguindo os objetivos da Funai de contatar os grupos indígenas da região, foi fundado o Posto Indígena de Atração (PIA) Ituí na margem esquerda do rio Ituí, acima da foz do rio Novo de Cima (Melatti, 1981).
As informações a respeito da época dos primeiros contatos com os Matis diferem entre si. Segundo a Campanha Javari (1986), foi em 25 de agosto de 1975 que se deu o primeiro contato com uma mulher e uma criança de colo em um tapiri no igarapé Aurélio. De acordo com Júlio Cezar Melatti (1981), a data apresentada é 21 de dezembro de 1976. O fato é que a partir desse período os Matis começaram a empreender sucessivas visitas ao PIA Ituí com objetivo de obterem facões, machados, cachorros, galinhas etc.
Em 1977, os índios pegaram a primeira gripe dos funcionários do Posto, mas segundo os relatórios oficiais da Funai ninguém morreu. Em 1978, servidores da Funai visitaram as malocas Matis passando alguns dias entre eles. A partir desse momento, os contatos tornaram-se cada vez mais freqüentes.
A demografia dos Matis na época do contato apresenta estimativas muito variadas. Um atendente de enfermagem da época afirmou haver 150 pessoas. De acordo com um ex-funcionário da Funai, foram estimadas cerca de 300 pessoas a partir do tamanho das malocas e do número de espaços familiares que havia dentro destas. Já o pastor das Missões Novas Tribos do Brasil acreditava ter mais de mil Matis estimados depois de avistar 12 malocas durante o sobrevôo de uma área que considerou ser Matis (Campanha Javari, 1986). Os próprios Matis falam que eram em muitos antes da Funai e que muitos morreram durante uma epidemia de febre que deu, mas não há estimativas exatas (Campanha Javari, 1986).
Viviam tradicionalmente em grupos familiares que habitavam cinco malocas distantes entre si, com uma população variável e espalhada em seu território de ocupação (Melatti, 1981). Eram as seguintes: maloca do rio Coari; maloca do rio Branco; maloca do igarapé Boeiro; maloca do igarapé Jacurapá; maloca entre os igarapés Jacurapá e Boeiro.
A presença de madeireiros e seringueiros em mau estado de saúde e sem assistência nas proximidades dos Matis, recém-contatados, e mesmo a falta dos devidos cuidados no contato por parte dos funcionários do Posto, contagiaram os Matis desde cedo e a partir de 1978, começam as epidemias de gripe, tosse, disenteria etc. Para completar o quadro trágico, o posto não tinha remédios para a assistência ou gasolina para remoção dos casos mais graves, e assim começava a ocorrer mortes entre eles (Melatti, 1980).
Entre 1976 e 1980, foram notificadas de 10 a 12 mortes ocasionadas por várias doenças e, entre junho de 1981 a junho 1982, morreram em torno de 48 Matis devido a duas epidemias de gripe (que logo se transformava em pneumonia). Nesse período, criou-se uma enorme geração de órfãos. Segundo o levantamento feito recentemente pelo professor Tëpi Wassa Matis junto ao seu pai Txema Matis, durante uma das atividades do curso de formação promovido pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), foram citados nomes de 51 pessoas que morreram nas epidemias de 1981.
Em 1983, a população Matis passou de 135 para 87 pessoas - com a morte de 35% de sua população (Porantim, 1982; Melatti, 1983; Campanha Javari, 1986). As crianças e velhos foram os mais atingidos. Entre os velhos, foram pouquíssimos que sobreviveram. Em 1985, três anos após essas epidemias um censo populacional realizado pela Campanha Javari revela que apenas sete pessoas possuíam mais de 40 anos (Campanha Javari, 1986).
Em fevereiro de 1982, o relatório dos chefes do Posto Indígena (PI) Ituí e do PI Marubo afirmava a existência da invasão do rio Branco por madeireiros bem na área Matis. É possível que estes tenham sido responsáveis por epidemias de gripe na região (Melatti, 1983).
Devido ao grande número de mortes em cada grupo familiar, os Matis tiveram que se reestruturar, adaptando suas regras de casamento e relações sociais e políticas entre os diversos grupos. Com isso, os sobreviventes formaram basicamente dois grupos que se mantêm até hoje (Campanha Javari, 1986; Erikson, 1992).
