Toy art índio da etnia Baré |
# | Nomes | Outros nomes ou grafias | Família linguística | Informações demográficas | ||||||||||||
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34 | Baré | Hanera | Aruak |
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Os índios Baré e Werekena (ou Warekena) vivem principalmente ao longo do Rio Xié e alto curso do Rio Negro, para onde grande parte deles migrou compulsoriamente em razão do contato com os não-índios, cuja história foi marcada pela violência e a exploração do trabalho extrativista.
Homem Baré segurando o chicote |
Oriundos da família lingüística aruak, hoje falam uma língua franca, o nheengatu, difundida pelos carmelitas no período colonial. Integram a área cultural conhecida como Noroeste Amazônico.
Localização
A área formada pelo Rio Xié e alto curso do Rio Negro, acima da foz do Uaupés, é ocupada principalmente pelos índios Baré e Werekena, sendo que mais de 60% dos índios do Xié se identifica como Werekena. São aproximadamente 140 sítios e povoados, onde residem cerca de 3.200 pessoas. A maioria da população vive em “comunidades”, como são chamados esses povoados na região, que geralmente compõe-se de um conjunto de casas de pau-a-pique construídas em torno de um amplo espaço de areia limpa; uma capela (católica ou protestante); uma escolinha; e, eventualmente, um posto médico. Há, porém, comunidades que não possuem nada além das casas de moradia. Os principais povoados são Cucuí, Vila Nova e Cué-Cué.
Território Indígena Baré |
No Rio Xié existem hoje nove comunidades: Vila Nova, Campinas, Yoco, Nazaré, Cumati, Tunu, Umarituba, Tucano e Anamuim. As comunidades situadas à montante da cachoeira de Cumati são: Tunu, Umarituba, Tucano e Anamuim. No caso de Tunu, localizada numa ilha, sua população vive majoritariamente em sítios pequenos, tais como Macuxixiri ou Cuati, indo para a comunidade apenas na época das festas de santo, em junho.
Acima de Cucuí, o Rio Negro deixa o Brasil, passando a ser o limite entre Venezuela e Colômbia. À montante do canal do Casiquiari, que liga ao Orinoco, na Venezuela, o Rio Negro é denominado de Guaínia. O curso do Rio Negro entre a foz do Uaupés até a cidade de Santa Isabel é a área que atualmente concentra o maior contingente populacional de todo o noroeste amazônico. As cidades de Santa Isabel e, sobretudo, São Gabriel da Cachoeira atuam como pólos de atração de populações que antes viviam mais no interior, nas margens dos formadores do Rio Negro. O fluxo populacional das comunidades do interior do município em direção à cidade de São Gabriel se caracteriza pela busca de complementação do estudo escolar, trabalho remunerado, serviço militar e proximidade do comércio com preços mais acessíveis que os praticados pelos regatões e barcos de comerciantes que se deslocam pelos rios.
Línguas
Os Baré e os Werekena falavam línguas da família Aruak. Mas com o contato com missionários e a colonização adotaram a Língua Geral ou nheengatu e, atualmente, esta língua representa uma marca de sua identidade cultural. Ainda assim, algumas comunidades do Alto Xié falam Werekena, utilizando-a situacionalmente.
O nheengatu é uma forma simplificada do Tupi antigo, falado em grande parte do Brasil nos primeiros séculos da colonização portuguesa, e que foi adaptado e amplamente difundido pelos missionários jesuítas. Com o tempo e o predomínio do português como língua nacional, o nheengatu foi perdendo terreno. Porém, continua vivo e muito usado na calha do Rio Negro, em seu curso médio e alto, inclusive em São Gabriel, e em alguns de seus afluentes, como no Baixo Içana e no Rio Xié.
