sábado, 20 de fevereiro de 2016

Pirahã

Toy art Pirahã

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
170PirahãMura PirahãMurá

UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
AM420Funasa 2010



Os Pirahã se auto-denominam hiaitsiihi, categoria de seres humanos ou corpos (ibiisi) que se diferencia dos brancos e dos outros índios. Possuem um elaborado sistema de nominação articulado à sua cosmologia. Antes mesmo de nascer, ainda no ventre materno, recebem um primeiro nome, que acreditam ser responsável pela criação de seus corpos. Durante a vida, recebem nomes de seres que habitam camadas superiores e inferiores do cosmos, responsáveis pela criação de suas almas e destinos, e também de inimigos de guerra.

 Nome

Os Pirahã são descendentes diretos dos Mura. A língua, a cultura material, a organização social e a semelhança física não deixam dúvidas quanto a uma vinculação que tiveram no passado. Nimuendajú (1982a/1925) foi quem fez a ligação entre os dois grupos, passando a designar os Pirahã por Mura-Pirahã. A partir de então, a história dos dois grupos liga-se, irremediavelmente, tornando-se de praxe pensar os Pirahã como os modernos remanescentes da antiga 'Nação Mura', outrora habitante das margens do Rio Madeira (cf. Nimuendajú, 1948, 1982a; Rodrigues & Oliveira, 1977; Oliveira, 1978).

Pirahã é como os regionais os classificam e como eles se auto-identificam diante da população envolvente e dos demais grupos indígenas. Hiaitsiihi é a auto-denominação do grupo, significando um dos seres ibiisi (corpos) que habitam uma das muitas camadas que compõem o cosmos.

 Língua
Apaitsiiso ("aquilo que sai da cabeça") é como os Pirahã se referem à sua língua. A língua pirahã foi classificada como pertencente à família Mura por Nimuendajú (1982a). Henrichs (1964) classificou-a como tonal. Everett analisou-a em inúmeros trabalhos (cf. 1979, 1983, 1985a, 1985b, 1986a, 1986b). Uma língua tonal caracteriza-se por lançar mão de recursos supra-segmentais (a relação entre os tons) para estabelecer significados. Assim, os Pirahã podem, a partir dos tons, gerar modos de comunicação específicos: por meio de gritos, assobios, "falar-comendo". O grito permite a comunicação a grande distância e, em geral, é usado nas conversas travadas quando estão navegando em uma ou mais canoas pelo rio. A comunicação por meio de assobios ocorre em expedições na mata ou no rio, quando as vozes poderiam colocar em risco o objetivo da expedição. Everett (1983) registrou que os assobios seguem os tons, e não uma tonalidade padronizada que estabelece um significado. Assim, os Pirahã são capazes de proferir palavras, e mesmo frases, com o recurso dos assobios. O "falar-comendo" é a terceira possibilidade de estabelecer comunicação por meio dos tons; enquanto mastigam, podem continuar conversando.

A maioria dos homens entende o português, mas nem todos são capazes de se expressar nessa língua. As mulheres entendem mal o português e nunca o usam como forma de expressão. Os homens desenvolveram uma "língua" de contato para se comunicarem com os regionais, misturando palavras em Pirahã, português e língua geral amazônica (mais conhecida como nheengatu).

 Localização

Os Pirahã habitam um trecho das terras cortadas pelo rio Marmelos e quase toda a extensão do rio Maici, no município de Humaitá, estado do Amazonas. O rio Maici é formador do Marmelos, tributário na margem esquerda do rio Madeira. Os períodos de seca e de chuva provocam alterações importantes na ocupação dessa região. O Marmelos é um rio largo, de águas pretas, cujas margens apresentam mata exuberante, árvores frondosas, típica vegetação de floresta tropical. Na época da seca, despontam praias de areia branca, intercaladas por blocos de rochas e ilhas, em toda sua extensão. No período da chuva, a água invade a floresta, formando extensos igapós, que deixam aparecer somente as copas das árvores e as "terras altas".
Território Pirahã

Subindo o rio Marmelos, depara-se com um longo trecho em linha reta, denominado "Estirão Grande", início do território Pirahã. Prosseguindo na mesma direção, mais à frente, junto à embocadura do rio Maici, encontra-se uma das principais praias do Marmelos, ponto estratégico para habitação, uma vez que dá acesso à exploração dos dois rios. Cruzando a boca do rio Maici, ainda no Marmelos, passa-se por inúmeras praias, lagos, igarapés e pelos rios Juqui e Sepoti. Este último demarca os limites do território Pirahã, visto que as referências topográficas e toponímicas esgotam-se em suas adjacências.