Indagado sobre a região de origem do grupo, o velho Binã afirmava que antes moravam entre o Curuçá e o Ituí, mas não sabia dizer quando atravessaram para a margem direita (Melatti, 1981). Os sobreviventes da epidemia não se lembravam, todos os mais velhos haviam morrido e suas memórias remontavam à época em que já viviam na área compreendida pelos rios Ituí, Itacoaí e Branco (Campanha Javari, 1986). De acordo com informações de um ex-funcionário da Funai, a área de ocupação dos Matis se situava entre as cabeceiras dos igarapés São Bento, Aurélio, Jacurapá e Coari.
A partir do início do contato, os Matis começam a estabelecer relações com os Marubo que eram como “intérpretes”, já que também falavam uma língua Pano. Várias famílias Marubo desceram do alto Ituí e se fixaram no PIA Ituí, localizado no médio rio Ituí, atraídos pela presença da Funai. Assim se intensificou o contato entre os povos e as conseqüências dessa aproximação também se fizeram sentir (Campanha Javari, 1986). De um lado, os Marubo com mais de um século de contato com a sociedade envolvente e de outro, os Matis recém-contatados.
Em 1982, na tentativa de solucionar os problemas causados por não-índios e pelos Marubo, a Funai decide transferir os sobreviventes Matis e as instalações do posto para o igarapé Boeiro, onde estes passam a residir em duas malocas (Melatti, 1983; Campanha Javari, 1986).
No igarapé Boeiro, os Matis passam por um período de grande escassez alimentar devido à falta de roças, o que os leva a roubar várias vezes alimentos nas roças dos ribeirinhos e dos Marubo do antigo posto. Além disso, este era um local difícil de se obter o curare, o veneno usado nas setas de zarabatanas, e o tatchi, um chá tradicional de grande importância espiritual. O processo de sedentarização e de concentração populacional em um único local diminuiu a mobilidade do grupo e criou conflitos entre os grupos (Campanha Javari, 1986).
Em 1987, os Matis mudaram-se para uma área próxima ao rio Novo e, em 1993, se estabeleceram na margem esquerda do Ituí, a montante do igarapé Jacurapá (Campanha Javari).
Já em 1998, sentindo-se cercados pelos Marubo do alto Ituí, rio acima, e pelos Marubo do antigo PI Ituí, na foz do rio Novo de Cima - isso sem falar na falta de alguns recursos - os Matis construíram uma nova aldeia no igarapé Aurélio, rio abaixo. Muitos vivem nesse local até hoje, distribuídos em três grandes malocas na foz do igarapé.
A partir de 2005, vinte e quatro anos após as traumáticas epidemias, os grupos familiares começam a se organizar de acordo com o seu padrão tradicional. Um deles deixou a aldeia Aurélio e formou uma nova, a aldeia Beija Flor, a quarenta e cinco quilômetros em linha reta da primeira.
Com o crescimento populacional, práticas rituais abandonadas após as mortes dos velhos e xamãs, principais detentores do saber tradicional, foram retomadas (Erikson, 1991). Em 1986, por exemplo, os Matis retomaram o mais importante cerimonial, o rito de tatuagem. Nesse ano, vinte e seis jovens aceitaram ser tatuados e apenas dois se recusaram, demonstrando a volta do interesse por práticas tradicionais.
Este exemplo contrasta com o saudosismo do grupo, em 1995, quando diziam que a tatuagem tinha desaparecido devido à proximidade dos não-índios e à morte dos mais velhos, já que esse ritual é considerado cheio de perigos sobrenaturais que somente os últimos conheciam.
Em algum momento entre os anos de 1993 e 1998, um outro ritual de tatuagem foi realizado, assim como em 2002. Foi uma surpresa para todos aqueles que conheciam de perto os Matis, pois consideravam que esse rito tinha sido completamente abandonado especialmente por causa da vergonha que os mais jovens tinham de se apresentar diante dos não-índios com o rosto tatuado - marca irrefutável de sua identidade étnica.
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A caça, com o arco, com a zarabatana e com a espingarda é a atividade masculina mais valorizada entre os Matis (Erikson, 1987).
Os animais caçados são o caitetu, a queixada, a anta, a preguiça, o macaco aranha (conhecido na região como macaco preto), o macaco barrigudo, o macaco zogue-zogue, o macaco boca branca ou souim, o macaco parauacu e o jacaré. Acrescenta-se ainda a arara, o mutum, o jacu, o cujubim, o nhambu-galinha. Realizam caçadas em barreiros; usam também armadilhas. Para matar macacos preferem a zarabatana. O veneno para as setas de zarabatana, o curare, é preparado a partir de um cipó coletado (Melatti, 1981).