Histórico do contato
Os Werekena entraram em contato com o “homem branco ” provavelmente no início do século XVIII, havendo várias referências a este povo em relatos e documentos desse século. Em 1753, o Padre Jesuíta Ignácio Szentmatonyi (ver Wright 1981:603-608) noticiava que os “Verikenas” habitavam o Rio “Issié” (Xié), falando sua própria língua, muito parecida com a dos Mallivenas. Indicava também que o chefe deles havia sido “convidado” dois anos antes para “descer” o rio e adotar o cristianismo. Outras fontes (Caulin 1841: 70-75; Cuervo 1893, t. III: 244, 322-323, 325, 327; Arellano Moreno 1964:389) indicam a presença de aldeias Werekena em 1758-60 nos rios Guainía (acima da foz do Cassiquiari), Tiriquin, Itiniwini (atual São Miguel e seus afluentes Ichani, Ikeven ou Equeguani e Mee), Atacavi, Alto Atabapo e Caflo Maruapo (afluente do Cassiquiari), região onde ainda hoje vivem os Werekena, na Venezuela. Estas mesmas fontes indicam a presença desses índios, em 1767, na confluência do Cassiquiari com o Guainía e na boca deste canal com o Orinoco, trazidos pelos colonizadores do Itiniwini e do Caño Muruapo.
O Padre José Monteiro de Noronha ([1768] 1856: 79-80), indica a presença dos “Uerequena” em 1768, no Rio Xié, convivendo com outros povos: “Baniba” (Baniwa), Lhapueno (?), Mendó (?) e outros. Viveriam também no Rio Içana, juntamente com os Baniba, Tumayari (?), Turimari (?), Deçana, Puetana (?) e outros. Para este padre, os Uerequena “chamados comumente, por corrupção do vocábulo, Ariquena, tem por distintivo hum furo mui largo entre a cartilagem, e a extremidade inferior das orelhas em que metem molhos de palha. Entre eles se acharam muitos, que antecedentemente a comunicação e conhecimento dos brancos, tinham nomes hebraicos, huns puros e outros com pouca corrupção, como: Joab, Jacob, Yacobi, Thome, Thomequi, Davidu, Joanau e Marianau”. Estas informações sobre os Werekena serão repetidas ao longo do século XVIII, com algumas modificações e acréscimos, pelos viajantes da região.
Nos anos de 1774-1775, grupos de “Uariquena” estariam morando em Barcelos, provavelmente “descidos” em anos anteriores pelos colonos portugueses, conforme o relato de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio (1825: 104-114). Este militar português também fez referência à presença de “Uerequena” no Rio Içana, enquanto que no Xié informou que viviam os “Assauinaui” (provavelmente trata-se de uma fratria Baniwa, os Dzauinai). Dos “Uerequena”, afirmou novamente que são “célebres pela comunicação, que antecedentemente tiveram com os brancos, e usarem os nomes hebraicos, como são: Joab, Jacobi, Thome, Thomequi, Davidu, Joanau, e Marianau. He esta nação antropófoga é célebre por usar de escrita de cordões, na forma dos quipos dos antigos peruvianos, com o que transmitem os seus pensamentos a pessoas distantes, que entendem, e sabem decifrar aqueles nós, e cordões, que também lhe servem para uso aritmético”.
No ano de 1784, Manoel da Gama Lobo d’Almada, militar português, não aponta ter avistado qualquer indígena nas margens do Rio Xié, mas dá sinais de que havia muitos – embora não os nomeie – entre as cabeceiras deste rio e o Tomo, afluente da margem direita do Guainia:
entrei pelo rio Xié e naveguei por ele aguas acima até a um braço oriental dele, chamado Uheuaupuiy [provavelmente igarapé Teuapuri], pelo qual subi até dar em um torrão de terra baixa aonde achei por entre matos a trilha de um caminho estreito e fundo mas bem seguido. (...) hera preciza toda a boa ordem na marcha porque havia muita gentilidade, a quem estávamos ouvindo todas as madrugadas tocarem os seus trocanos, espécie de tambores. Duas vezes nos saíram espias deles armados de Curabis que são umas pequenas flechas ervadas com que nos atiravam; mas com alguns tiros de vanguarda os fizemos retirar e seguimos pacificamente a nossa marcha.
Alexandre Rodrigues Ferreira - [1885-88] 1983:253-254 -viajou pelos rios Xié e Içana em 1785, informando-nos que foi advertido no Xié pelo índio piloto de que o “gentio Uerequena as tinha [sentinelas] sempre avançadas neste passo [cachoeira], para ser informado das canoas que chegavam, e segundo as forças que nelas reconheciam, e de que davam parte às espias, assim se resolviam a abalroá-las ou não”. Interessante observar que o naturalista, chegado à cachoeira de Cumati, anota no seu diário que “d’ella para cima ha bastante piassaba”, anunciando desde já o interesse econômico pelos mananciais desse rio.
