Toy Art da etnia Hã-Hã-Hãe |
# | Nomes | Outros nomes ou grafias | Família linguística | Informações demográficas | |||||||||
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166 | Hã-Hã-Hãe | Patachó Hã-Hã-Hãe | Jé |
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Em sua totalidade, os índios conhecidos sob o etnônimo englobante Pataxó Hãhãhãe abarcam, hoje, as etnias Baenã, Pataxó Hãhãhãe, Kamakã, Tupinambá, Kariri-Sapuyá e Gueren. Habitantes da região sul da Bahia, o histórico do contato desses grupos com os não-indígenas se caracterizou por expropriações, deslocamentos forçados, transmissão de doenças e assassinatos. A terra que lhes foi reservada pelo Estado em 1926 foi invadida e em grande parte convertida em fazendas particulares. Apenas a partir da década de 1980 teve início um lento e tortuoso processo de retomada dessas terras, cujo desfecho parece ainda longe, permanecendo a Reserva sub-judice.
Localização
Habitam a Reserva Indígena Caramuru-Paraguassu, no sul da Bahia, nos municípios de Itajú do Colônia, Camacã e Pau-Brasil. Vivem também na Terra Indígena Fazenda Baiana, no município de Camamu, no baixo-sul da Bahia.
Terra Indígena Patachó Hã-Hã-Hãe |
A população da RI Caramuru-Paraguaçu compreendia, em 2005, 2.147 indivíduos, sendo 1.139 homens e 1.008 mulheres. Já os habitantes da Fazenda Baiana somavam 72 pessoas (33 homens e 39 mulheres). Os dois conjuntos populacionais totalizavam 2.219 pessoas.
A RI Caramuru-Paraguaçu compõe uma faixa que se estende do rio Cachoeira ou Colônia, ao norte, até o Pardo, ao sul. À margem direita do rio Colônia foi, em 1927, instalado o Posto Caramuru, ao norte da reserva, em área formada por extensos pastos artificiais. O único rio que corta a reserva é um riacho de água salobra, sugestivamente denominado Salgado. A água para consumo humano provém da estocagem da água de chuva ou, esporadicamente, abastecimento por caminhão pipa ou tambores mediante pagamento de frete.
Língua
As línguas das várias etnias compreendidas sob o etnônimo Pataxó Hãhãhãe não estão mais operativas, salvo por vocábulos lexicais. Até 1911, as línguas pataxó e kamakã estavam, seguramente, em plena vigência, o que significa que o violento contato a que os índios foram compelidos, através do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), causou-lhes terrível impacto, atingindo também as línguas nativas. No caso da língua pataxó, ela persistiu, no mínimo, até 1938, quando Curt Nimuendaju encontrou falantes estabelecidos na Reserva Caramuru-Paraguaçu. M. de Wied-Neuwied, F. Martius, B. Douveille, C. Nimuendaju e Maria Aracy Lopes da Silva e Greg Urban coligiram vocabulários entre os Pataxó setentrionais ou Hãhãhãe, em distintos períodos, mas apenas Wied-Neuwied recolheu-o entre os chamados Pataxó meridionais. Nimuendaju observou, a esse respeito, que não obstante o seu vocabulário divergisse muito daquele que o príncipe tomou de um grupo Pataxó na Vila do Prado, em 1816, ele acreditava tratar-se de vocabulários de uma mesma nação.
Tribo Patachó Hã-Hã-Hãe |
Um vago parentesco da língua Pataxó com a família lingüística Maxakali já havia sido suscitado desde C. Loukotka. Martius reuniu as línguas Macuni, Copoxô, Cumanaxô, Panhame e Monoxô, Pataxô e Malali, e mais algumas outras, no grupo lingüístico dos “Goytacás”, admitindo algum parentesco com o grupo Jê. Steinen reduziu o grupo Goytacá aos Maxakali, Macuni, Capaxô, Cumanaxô e Panhame e, sob reserva, os Pataxó, e fez dele uma subdivisão do grupo Jê. Ehrenreich, Rivet e o P. Schmidt conservaram esta classificação. Somente em 1931, C. Loukotka, examinando outra vez e detidamente os escassos vocabulários existentes, chegou à conclusão de que essas línguas, inclusive o Malalí mas exclusive o Pataxó, formavam uma família lingüística completamente independente da família Jê, com o que concordou Nimuendaju, que julgava que também a cultura dessas tribos, “tanto a material como a espiritual”, os distanciava grandemente dos Jê (Nimuendaju 1954 :61).