A agricultura entre os Matis é feita a partir de cultivos itinerantes produzidos sobre áreas de queimada. As roças são porções de floresta derrubadas, queimadas e cultivadas que vão sendo progressivamente abandonadas à medida que seus rendimentos diminuem. É importante destacar que esses “campos” não são permanentes: cada roça é plantada somente uma vez. Porém, como toda roça é composta por diversos cultivos, a coleta se estende por vários anos em cada parte da área cultivada (Erikson, 1987).
Os produtos essenciais dessas plantações são a macaxeira, a banana, a pupunha e o milho, alimento cujo consumo é fundamentalmente ritual (Melatti, 1981).
Os principais peixes apanhados são o cará, o piau, o tamboatá, a traíra, sendo o poraquê o predileto das mulheres. Há ainda a piranha, o matipiri, a branquinha, o curumatã, o pacu e o pirarucu. Também apanham tartarugas e tracajás e seus ovos (Melatti, 1981).Os principais produtos de coleta são o patauá, o buriti, o puna (fruta), o cacau e o cupu (Melatti, 1981).
Organização social
Há, entre os Matis, uma subdivisão geral dos seres em duas categorias, a dos ayakobo e a dos tsasibo. Isto sugere um sistema dualista que é encontrado freqüentemente nas sociedades indígenas da América do Sul (Crocker, 1977). Ao contrário do que geralmente se constata nessas sociedades dualistas, a categoria tsasibo parece ter praticamente “fagocitado” (anulado) a outra, ayakobo.
Ao invés dos membros da sociedade se repartirem em duas classes relativamente iguais, quase todos reivindicam hoje o status de tsasibo, desvalorizando os ayakobo que são vistos como seres inferiores e ridículos e são alvos de humilhação constante.
À primeira vista, pode-se pensar que os Matis são todos tsasibo, enquanto as populações vizinhas (Marubo e Korubo, em particular) seriam, para eles, ayakobo. Porém, nota-se rapidamente que uma parte dos membros do grupo matis, mesmo que relute em admiti-lo, está ligada ao pólo ayakobo por causa de suas origens estrangeiras (são descendentes de cativos de guerra). Dois dos homens mais evidentemente ayakobo possuem o sobrenome nawan baku (“filho de estrangeiro”), enquanto um terceiro é chamado de “marubo”, nome de uma etnia vizinha.
Estas pessoas são todas descendentes distantes de mulheres raptadas de grupos indígenas vizinhos. No entanto, tais raptos parecem ter acontecido num passado bastante distante, já que aparentemente há mais de meio século nenhum conflito ocorreu. Os “nossos ayakobo” ou “estrangeiros do interior” apesar de terem um vínculo genealógico com estrangeiros, quase não possuem relações com outros grupos indígenas da região.
Assim como as pessoas mais próximas podem ser relegadas simbolicamente ao exterior, constata-se também que os Matis incluem na categoria dos tsasibo certos grupos indígenas vizinhos, com os quais não estabelecem nenhuma relação regular – são os “tsasibo de fora”. Lembram-se simplesmente daquilo que os antigos ensinaram: este ou aquele grupo (por exemplo, os Maya ou arredios do Quixito) é tsasibo, enquanto este ou aquele outro (os Marubo e os Korubo, os mais freqüentemente citados) é incontestavelmente ayakobo.
Mais em caça |
Shobo kimo, a casa comunal
Assim como seus habitantes (os deshan mikitbo, “gente à montante”), a casa comunal deve estar orientada em direção à montante. A casa tradicional matis, de formato retangular, possui duas coberturas chamadas deshan, ou seja, dois “narizes”, uma em cada extremidade. De acordo com o modelo ideal, o shobo se dirige à montante assim comouma das coberturas que se encontra nessa mesma direção e por isso é chamada de “nariz verdadeiro”, deshan kimo.