No Rio Içana, Alexandre Rodrigues Ferreira indica também a presença dos “Uerequena”, juntamente com os Banibas, Termaisaris, Turimaris, Duanaes, Puitenas e outros. Dos Uerequena, apesar de não tê-los visto pessoalmente, repete as afirmações de Monteiro de Noronha sobre a comunicação por cordões e seus nomes hebraicos, e diz fazerem um largo furo entre a cartilagem e a extremidade inferior das orelhas para nele introduzirem molhos de palha” (ibid: 249). Numa memória escrita posteriormente, em 1787 (1974: 69-73), o naturalista revela uma série de características dos Uerequena, certamente advindas de informações fornecidas por terceiros, tais como os que acompanharam a “tropa” chefiada por Miguel de Sequeira Chaves realizada em 1757, para reprimir um “ataque” de índios rebelados (provavelmente no Baixo Rio Negro), na qual havia alguns “Warekena domesticados”. Dentre essas características, pode-se destacar, além do furo na orelha, o fato de que eram “antropófagos”, de que costumavam praticar a eutanásia com velhos e enfermos irremediáveis e de que possuíam “currais” de prisioneiros.
No início do século XIX, o cônego André Fernandes de Souza ([c.1822] 1848: 411ss.) repetia as informações sobre os Werekena advindas de Monteiro de Noronha e Alexandre Rodrigues Ferreira: “os índios da nação Uerequena são antropófagos e tem o distintivo de trazerem as orelhas furadas nas cartilagens inferiores, em que metem pedaços roliços de pau, de modo que alguns já lhe chegam as orelhas aos ombros a força do uso dos paus”. Habitantes do Rio Içana, os Uerequena conviveriam com os Baniu, Tumayari, Turimari, Deçana e Puetana. Não nos fornece nenhuma referência aos habitantes do Rio Xié. Refere-se também a Marcelino Cordeiro, o qual teria feito incursões contra os índios, capturando-os à força como prisioneiros, tendo havido reações por parte dos índios.
Todos esses relatos, apesar de serem algo duvidosos quanto à precisão da descrição física e cultural dos Werekena, pois revelam que são majoritariamente informações de terceiros sobre esse povo, parecem deixar claro, porém, que tinham uma população razoavelmente grande, apesar dos descimentos e epidemias terem provocado baixas e intensas migrações.
Conheça também o relato do baré Braz de Oliveira França sobre a história do contato com a sociedade não indígena.
Os relatos também apontam que deviam ocupar um território entre o Içana, o Xié e o Guainía, mantendo estreitas relações (inclusive guerras) com seus vizinhos, pelo menos até meados do século XIX, período em que as informações históricas são muito precárias sobre aquela região. A partir deste período voltam a surgir algumas referências a respeito dos Werekena em textos de natureza diversa, que apontam para uma diminuição populacional do grupo, na medida em que os brancos aumentam sua presença na região.
A longa história de contato entre comerciantes de produtos extrativos e os índios do Rio Negro também foi iniciada no século XIX. Comprova-no um ofício enviado pelo Presidente da Província do Pará ao Ouvidor do Rio Negro em 1821, a respeito da “civilização e aldeamento dos índios”, no qual invoca-lhe “punir severamente os comandantes e autoridades que maltratarem os gentios, e aqueles mercadores que os enganarem em suas permutações, desacreditando assim a moral que se lhes pretende insinuar”. Ou seja, o chefe de Estado procurava, já em 1821, coibir os excessos contra os índios feitos pelos “mercadores” e também pelas autoridades civis e militares. Muitas vezes na história daquela região ficaria difícil distinguir comerciantes de autoridades, pois todos constituíam as duas faces da mesma moeda, que era a exploração violenta e abusiva do trabalho indígena.
Tanto do lado brasileiro como venezuelano, a partir do início do século XIX, muitos índios foram envolvidos na exploração extrativa do cacau, da salsaparilha, da piaçaba, do puxuri, da balata e depois da borracha, entre outros produtos, sendo submetidos a trabalhos compulsórios pelos comerciantes. Isto deu início a migrações forçadas e fugas de vários índios que foram transportados pelos comerciantes para trabalharem nos diversos mananciais de produtos extrativos (Cf. Wright, 1992:263-266).