O Rio Maici é estreito e profundo. Na travessia, avistam-se centenas de castanheiras em toda a sua extensão. A ocupação neste rio se faz desde a embocadura até as proximidades da cabeceira; a ponte que o cruza na rodovia Transamazônica, distante 90 quilômetros da cidade de Humaitá, delimita o território Pirahã. O Maici é o lugar das terras altas, pontos estratégicos para a exploração dos seus 17 castanhais. No verão, formam-se pequenas praias que servem de locais para habitação. A terra pirahã foi demarcada em 1994, tendo como limite norte o rio Marmelos: do igarapé Folharal até o igarapé Água Azul, compreendendo toda a extensão da margem esquerda deste rio; o limite sul é a ponte sobre o rio Maici, na rodovia Transamazônica; o limite leste e oeste é composto por uma extensa faixa de terra que avança mais de 8 quilômetros partindo das margens esquerda e direita, respectivamente. A região soma aproximadamente 400 mil hectares num perímetro de 410 quilômetros.

 Demografia

A população Pirahã era de aproximadamente 360 pessoas no ano 2000. Na década de 1920 e na de 1970, foram estimados em 90. Em 1985, data do primeiro censo, a Funai contou 141 pessoas, registrando um equilíbrio entre os sexos (cf. Levinho, 1986). Essa população se espalha ao longo do Maici e no trecho do rio Marmelos, em pequenos grupos, na época das chuvas, dedicando-se à coleta de castanha nos locais de exploração do produto.

Na época da seca, concentra-se em grupos maiores, habitando algumas praias dos rios referidos. Dois grandes grupos populacionais pirahã dividem o território. Um grupo de aproximadamente 120 indivíduos habita a região do Marmelos e as margens do Maici, até um local denominado Cuatá. Outro agrupamento, composto por 100 pessoas, vive à distância de cerca de dois dias de barco deste último ponto (Cuatá), ocupando, pelo menos, quatro locais até as proximidades da Transamazônica. Segundo os Pirahã, até a década de 60, estes grupos habitavam conjuntamente os locais próximos à foz do Maici. Os motivos alegados para a separação dos grupos e interiorização de um grande número de indivíduos na região do alto Maici, foram conflitos provocados por 'roubo' de mulher, desencadeando dois assassinatos. A crise definiu, assim, uma nova configuração na ocupação do território.

 Histórico do contato

Os Pirahã propriamente ditos surgem nas crônicas e documentos somente a partir do final do século XIX e começo deste século. Nimuendajú, em 1921, encontra uma aldeia Pirahã no Estirão Grande do Marmelos e outra no curso inferior do Maici. Informa que, em 1921, o SPI fundou um posto no Maici para atender a estes índios que, em sua opinião, são "felizes na sua pobreza, ...até hoje pouco têm ligado às vantagens da civilização e, excepção feita às ferramentas, quase não se encontra entre eles sinal de contato permanente com os civilizados. São extremamente indolentes, mas pacíficos, tanto que não me consta nenhuma hostilidade contra os civilizados, invasores de seus castanhais, apesar dos freqüentes abusos que estes intrusos cometem."(Nimuendajú, 1982a:117).