No momento da construção de uma casa, ninguém pensaria em mal orientá-la, no entanto as possibilidades de transgressão da ordem estabelecida pelo curso das águas sempre existem. De fato, com as redes dispostas no sentido da correnteza, corre-se o risco de dormir em diagonal e sofrer as mesmas conseqüências desastrosas de um banho tomado em direção à jusante: as crianças correm o risco de se virarem elas mesmas contra o curso de sua vida uterina e assim nascerem “sentadas” (situação esta bastante temida pelas mulheres, pois mesmo que a mãe sobreviva, o bebê corre o risco de passar toda sua vida com seqüelas de um nascimento traumático).
Tanto no banho quanto na rede, o bom curso do mundo, ou ainda, da sociedade, decorre portanto de uma orientação correta dos indivíduos. O pertencimento à comunidade dos deshan mikitbo exige o respeito a um conjunto de restrições.
Tradicionalmente, uma aldeia matis se resumia a uma grande casa comunal, cercada de plantações e de pequenos abrigos mais ou menos distantes, onde se podia ficar retirado, repousando do trabalho na roça ou confeccionando artefatos protegidos dos olhares alheios, da chuva e do sol.
Seria ingênuo supor que atualmente a configuração espacial e a composição sociológica dos grupos matis corresponderiam ainda aos padrões tradicionais. Desde que os Matis vivem em contato regular com os “neobrasileiros”, muitas coisas mudaram, entre elas, sua arquitetura, que ganhou um novo tipo de construção: a casa construída sobre palafitas, uma imitação das casas dos ribeirinhos da região.
Tais casas, muitas vezes chamadas de takpan (o nome da madeira da qual são feitas), são geralmente designadas de nawan shobo, “casas dos brancos”. Esse nome traduz não só a origem nawa do seu estilo, mas também a sua utilização, pois estas casas servem de depósito dos bens de origem não indígena.
Depois de um longo período reunidos em uma só aldeia (desde o início da década de 80), os Matis voltaram a se organizar (a partir de 2005) de acordo com o antigo padrão de ocupação territorial, no qual a dispersão dos grupos familiares em aldeias diferentes é central.
Sho, a substância xamânica
IO sho é uma substância característica – e mesmo a fonte de poder – dos xamãs e dos homens importantes.
Ambivalente por excelência, essa substância apresenta aspectos ora positivos, ora nefastos. Em forma benéfica, transmite-se formalmente, durante rituais, ou “por contágio”, quando alguém se deita na rede de outrem, por exemplo. Da mesma maneira, o sho patogênico também pode ser enviado voluntariamente (por meio de pequenas zarabatanas), ou involuntariamente, pela exalação, por exemplo. Os Matis podem, portanto, imputar doenças aos brancos sem realmente culpá-los e buscar vingança.
Intimamente ligado ao sistema de sabores, o sho apresenta-se sob duas formas básicas: bata sho (doce) e sho comum, amargo (chimu). A forma doce, de essência feminina, protege, ao passo que a forma amarga, masculina é perigosa. Diz-se que estar doente ou sofrer é literalmente “ficar amargo”, chimwek.
Os “brancos” (nawa), que consomem muito sal (alimento bata), mas também muita pimenta-do-reino (alimento chimu), são conhecidos por seu forte teor em sho comum (chimu) – daí as epidemias de que são sabidamente responsáveis – e, principalmente, em bata sho – daí a sua relativa “imunidade” às doenças. Os Matis não conseguem o equilíbrio entre o bata e o chimu como os “brancos”, privilegiando o último.
Antigamente, com o intuito de melhorar suas proezas na atividade da caça e, principalmente, aumentar a eficácia de suas zarabatanas, os homens se abstinham, tradicionalmente, de todo alimento bata (comida doce, tal como mamão, abacaxi, cana de açúcar), mantendo um regime alimentar e um ritmo de vida regidos pelo signo do chimu. Este é um termo polissêmico que, além do amargo, designa a dor, o gume e outras qualidades extremamente valorizadas, mas cujo excesso provoca o sofrimento e a morte.
Os caçadores ingeriam vários tipos de substâncias amargas ou ácidas (pimenta crua, chás de cipós amargos, curare pësho, vários vegetais não identificados); injetavam o kampo, veneno de sapo emético sob a pele; introduziam líquido irritante (buchete) sob as pálpebras; açoitavam-se uns aos outros, em suma, cultivavam o picante e o amargo - o chimu. Seu teor em sho era máximo, o que os deixava orgulhosos e deveria torná-los melhores caçadores, mas, ao mesmo tempo, segundo a teoria indígena, expunha-os às doenças.