Viajando pelo Rio Negro em 1848-50, o naturalista inglês Alfred Russel Wallace fornece outras indicações. Em seu relato de viagem ([1853] 1979:149; 308), informa que os “Ariquenas” estariam estabelecidos no Rio Içana, juntamente com os Baniua, Bauatanas, Ciuci, Quatis, Juruparis, Ipecas, Papunauas, que correspondem a fratrias baniwa. Quanto ao Rio Xié, afirma que “os indígenas que habitam suas margens são pouco conhecidos e selvagens” e “desenvolve-se nele um incipiente comércio”. Entretanto, nenhuma observação sobre quem e como seriam esses “indígenas selvagens” do Xié, e qual seria esse comércio incipiente, que poderia ser de piaçava, cuja produção era já significativa nessa época e encontrada nas páginas de seu relato. Aos “Ariquena” habitantes do Içana, reporta apenas que “do mesmo modo que os cobeuas, atacam as outras tribos para capturarem prisioneiros. Seus conceitos religiosos e superstições assemelham-se bastante aos dos Uaupés”.
Poucos anos depois de Wallace, entre 1852 e 1854 aproximadamente, o Frei Gregório José Maria de Bene, padre capuchinho, e o Diretor dos Índios Jesuino Cordeiro, comerciante no Alto Rio Negro, segundo os documentos registrados por B. F. Tenreiro Aranha na Revista do Arquivo do Amazonas (1906: 67-68), apontavam os “Uriquena” como habitantes do Rio Içana, juntamente com os Baniua, Piuns, Cadauapuritaua, Murureni, lurupari, Siussi, Quaty, Ipeca, Tapibira, Tatutapia, Caetitu, lujudeni, Uaripareri (todas fratrias baniwa). Segundo Tenreiro Aranha, o citado Diretor dos Índios conhecia também o Xié, mas o historiador amazonense não fornece, à luz dos documentos que apresenta, nenhum dado referente à população que ali residia.
Em 1857, o capitão de artilharia Joaquim Firmino Xavier (apud Avé-Lallement, [1860] 1961: 1 22ss.), vem assumir no Alto Rio Negro a tarefa de “domiciliar índios na fronteira”, ou seja, “colonizar com índios (...) o Rio Içana (...) e o Xié (...)”, índios com quem se encontrou pessoalmente, o que talvez permita inferir quem sejam aqueles “selvagens pouco conhecidos” de Wallace e visitados por Jesuino Cordeiro no Xié. Outra testemunha desse século é o conde italiano Ermano Stradelli, que desceu o Rio Negro, desde Cucuí, em 1881. Segundo ele, o Xié estava quase deserto. É possível que a população indígena estivesse vivendo nas cabeceiras e em pequenos igarapés, justamente para evitar o contato destrutivo com os brancos.
A leitura dessas fontes parece indicar que os Werekena viajariam, ou manteriam uma vida itinerante entre o Içana, Xié e o Gualala, provavelmente pelo Rio Tomo e diversos “varadores”, itinerância ativada ainda mais pelas pressões da penetração dos brancos, tanto do lado venezuelano quanto brasileiro. Tal hipótese talvez possa explicar as referências que se fazem a esse povo, em épocas distintas, no Içana, no Xié e no Guainía. Quanto aos movimentos migratórios referidos neste documento, porém, seriam causados em grande parte – como evidencia não só o relato de Firmino Xavier, mas o do próprio Avé-Lallement – pela repressão que os militares vinham fazendo contra os movimentos messiânicos surgidos naquela época entre os índios do Içana e Xié (a esse respeito ver o item “histórico do contato” da página “Etnias do Içana”), como também pela obrigatoriedade desses índios trabalharem nas obras da fortaleza de Cucuí. Certamente, em anos imediatamente anteriores a 1857, os militares tenham provocado muita violência contra os índios, inclusive aos Werekena, pois nada mais poderia explicar o temor que haviam adquirido em relação aos oficiais, provocando tamanha evasão populacional, que implicou o abandono de casas recém-construídas, roçados e áreas de caça, pesca e coleta, enfim, fatores essenciais a sua existência física e cultural (ver Wright, 1981: 289ss).
Longas migrações foram levadas a cabo pelos índios devido às fugas, certamente relacionadas, entre outros motivos, à superexploração dos comerciantes. O que parece certo é que houve baixas populacionais em todos os grupos do Içana e Xié nesse período, grassando entre os índios, de forma profunda e duradoura, o pavor de avistar qualquer homem branco se aproximando de suas aldeias. Nesse sentido, esses relatos reforçam a hipótese de que violências de ambos os lados da fronteira provocavam a diminuição não só da população indígena, mas sua migração compulsória ora para o Brasil ora para a Venezuela.