Mulher Pirahã com seus filhos
Nimuendajú registrou conflitos entre os Pirahã, Matanawi e Parintintin na área do alto Maici. Datam dessa mesma época as informações fornecidas por Gondin (1938), atribuindo aos Pirahã a mesma atitude belicosa dos Mura. Segundo o autor, os Pirahã guerreavam no alto Maici com os Torá e Parintintin, mantendo esse estado de beligerância até 1922, data da instalação de um posto de vigilância pelo Serviço de Proteção aos Índios - SPI (cf. Gondin, 1925).

Em 1959, é iniciada a ação do Summer Institute of Linguistics - SIL, que permanece na área indígena até 1980. Um casal atuou entre 1960 e 1966 e outro de 1967 até 1977. O SIL estabeleceu sua Missão em três localidades distintas: no Estirão Grande do Marmelos, no interior do rio Maici em um local de nome Tuxaua, e em um barranco denominado 'Posto Novo', nas proximidades da foz do Maici. Embora os missionários tenham estado em contato permanente com os Pirahã por mais de 20 anos, desenvolvendo trabalho assistencial e de evangelização, é difícil, hoje, reconhecer traços de sua passagem pelo grupo. Informações encontradas nos relatórios do SIL revelam as dificuldades para instalação de uma Missão, em virtude de os índios estarem "espalhados em vários pontos ao longo dos rios", as mulheres não falarem com estrangeiros, além dos conflitos com regionais que não queriam qualquer tipo de controle sobre o território. Em 1967, são registrados conflitos entre os Pirahã e os brancos, provocados pelo comércio de castanha, resultando na morte de um índio. Em 1968, há uma epidemia de sarampo que dizima 10% da população indígena, registrando 14 óbitos. Em 1971, ocorrem mais conflitos com os regionais, no período da safra da castanha, quando um Pirahã é esfaqueado e jogado no rio. Depois deste episódio, os índios pensam em migrar para as cabeceiras dos igarapés do Maici, fugindo, assim, dos embates com os regionais.

Um relatório de 1979, escrito por missionário voluntário católico que viveu por 10 meses entre os Pirahã na foz do Maici, estimava sua população em 107 indivíduos, sendo que 56 viviam no baixo Maici e 51 nas aldeias do alto. Informava, também, que, em 1974, o grupo fora atingido por uma epidemia de sarampo, registrando mais de 30 óbitos.

As informações deste século sobre os Pirahã - fornecidas por Nimuendajú, missionários do Summer, funcionários da Funai e antropólogos - enfatizam que o grupo, embora mantenha estreito contato com os brancos, consegue manter sua cultura tradicional e seu estilo próprio de vida. A região do Marmelos e do Maici é até hoje invadida, durante determinados momentos do ano, por comerciantes de Manicoré, Auxiliadora, Humaitá e Porto Velho. As fontes consultadas, narram, desde o começo deste século, o envolvimento conflituoso entre os Pirahã e agentes da frente extrativa da castanha. Na estação das chuvas, é constante o movimento de barcos pelo Maici. Até 1985, os regionais ocupavam feitorias ao longo deste rio, explorando os castanhais circunvizinhos. Nos dias de hoje, a situação sofreu considerável mudança. Após intervenção da Funai e de uma equipe do Conselho Indigenista Missionário - Cimi que atua na área desde 1991, os Pirahã passaram a ocupar os castanhais da região do Maici, coletando diretamente o produto que trocam por farinha, munição, roupas e instrumentos de trabalho com os comerciantes locais, numa negociação intermediada pela equipe do Cimi.

Organização social

Os Pirahã concebem o tempo como uma alternância entre duas estações bem marcadas, definidas pela quantidade de água que cada uma possui: piaiisi (época da seca) e piaisai (época da chuva). Essas marcações temporais combinam-se com formas de organização espaço-sociais. Temos, portanto, uma série de oposições concebidas a partir das relações entre tempo e espaço:

Seca                                                                 Chuva

Praia                                                                 Terra Alta
Casa Familiar                                                   Casa Coletiva
concentração                                                    Dispersão
Abundância                                                      Escassez