Tumi, o Matis considerado como tendo mais sho verdadeiro (chimu, “amargo”), foi para a cidade tratar e uma infecção benigna, muitos achavam que estava perdido, afirmando que não sobreviveria ao excesso de nawan sho (“sho dos brancos”, por demais doce/salgado). Sua mulher chorou lágrimas de luto por ele. Protegidas por uma alimentação bata, as mulheres, ao contrário, são consideradas menos ameaçadas pelos brancos, o que talvez explique seu papel preponderante nos primeiros contatos, colocando-se na dianteira, e muitas vezes, tomando a iniciativa do diálogo (CEDI, 1981: 85). De qualquer modo, o simbolismo matis aproxima, incontestavelmente, o bata do feminino e do estrangeiro e opõe esses termos ao chimu, ao masculino e ao endógeno [interno] (Erikson, 1990).
Talvez, desde a catástrofe demográfica ocorrida no início dos anos 80, a atitude dos Matis em relação ao sho tenha se modificado. Decidiram de comum acordo vetar totalmente e abandonar a maior parte das práticas destinadas a obtê-lo, pois todos achavam que era muito perigoso mantê-las.
Embora fossem centrais na vida cerimonial e ritual matis, certas práticas dolorosas, chimu, tiveram de ser abandonadas porque se percebeu que podiam tornar os jovens vulneráveis demais às doenças e à morte (Erikson, 1987). A pimenta-malagueta não foi mais plantada nas roças e colírio buchete deixou de ser usado. Os rituais em que os ancestrais açoitavam as crianças ou em que os adolescentes eram tatuados também caíram em desuso. O número de adornos enfiados na pele (espinhos labiais e nasais), também vetores de sho, foi reduzido como que para demonstrar que seus portadores já não podiam agüentar muitos deles.
Tudo o que diz respeito ao sho pode voltar-se contra as pessoas e, portanto, em caso de um infortúnio, são elas que se voltam contra o sho e os produtos destinados a obtê-lo. A geração anterior ao contato já havia abandonado o tabaco (ampushute) e os alucinógenos (kawaro). Depois da tragédia das epidemias, foi preciso moderar também o consumo de produtos amargos destinados ao aumento da caça. Dentre eles, sentiu-se mais falta, sem dúvida, do tachik, cipó do qual se obtinha uma bebida estimulante.
[De acordo com Hilton Nascimento, é notável que, nos últimos anos, algumas dessas práticas chimu voltaram a ter uso corrente entre os Matis. Esse é o caso da aplicação do colírio buchete; da “injeção” de kampo; do açoitamento de jovens e crianças; das visitas freqüentes dos mariwin às malocas, que ocorrem principalmente na época de abundância de milho; e do ritual de tatuagem. Com relação ao tachik, somente os mais velhos voltaram a usar, pois os mais jovens não mostram interesse em seu consumo - talvez por não se sentirem seguros em utilizá-lo constantemente].
Antes, os Matis procuravam isolar-se para preservar sua saúde e buscavam o contato com os “brancos” para conseguir sho amargo (cipó tachik e utensílios chimu) e ao mesmo tempo, evitavam o bata sho (que corriam o risco de contrair durante tais expedições).
Atualmente, preservam a saúde às expensas de seu isolamento, aceitando, ao contrário, instalar-se na órbita dos remédios da Funai.
Foi, claramente, o medo da morte e não o desejo de simplificar a vida que decretou o abandono do sho. Contudo, não há dúvida de que o desaparecimento brutal dos mais velhos, que poderiam encorajar os jovens a se submeter às regras necessárias à sua aquisição, favoreceu essa nova situação. Alguns adolescentes agora afirmam que os velhos não sabiam de nada, que o açúcar e o sal (alimentos bata) são bênçãos e que, nos dias de hoje, felizmente, as picadas de cobra já não são tão chimu como antigamente. Em compensação, alguns adultos jovens demonstram uma enorme nostalgia pelo passado, sentindo saudades de uma época em que, segundo afirmam, podiam caçar o dia inteiro e dançar a noite toda sem sentir o menor cansaço; época em que, graças ao sho, a caça não era tão rara quanto agora (a atual escassez da caça – inegável desde a sedentarização – ainda é relativa).
Se o excesso de sho continua a ser invocado quando tocamos na questão das epidemias, hoje fala-se de um outro fator: o cheiro dos cartuchos de dinamite utilizada na época pelos pescadores, que teriam causado, entre outros danos, a morte de todas as preguiças dos arredores.