Muitos desses aspectos da história no século XIX desdobraram-se no século XX. A presença dos comerciantes intensificou-se e a exploração do trabalho indígena nos seringais, piaçabais e balatais atingiu em cheio os índios do Rio Negro. Um velho Baré, por exemplo, conta que seu pai, nascido em 1888, trabalhou com o comerciante português Antonio Castanheira Fontes, que no início deste século era “o maior comerciante do Baixo Rio Negro”, e “chegou a ver na casa do comerciante português um toco de pau-brasil com correntes para amarrar os fregueses e surrá-los com chicote”.
A partir do início do século XX, muitas famílias que haviam debandado para a Venezuela retornaram para o lado brasileiro, motivadas não só pelas revoluções que ocorriam lá, mas também pela violência de comerciantes que exploravam a produção extrativa dos índios no Guainia e Casiquiari. Uma vez no Brasil, os índios novamente tiveram que enfrentar a exploração dos comerciantes, em busca de piaçava, de borracha e de sorva, além dos militares de Cucuí.
O sanitarista Oswaldo Cruz, num relatório que escreveu sobre o vale do Amazonas no início do século XX, menciona a migração forçada de índios oriundos do Alto Rio Negro para o “Baixo Rio Negro”, pois afirma que “quando os proprietários de seringais do Rio Negro têm necessidade de novos fregueses vão procurá-los muitas vezes além de S. Gabriel, no Rio Caiairi (Uaupés), muito habitado, e além, nos limites da Venezuela (1913:106). Esta migração, neste período e posteriormente, passou também a ter, em parte, um conteúdo voluntário, pois muitos índios vieram provavelmente ao “Baixo Rio Negro” em busca de seus parentes escravizados ou seus descendentes que permaneceram na área. Muitas famílias também conseguiram fugir dos patrões e retornar às suas regiões, sobretudo as que escaparam das epidemias que grassavam nessas zonas de exploração, como a malária.
Preparação para o ritual de Kasimájada |
Curt Nimuendajú, no seu relatório de viagem pelo Alto Rio Negro feito para o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), em 1927, faz um relato sobre os comerciantes e suas relações com os índios que, com as devidas proporções, poderia ser perfeitamente aplicado à situação atual da região:
“Todos os que negociam com índios sabem perfeitamente que, salvos raras exceções, nenhum deles paga voluntariamente o que deve, mas só debaixo de maior ou menor pressão exercida pelo credor. Em vez porém de lhe negar a vista, o comerciante, pelo contrário, trata de arrumar quanto antes uma dívida nas costas do índio, já calculando de adquirir desta forma o “direito” de cativar o devedor e de obrigá-lo ao pagamento da maneira como o negociante bem entender, ficando o índio assim muitas vezes em condições piores que as do cativeiro, legal, pois não representa para o seu senhor um objeto de valor intrínseco que faz parte de sua fortuna, senão somente o valor da dívida” ([1927] 1982:183).
Na mesma direção, o cientista José Cândido de Melo Carvalho dá esse depoimento em 1949, quando viajou por toda região do Alto Rio Negro: “Todos com quem conversei neste trecho (Médio Rio Negro) são unânimes em afirmar que certos brancos desta região exploram demasiadamente os índios, obrigando-os a levarem uma vida de verdadeira escravidão” (1952:23). A tradição oral indígena não oferece qualquer contestação a essas histórias narradas por viajantes e pesquisadores.
Ocorreu também que muitos comerciantes brancos, como Germano Garrido, casavam na região com mulheres indígenas, muitas do povo Baré, provocando grande miscigenação na área do Rio Negro, e criando vínculos de parentesco e compadrio entre os comerciantes brancos e os índios, abrindo assim espaço para alguns “cunhados” indígenas que atuavam com pequenos intermediários entre eles e os fregueses.