A organização da vida social a partir das duas estações é projetada no espaço, criando, assim, um tempo-espaço da praia versus um tempo-espaço da terra alta. Os Pirahã se organizam em pequenos núcleos residenciais, cujo número varia conforme a estação do ano. Na época da seca, encontra-se uma média de cinco agrupamentos e, na época da chuva, 10 a 13. Estes núcleos estão concentrados em duas áreas distintas do território, o alto e o baixo Maici, conformando, assim, conjuntos maiores que englobam os diversos arranjos residenciais. Os núcleos que fazem parte de um conjunto mantêm relações pautadas pela contigüidade espacial e pelos laços de consangüinidade e afinidade. Os conjuntos estão separados por uma distância considerável, são praticamente independentes, com relações esporádicas entre seus membros. Por conseguinte, as relações sociais, os casamentos, as trocas, os rituais de congraçamento se dão no interior de um conjunto.

Nos núcleos residenciais, torna-se difícil precisar o grupo doméstico ou a família elementar como unidade de produção e consumo. O casal é a unidade mais perceptível; por meio desta unidade a fragmentação da vida social ganha amarração e sistematicidade. Kage é a designação para uma relação entre duas pessoas de sexo oposto, não implicando, necessariamente, relação sexual e/ou filhos. A autonomia do casal é evidenciada nas expedições de pesca e de coleta; permanece sozinho por dias, semanas, passando, assim, a idéia de se bastar para constituir uma vida social. Por um lado, o casal produz a fragmentação, estimula o estilo de vida autônomo, não gregário, marcado por uma forma provisória de viver (mudanças constantes, abrigos frágeis, bens escassos). Por outro lado, o casal aparece como unidade fundamental, opera como um ordenador das relações sociais, costurando, mesmo que de forma tortuosa, o tecido social.

O conjunto que engloba os núcleos residenciais do baixo Maici é o mais populoso. A conformação destes conjuntos e sua manutenção no tempo devem-se a três fatores: a "herança do território", a classificação dos parentes em "próximos" e "distantes" e os casamentos, preferencialmente, contraídos no interior dos conjuntos.

Através das noções de consangüinidade e afinidade, criam-se duas formas de classificação distintas: os parentes distantes, os mage, e os parentes próximos, os ahaige. A partir dessas classificações, engendram-se formas distintas de reciprocidade e, conseqüentemente, diferenças que reproduzem níveis de inclusão e exclusão dos núcleos residenciais ou dos conjuntos maiores.

Os arranjos matrimoniais são, também, os responsáveis pela maneira como se organizam no espaço. Os casamentos podem ocorrer no interior de um mesmo núcleo residencial, entre núcleos, ou até mesmo se dar entre os conjuntos.

Na sociedade Pirahã, raramente escuta-se alguém chamar ou referir-se a uma pessoa pelos termos de parentesco; não servem de emblema para as relações interpessoais. O fato de não serem enunciados não significa que não cumpram uma função classificatória ou que não informem sobre o modo como essas relações interpessoais se constróem.

Observa-se a existência de quatro termos básicos usados numa primeira classificação do universo dos parentes. Esses termos, antepostos ou pospostos a outras palavras produzem os modos derivados para classificar uma relação. Os três modos derivados definem-se pela fixação de elementos (como pronome, verbo e substantivos que definem sexo e idade) ao termo básico.

Pode-se incluir o sistema de parentesco pirahã numa "estrutura elementar", se levarmos em consideração o termo ibaisi, que corresponde às primas cruzadas bilaterais, que vem a ser o modo como os Pirahã designam a mulher com quem se casam. No caso Pirahã, o termo ibaisi recobre as posições genealógicas "primas cruzadas" (filha do irmão da mãe e filha da irmã do pai), e é de fato o único traço, no nível da terminologia, que aponta, neste contexto, uma afinidade virtual.

Um homem se relaciona com sua mãe, com a esposa do pai, com a irmã, com a prima paralela, com a prima cruzada, com a sogra, com a cunhada, com a esposa, com a filha e com a filha da esposa. Se considerarmos que é o homem o responsável pela pesca e roça, principais atividades produtivas da sociedade pirahã, tem-se que ele é o provedor de alimentos.