De uma maneira geral, podemos também dizer que o sho espanta menos do que antes. É possível constatar hoje em dia que as injeções de kampo voltaram a ter uso corrente. Do mesmo modo, enquanto no final dos anos 80 se negava , hoje admitem que alguns homens têm sho e até poderiam, se quisessem, utilizá-lo em detrimento de outrem. Alguns caçadores já não hesitam mais em, novamente, armazenar vários potes de curare [veneno de caça]. Podemos dizer que o aumento demográfico está sendo acompanhado de uma certa retomada de autoconfiança.
Os mariwin: espíritos ancestrais
Onipresentes nos discursos dirigidos às crianças, os mariwin são ancestrais genéricos (impessoais) cujo papel consiste em bater nas crianças com o objetivo de endurecer, disciplinar e torná-las mais ativas e vigorosas.
Muitas vezes, chegam na aldeia adultos adornados com máscaras, representando os espíritos ancestrais, munidos de varas, mexendo-se, curvando-se e grunhindo de modo assustador. As crianças são levadas a eles. A menos que consigam escapar, todos são açoitados, dos mais jovens aos pré-adolescentes.
Os golpes não são dados para fazer mal, mas para insuflar o tônus. Os chicotes do mariwin são feitos de talo da palmeira daratsintuk, e cada talo, quebrado ou não, só pode ser utilizado uma vez. Assim, nota-se a natureza individualizada da ligação entre a palmeira e cada criança, sugerindo que, assim como as plantas medicinais e as agulhas do tatuador que são usadas uma única vez , os golpes dados pelos mariwin tenham um valor propriamente terapêutico e preparatório.
Bater faz crescer: no caso de escassez de vegetais, se os legumes começam a faltar, os Matis, para encurtar o período de entre-safra, põem suas vestes e ornamentos cerimoniais e batem nas plantas de seu jardim a fim de incitar o seu desenvolvimento.As crianças são também açoitadas e picadas na gengiva desde a idade de dois ou três anos. Tais golpes antecipam aquilo que virá em seguida, inauguram uma vida marcada por fustigação e picadas “terapêuticas”, entre as quais se destacam as perfurações ornamentais, as tatuagens, e a ação dos mariwin, marca dos rituais de açoitamento.
Há, de fato, dois tipos de mariwin, os put (“vermelhos”, com o corpo todo coberto de lama ocre-alaranjada) e os wisu (“negros”, cobertos de terra acinzentada). Os vermelhos, que são vistos como mais próximos dos viventes, provêm de locais distantes onde antigamente viviam os Matis: das roças abandonadas que são exploradas por causa da pupunha, já que não produzem mais plantas de consumo cotidiano como a mandioca e a banana. Os negros, por sua vez, vêm de mais longe: de buracos dentro dos bancos, nas margens dos grandes rios. Seus golpes fazem supostamente mais mal às crianças que eles conhecem pouco, pois assim não precisam se preocupar em bater menos. Eles são, de um modo geral, mais distantes, como costumam dizer os Matis.
O contato perturbou inegavelmente a relação dos Matis com seus ornamentos. Alguns caíram em desuso, enquanto novos elementos foram incorporados e passaram a ser usados como adornos tradicionais, isto é, somente eram utilizados a partir de uma idade certa.
Os mais velhos se queixavam dos jovens que se pareciam às mulheres e aos nawa, não-índios. Antigamente, diziam eles, os adultos usavam todo o conjunto de ornamentos. Desde as últimas décadas, são raros aqueles que não abandonaram seu uso. No entanto, não é porque o ideal de ornamentação não é mais realizado que os Matis perderam a memória da ordem, descrita abaixo, dentro da qual os ornamentos devem ser adquiridos e acumulados.
A seqüência dos ornamentos
Os jovens matis sofrem sua primeira perfuração no lóbulo da orelha a partir da idade de quatro ou cinco anos. Em seguida, pode-se inserir uma vareta bem fina, o primeiro paut (“pingente de orelha”). Progressivamente, ao longo dos anos, o diâmetro dos paus de madeira vai aumentando até que se possa, assim que o buraco alcançar a medida de um dedo, substituir por um disco circular, chamado de tawa.