Vida religiosa
As comunidades localizadas à jusante da cachoeira de Cumati – Nazaré, Yoco, Campinas e Vila Nova – têm uma população majoritariamente protestante, sob a influência da Missão Novas Tribos do Brasil, que possui uma sede próxima à Vila Nova, quase na desembocadura do Rio Xié, com um contingente de quatro missionários permanentes.Esta sede instalou-se no Xié no início dos anos 1980, mas o trabalho missionário já era coordenado desde antes pela Missão localizada na foz do Rio Içana. Nestas comunidades, ao menos publicamente, não se bebe nem fuma, o que significa dizer que não fazem mais “festas de caxiri” nem dabucuris, nas quais a bebida e o tabaco são essenciais. Ali se realizam “Conferências”, que são as reuniões dos “crentes”. Entretanto, a maioria de seus habitantes, quando doentes, costuma procurar os pajés e benzedores das comunidades católicas, que ainda utilizam os recursos tradicionais como o tabaco, o paricá e as “rezas” (cantos), proibidos pelos missionários, para as atividades de cura.
As comunidades situadas à montante da cachoeira de Cumati – Tunu, Umarituba, Tucano e Anamuim – são católicas. Nas festas de santo, em junho, há grande abundância de bebida, comida, dança e rezas, por vários dias seguidos. As ladainhas são cantadas em latim, mantidas pela tradição oral desde os séculos XVIII ou XIX. Mas essa população também resguardou as tradições anteriores ao contato com os católicos, tais como a mitologia e os conhecimentos dos pajés.
Meninas fazem o ritual de Kasimájada |
Antigamente, os Índios faziam duas cerimônias kasimájada: uma no verão e outra no inverno, que podiam durar até doze dias. O Kasimájada ou rito de iniciação quase desapareceu. É para os moços e as moças e realizados um no verão e outro na estação das chuvas. Começa com um jejum durante o qual consumiam apenas água, chibe, caribé e vinho de açaí (Euterpe oleracea). Depois eles provam a comida chamada kariamã, feita de muitas especies de peixe e muita pimenta. Comiam-se também carne de caça, frutos selvagens, beiju e farinha de mandioca. Durante a noite anterior o pajé reza e sopra a fumaça do cigarro sobre toda a comida. os iniciantes se flagelam com um chicote feito com cipó ou galhos amarrados com curagua, e nas extremidades eram colocadas espinhas de peixe elétrico. Durante as danças que seguem, os índios pintam o corpo e usam cocares de penas. Hoje alguns dos Baré querem ‘recuperará cultura e fazer de novo os ritos de iniciação (Gourevitch 2011).
A Igreja Católica nunca construiu uma Missão no Rio Xié, tal como existe em Assunção (Içana) e Taracuá, Iauaretê e Pari Cachoeira (Uaupés). Entretanto, os salesianos fazem sucessivas “visitas” ao Xié. Em 1992, quando perguntado ao morador mais idoso do rio, senhor Viriato Cândido, 97, qual teria sido o primeiro padre que ele avistou nesse rio, ele respondeu: “padre Lourenço”, ou seja, Lourenço Giordano, um dos que implantou a Missão Salesiana no Rio Negro em 1914; mas é bastante provável que a presença do catolicismo na região seja anterior.
A divisão religiosa do rio em duas partes coincide também com uma divisão geográfica representada pela cachoeira de Cumati. No entanto, há casamentos entre pessoas “de cima” e “de baixo” da cachoeira e as relações sociais são geralmente amistosas.
Atividades econômicas
A população indígena do Rio Xié costuma trabalhar na extração da fibra da piaçabeira. Normalmente, a partir do mês de outubro até fevereiro do ano seguinte, os índios iniciam um período preparatório, que se confunde com a época do ano em que as famílias permanecem nas comunidades ou sítios, dedicando a maior parte do tempo de trabalho às atividades agrícolas, de caça, pesca e coleta.
Em seguida, há o deslocamento para as barracas de piaçava, situadas a montante, período que pode durar até dois meses, dependendo da distância entre a comunidade e o ponto da barraca. Nos meses da cheia, de maio a setembro, há o corte e o processamento da piaçava, posteriormente entregue ao patrão como pagamento de dívidas contraídas anteriormente. Trata-se, portanto, de um ciclo anual, em que a atividade extrativa não está dissociada das demais atividades cotidianas da vida Werekena e Baré, tais como as tarefas domésticas, a caça, a pesca, a coleta, o trabalho na agricultura e a confecção de objetos de trabalho. Desse modo, a atividade extrativa não está isolada, mas “encaixada” em um sistema maior de produção da vida econômica e social da população local.