As relações com a mãe, irmãs, primas paralelas e cruzadas são do tipo ahaige, ou seja, implicam que, o homem "deva pescar" para estas mulheres. Se for casado, tal prática também se aplica à sua esposa e às suas filhas e filhas de sua esposa. Através de sua esposa, sua sogra e suas cunhadas têm acesso ao produto de sua pesca. Um homem jamais afirmaria que pesca para seu sogro ou para seu cunhado, pois estes terão acesso aos produtos de sua pescaria através das mulheres.

As roças estão referidas aos homens, geralmente, irmãos que se uniram para dividir o serviço e, juntos, "comer daquela roça". Um homem terá acesso aos produtos da roça de outro homem através de uma mulher, assim poderá comer da roça do marido de sua mãe, do marido de sua irmã, do marido de sua filha e do marido da filha de sua mulher.

A caça é uma atividade pouco praticada, podendo ser exercida pelos homens e pelas mulheres. Os homens caçam com espingarda (macacos, anta, caititu, queixada, cutia, capivara, paca) e as mulheres caçam com auxílio dos cachorros (paca, caititu, cutia). A coleta é uma atividade cotidiana entre os Pirahã desenvolvida tanto na época da seca quanto na época da chuva, por homens e mulheres.

 Cosmologia

O cosmos é representado de modo estratigráfico: camadas de terra sobrepostas umas às outras, produzindo planos paralelos que não se comunicam fisicamente, a não ser pelos seres que os habitam. O que identifica estas camadas como pertencentes a uma mesma classe é a sua base morfológica. Cada patamar apresenta uma morfologia própria composta por água, terra, árvores e animais, variando apenas em forma, tamanho e número. Embora todos os patamares sejam designados migi, "terra", a diferença entre eles é marcada pelo que contém e o lugar que ocupam na estruturação do cosmos.

Os Pirahã admitem não saber ao certo o número de patamares. Apesar da incerteza quanto ao número de camadas de terra que compõem o cosmos, as pessoas reduzem essa estrutura complexa a um modelo simples, guardando detalhes e impressões de apenas cinco patamares, que parecem constituir a forma mínima possível para representar a cosmologia.

____________________ abaisi e ibiisi

____________________ abaisi e ibiisi

____________________ ibiisi

____________________ abaisi, kaoaiboge, toipe, ibiisi

____________________ abaisi e ibiisi

As linhas são os patamares do cosmos. Cada um deles é habitado por determinados seres (ver nomes, à direita). O patamar intermediário é habitado exclusivamente por seres ibiisi, os demais o são pelos abaisi e pelos ibiisi, exceto o patamar imediatamente abaixo do intermediário, que abriga, também, os kaoaiboge e os toipe. Ibiisi é uma designação genérica para "ser humano": são ibiisi os Pirahã, os brancos e os outros índios. O que define um ibiisi é o fato de ele possuir um corpo com uma forma específica. Os abaisi têm a mesma forma geral dos ibiisi (são antropomorfos), mas ela é imperfeitamente realizada, são seres defeituosos ou deformados. Os kaoaiboge e os toipe são transformações póstumas dos ibiisi, habitando o patamar imediatamente abaixo do intermediário.

Os Pirahã têm um elaborado sistema de nominação articulado diretamente à sua cosmologia. Um Pirahã recebe o primeiro nome antes mesmo de nascer, ainda no ventre materno. O nome que recebe tem uma estreita relação com a sua concepção, é o nome do corpo (ibiisi). Outra fonte de nomes vem dos seres abaisi que habitam o cosmos. Se os nomes ligados à concepção, nomes de origem, são responsáveis pela criação de sua matéria, seu suporte, o ibiisi (corpo), os nomes ligados aos seres abaisi estão relacionados à sua "alma", nomes de "destino". Os mortos têm um papel importante no processo de nominação. Se aos abaisi compete prover nomes que dão a "alma" ou a possibilidade de destino póstumo, aos mortos, em geral, compete a responsabilidade de comparecer ao ritual xamânico representando os nomes dos abaisi e de passá-los, por intermédio do xamã, para os ibiisi. A crença pirahã é de que, ao possuir um nome de abaisi, estará assegurada a transformação em kaoaiboge e toipe, cada qual podendo ter, assim, um destino.