Alguns anos depois da perfuração da orelha, aproximadamente aos oito anos, perfura-se o nariz para introduzir o primeiro par de demush (“vibrissa”, pêlos que crescem na face de um mamífero), agulhas finas e pretas feitas das fibras de uma palmeira. Assim como na perfuração anterior, o processo continua durante vários anos. O número de demush aumenta até recobrir quase totalmente a narina (uma dezena em cada).
A etapa seguinte consiste na abertura do septo nasal para inserir o pingente chamado detashkete. O princípio do alargamento progressivo continua, mas como no caso dos paut (“pingentes de orelha”), somente os homens alcançam o último estágio de substituição das varetas e introduzem o mais sofisticado detashkete, artefato feito de uma parte da concha dos moluscos gastrópodes.
Em seguida, no tempo da puberdade, chega o momento de furar o lábio inferior. As mulheres começam a usar o kwiot (“enfeite labial”), de madeira clara, na época dos primeiros relacionamentos sexuais e são bastante cuidadosas com ele. Inversamente, os homens dão menos atenção aos seus, que são bem menores. Os chefes de família geralmente usam mais o enfeite labial feito de madeira negra. Sem dúvida, os homens dão menos importância a esses enfeites, pois eles possuem um outro ornamento que é posto no lábio superior. Sabe-se que, para esse povo, o baixo é feminino e o alto, masculino (a rede do homem é sempre colocada em cima da da mulher).
Dois ou três anos depois do primeiro kwiot, algumas vezes antes, seguindo a periodicidade dos rituais, chega o tempo dos primeiros musha, as “tatuagens”: duas linhas paralelas sobre as têmporas e as bochechas são desenhadas na ocasião de um ritual, que é o momento culminante da vida cerimonial matis. No ritual, jovens de ambos os sexos são tatuados simultaneamente e de modo idêntico: o motivo é o mesmo para todos.
Entre os 16 e 20 anos, plenamente adultos, os homens furam o rosto, na área da covinha que separa a região maxilar e as bochechas. Depois disso é possível a introdução dos mananukit, varetas relativamente grossas e longas feitas de madeira de palmeira preta. Como no caso dos enfeites kwiot, o número de mananukit utilizado era bem maior do que o que há hoje em dia.
No decorrer da segunda cerimônia de tatuagem, cada jovem é tatuado com uma série de linhas paralelas (de seis a oito) na bochecha esquerda, e depois na direita. O número de linhas desenhadas sobre a bochecha não é o mesmo em cada lado do rosto.
Nota-se que ao longo de um mesmo ritual certos jovens são tatuados nas têmporas e na testa, enquanto os mais velhos são submetidos à operação nas bochechas. Os Matis insistem entretanto em uma diferença: a primeira operação (testa/têmporas) é mais dolorosa que a segunda (bochechas).
A aquisição gradual dos ornamentos vem pontuar, literalmente, as etapas do amadurecimento individual, segundo uma ordem pré-estabelecida. Não há nada de surpreendente com relação a isso, já que os Matis possuem uma visão bastante linear da existência – a qual é vista como uma sucessão de etapas pré-ordenadas, uma evolução progressiva em direção a uma velhice altamente idealizada.
Os processos de amadurecimento e as questões de idade relativa possuem aqui uma grande importância, pois explicam que cada coisa deve vir a seu tempo: todo alimento, todo saber é igualmente hierarquizado. As carnes, por exemplo, são introduzidas progressivamente na alimentação; deve-se saber caçar com zarabatana antes de passar a caçar com o arco; deve-se saber fazer uma rede antes de aprender a fazer cerâmica etc. As técnicas e o saber devem ser adquiridos gradualmente; e a aquisição dos ornamentos não foge a essa lógica. Impostos segundo uma ordem pré-determinada, os ornamentos constituem classes de idade de fato, dando um contorno eminentemente concreto à predominância hieráquica que os Matis reconhecessem na senhoridade, sublinhando a importância que atribuem aos processos de amadurecimento e às questões de idade relativa.
A cerimonia dos Musha
Os Matis, como vimos, também se referem a si mesmo como mushabo, “gente tatuada”, ou como wanibo, “gente da pupunha”, sem dúvida porque os espinhos utilizados para tatuar são obrigatoriamente aqueles da palmeira da pupunha. Deve-se acrescentar que musha também significa “espinho”.
As tatuagens matis, assim como as dos outros grupos Pano, são um poderoso denominador comum, pois o pertencimento a uma comunidade é definido precisamente pela existência das marcas faciais. Como as tatuagens apresentam apenas um único motivo gráfico, permitem que todos os Matis, independente de suas origens, se autodefinam como mushabo.