Uma rede de pequenos, médios e grandes comerciantes foi responsável em grande parte pelo deslocamento compulsório de populações indígenas de suas regiões de origem para as áreas de exploração extrativista. Entretanto, quando do final do “fabrico” ou após a crise de certo produto, como foi o caso da borracha e da balata no século XIX, muitas famílias ou indivíduos retornavam a suas regiões. É nesse sentido que a exploração do trabalho extrativo pelos comerciantes é um dos componentes fundamentais para se compreender, hoje, as sociedades indígenas do Alto Rio Negro.
Do ponto de vista econômico e político, tal atividade mantêm-se com destaque entre os índios do Rio Xié, na medida em que a piaçava representa, juntamente com o cipó, o principal recurso natural cuja comercialização permite o acesso daquela população a alguns itens industrializados de que necessitam, estes adquiridos de comerciantes intermediários. Este é um fator que leva à continuidade dessa atividade na região e que lhe confere uma relevância social.
Desde a década de 70, principalmente devido ao decréscimo da atividade extrativa na região, provocada sobretudo por fatores externos, a categoria do “grande comerciante” deixou de existir na região, mantendo-se apenas, com poder reduzido, o “pequeno” e o “médio”, sendo o último responsável pela conexão com outros mercados. A maioria dos pequenos comerciantes é indígena e negocia com seus “patrões” mestiços ou brancos. Há porém muitos médios comerciantes, como os que atuam no Rio Xié, que mantém seu vínculo diretamente com os fregueses, sem o intermédio do pequeno comerciante. A tendência atual deste é ser independente, ou seja, vender o produto direto em São Gabriel da Cachoeira.
Fontes de informação
FREIRE, José Ribamar Bessa. Barés, Manaos e Turumãs. Amazônia em Cadernos, Manaus : Museu Amazônico, v. 2, n. 2/3, p. 159-78, 1994.
GOUREVITCH, Aparecida, 2011, ‘Os Baré da Venezuela e do Brasil da área indígena e da cidade-ontem e hoje’, Cadernos CERU vol 22, no 1, São Paulo, junho 2011.
MEIRA, Márcio. Laudo antropológico Área Indígena Baixo Rio Negro. Belém : MPEG, 1991. 183 p.
. O tempo dos patrões : extrativismo da piaçava entre os índios do rio Xié (Alto Rio Negro). Campinas : Unicamp, 1993. 128 p. (Dissertação de Mestrado)
. O tempo dos patrões : extrativismo, comerciantes e história indígena no noroeste da Amazônia. Belém : MPEG, 1994. 27 p. (Cadernos Ciências Humanas, 2)
OLIVEIRA, Ana Gita de. O mundo transformado : um estudo da "cultura de fronteira" no Alto Rio Negro. Brasília : UnB-ICH, 1992. 286 p. (Tese de Doutorado)
Esta tese foi publicada no final de 1995 pelo MPEG de Belém dentro da Coleção Eduardo Galvão.
OLIVEIRA, Christiane Cunha de. Uma descrição do baré (arawak) : aspectos fonológicos e gramaticais. Florianópolis : UFSC, 1993. 104 p. (Dissertação de Mestrado)
. Dupla negação em Bare : uma explicação diacrônica. Rev. do Museu Antropológico, Goiânia : UFGO, v. 3/4, n. 1, p. 105-20, jan./dez.99/00.
OLIVEIRA, Lúcia Alberta Andrade de. Os Baré e as práticas ocidentais de saúde. Manaus : UFAM, 2001. 96 p. (Monografia)
SANTOS, Antônio Maria de Souza. Etnia e urbanização no Alto Rio Negro : São Gabriel da Cachoeira-AM. Porto Alegre : UFRS, 1983. 154 p. (Dissertação de Mestrado)
VIDAL, Silvia M. Al chamanismo de los Arawakos de Rio Negro : su influencia en la política local y regional en le Amazonas de Venezuela. Brasília : UnB, 2002. 20 p. (Série Antropologia, 313)
. Liderazgo y confederaciones multietnicas amerindias en la Amazonía luso-hispana del siglo XVIII. Antropológica, Caracas : Fundación La Salle, n. 87, p. 19-45, 1997.
. Reconstrucción de los processos de etnogenesis y reproducción social entre los Baré del Rio Negro (Siglos XVI-XVII). Caracas : CEA-IVIC, 1993. (Tese de Doutorado)
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