Cada nome de abaisi que um indivíduo possui refere-se à possibilidade de se transformar em dois seres, denominados kaoaiboge e toipe. Kaoaiboge é um ser pacífico, que se alimenta de frutas e peixes, vítima canibal dos toipe. Assim, se um indivíduo tem oito nomes de abaisi terá, certamente, seu destino assegurado através da transformação em oito kaoaiboge e oito toipe. A relação com os inimigos é uma fonte de nomes. Segundo os pirahã, existiu na sua sociedade uma classe de pessoas designada euebihiai. Essa categoria compreendia os guerreiros/matadores que tinham como principal objetivo o assassinato de inimigos e a caça, provendo o alimento ritual a ser consumido. O inimigo produzia nome, a caça não, mas ambos eram tratados da mesma forma nos rituais realizados para a sua ingestão. Os matadores observavam cuidadosamente o inimigo antes de matá-lo para nominá-lo. O matador, então, dava ao inimigo o nome de abaisi que um morto possuíra. Vê-se que a lógica desse tipo de prática onomástica baseava-se na semelhança física de corpos: corpo de inimigo e corpo de um pirahã morto. Corpos iguais, nomes iguais. Essa lógica é empregada até hoje para a nominação dos estrangeiros. O euebihiai ao matar o inimigo apossava-se do seu nome. Guardava para si ou o transmitia a outros pirahã.

 Ritual e xamanismo

Classificamos como pertencentes ao plano ritual todas as ações que põem em relação os ibiisi com os abaisi e com os kaoaiboge e toipe. São dois os tipos de rituais: o xamanismo e a festa. Ambos têm a intenção de colocar em relação o domínio social com o do sobrenatural, mas o xamanismo é o ritual privilegiado pela sociedade, enquanto as festas, qualificadas de "grandes" e "pequenas", são rituais complementares.

O xamanismo materializa o processo de interação entre os ibiisi e os abaisi e/ou entre os ibiisi e os abaisi e os kaoaiboge e toipe. É por meio do xamã e de sua performance que o encontro ganha dramaticidade e sustentação. O xamã "troca de lugar" com os abaisi ou com os mortos visitando os seus respectivos patamares enquanto estes vêm ao patamar pirahã. O desempenho do xamã permite à sociedade o aumento e o resgate do patrimônio onomástico. O xamanismo é uma possibilidade de fornecimento de nomes "novos" à sociedade. Sua inserção no complexo onomástico se faz a partir da apresentação de nomes de abaisi aos ibiisi para que estes os utilizem, posteriormente, na nominação. Assim, o xamã é a base do ritual, ser único que é capaz de representar, a cada sessão, toda a cosmologia.

A "Festa Pequena" e a "Festa Grande" têm a mesma justificativa de existência: colocar o cosmos em operação. Na percepção pirahã, ambos rituais são realizados com a intenção de provocar ruídos, fazer barulho, para que o demiurgo Igagai, localizado no segundo patamar celeste, possa ouvi-los, cientificar-se de sua existência e do lugar exato aonde se encontram. O receio dos Pirahã de não serem localizados por Igagai pode ser interpretado como um temor de que se repita o que está contido no fragmento mítico que narra a destruição do mundo. A destruição do mundo deveu-se, em última instância, ao fato de Igagai ignorar onde os pirahã estavam. Foi somente com o choro das mulheres, que restaram sozinhas e sem o fogo, que Igagai pôde, então, escutar, localizar e iniciar a reconstrução do mundo. Ambos os rituais são preferencialmente realizados em época de lua cheia. A lua cheia é interpretada pelos pirahã como o forno onde Igagai torra a sua farinha. Entendemos que a realização do ritual no período da lua cheia seja uma tentativa de que, ao localizar Igagai sob a lua cheia, este possa, também, localizar os pirahã.

 Fontes de informação

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