Desde as últimas décadas do século XX, os Matis deram uma nova significação aos seus ornamentos e, especialmente, às suas tatuagens; esta ligada à emergência de uma identidade coletiva “matis”. A reaparição do ritual dos musha em 1986, depois de um período de dez anos de abandono, estava relacionada com a afirmação de uma identidade distinta e oposta àquela dos nawa (os não-índios).
Se a cerimônia da tatuagem dos jovens representa, sem dúvida, o eixo central em torno do qual se articula a vida ritual matis. Do ponto de vista do indivíduo, ela é, no entanto, uma etapa entre tantas outras do ciclo de formação da pessoa, que é visto como um processo contínuo e inscrito em uma duração que não se limita a sua vida física.
O ritual dos musha se caracteriza pela desmedida e pela distribuição de intensas atividades. Este pode durar até quinze dias e é sempre precedido por uma ou várias semanas durante as quais são realizados os preparativos da festa: os homens se encarregam de moquear a carne, já despidos de seus ornamentos habituais; e as mulheres, produzem a bebida e os potes novos indispensáveis para a cerimônia.
No decorrer da festa, ao invés de aparecer de modo isolado e momentaneamente, os mariwin, os espíritos ancestrais, aparecem em massa e durante todos os dias do ritual. À noite, ao invés de dormir, todos dançam dentro da maloca, imitando de maneira cômica os animais.
Enquanto dura a festa, todos se mobilizam e trabalham durante dia e noite, durante todos os dias. Pode-se fazer de tudo, menos se mostrar preguiçoso, chikeshek. Durante todo o período cerimonial, as drogas vegetais (tachik) e o estímulo físico ajudam a manter o ritmo e o descanso é (teoricamente) proibido. Para se livrar da tentação, as mulheres tiram suas redes desde o amanhecer até o crepúsculo. O repouso virá mais tarde, depois do momento culminante da festa: a tatuagem dos adolescentes (de ambos os sexos), que entram em período de reclusão (total durante cinco dias) que vai diminuindo gradualmente ao longo dos anos.
A tatuagem é feita com agulhas encharcadas de uma pasta negra, uma mistura de uma resina, mamon, de jenipapo, wisute, e de um composto obtido a partir da queima das folhas de nimen e de timpa (plantas não-identificadas). O processo, que é dito mais doloroso sobre a testa e a têmpora que sobre as bochechas, é vivido por meninos e meninas como uma prova difícil e perigosa, na qual se vê rostos ensangüentados, mas repletos de orgulho, pois provaram assim sua coragem para todos que ali estavam presentes e em particular para os anciãos, os mariwin. Estes últimos, ainda que estejam onipresentes ao longo de toda a cerimônia, não participam de modo direto do ato de tatuar, mas participam por meio de seus emissários metonímicos, os espinhos da pupunha e a resina mamon.
As tatuagens recém-feitas são bastante frágeis e exigem precauções. Depois da cerimônia, é preciso se banhar, dizem os Matis, para limpar o sangue dos ferimentos, e assim facilitar a fixação das marcas. Após a operação, não se pode sair da reclusão (durante os primeiros dias) a não ser em grupo e vestindo um chapéu bastante peculiar: para os meninos, o tukuru, para as meninas, o shaë.
Rituais de sepultamento
O morto é sepultado em posição fetal e é envolvido numa rede dentro de seu recinto na maloca. A superfície da sepultura é nivelada com barro socado. A maloca é abandonada e, depois de alguns dias, queimada. Segundo Paula (1969: 20-21), os pertences do falecido são sepultados com ele, sua rede é colocada sobre sua cabeça e então a cova é fechada. Aqueles objetos que não puderam ser sepultados junto a ele (zarabatana, arco, flechas) são queimados posteriormente.
No caso de uma morte de um índio em Atalaia do Norte, ocorrida há muitos anos atrás, o chefe do Posto foi repreendido por ter devolvido os adornos do morto a sua família, ao invés de os ter sepultado com ele, na cidade. Seus pertences foram queimados, tanto junto ao Posto como na maloca em que morava. Um pouco mais tarde, a maloca próxima do Posto, que os Matis construíram para abrigar-se em suas visitas e que o falecido ajudara a construir, foi incendiada.
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