Em 1971, o Cel. Antônio Medeiros de Azevedo cedeu a Agostinho uma lista de 71 vocábulos dos mesmos índios, por ele obtida quando no comando da tropa que, em 1936, submeteu o posto Paraguaçu. Agostinho obteve, por sua vez, um vocabulário com o total de 120 formas, recolhido entre os Pataxó meridionais (Porto Seguro e adjacências). Cópias da lista de Azevedo e dos questionários-padrão que Agostinho aplicou, juntamente com a fita magnética gravada, nessa oportunidade, foram remetidas ao Setor de Lingüística do Museu Nacional para fins comparativos. Aryon Dall´Igna Rodrigues, que procedeu à análise, concluiu tratar-se de material pertinente à língua Maxakali (informação pessoal a Pedro Agostinho). De fato, Rodrigues classifica a língua Pataxó como parte da família lingüística Maxakali e as línguas Kamakã, Mongoiá e Menien como incidentes na família Kamakã (Rodrigues 1986). Em 1983, com os dados coligidos por Maria A. Lopes da Silva e Greg Urban diretamente da última falante da língua Pataxó, a velha Bahetá, a CPI-SP elaborou a cartilha “Lições de Bahetá”.
História
Nas terras onde está localizada a Reserva Caramuru-Paraguaçu, criada pelo então Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1926, em terras devolutas do Estado da Bahia, para “gozo dos índios Pataxós e Tupinambás” (Lei Estadual nº 1916/26. Diário Oficial. Salvador, 11/08/1926. Pp. 9935.), viviam tradicionalmente os Pataxó Hãhãhãe e Baenã, conforme preconiza a tradição oral. O índio Kamuru-Iguaxó Igueligecis, por exemplo, se referiu aos Hãhãhãe como “os índios nativos do posto, conquistados na Serra do Couro Dantas” (entrevista concedida, em 1977, na Aldeia de Barra Velha, Porto Seguro, BA, à Maria Rosário G.de Carvalho).
O não-índio Otaviano, nascido em Itajú do Colônia, na área do PI Caramuru, em uma fazenda denominada Belo Horizonte, referiu-os como os índios “pegados na Serra das Três Pontas, depois re-denominada Itarantim”. O pai de Otaviano teria “amansado” índios na Fazenda Acampamento, estabelecida a dois quilômetros do Posto Indígena Caramuru: “foi onde alojou os índios que vieram de Itarantim. Meu pai foi ajudar a cuidar deles, ajudar a ensinar eles falar, ensinar a trabalhar”. De acordo com o seu depoimento, os índios “pegados” nas matas do PI Caramuru eram deslocados, na época da seca, quando não havia caça, para os locais Rancho Queimado e Mundo Novo, no PI Paraguaçu, ao sul da reserva.
No período da chuva, quando a caça e o peixe eram abundantes, os índios retornavam para Itajú, particularmente para “Toucinho” e “Entra com Jeito”. Otaviano mencionou Honrak: “esse já veio sendo capitão do mato, o chefe da turma, quem comandava a turma toda”, cuja mulher se chamava Titiaca; Bahetá, “essa veio do mato!”, Mucai, Bute, Milú, Arquelau, Tamanin e Ketão, sendo a última “era a índia mais velha que tinha na aldeia”. Detentor de uma memória muita vívida, ele chegou a particularizar certos casos, como o do índio Dedé, “que ninguém sabe se é vivo ou morto porque foi mudado para o Posto Maxacali [presídio Crenak] e desapareceu”, fato que teria ocorrido em 1952 ou 1953, na época do Inspetor Moreira, do SPI, quando o gado e os vaqueiros da reserva foram deslocados para Minas Gerais. Esse foi o período mais intenso da política de arrendamento que fracionou a reserva em parcelas, distribuídas entre vários particulares. Finalmente, ele também referiu aos “descendentes de índios do Catolé Grande” como Davi, marido de Maura Titiá, Arsênio e José Caboclo (entrevista à Jurema M.A. Souza, em Itabuna, 2004).
Devido à extinção de outras aldeias, por força da Lei N. 198, de 21/08/1897, do Poder Executivo do Estado da Bahia, diferentes grupos indígenas foram, em épocas distintas, deslocados para a área da reserva Caramuru-Paraguaçu. De Olivença teriam vindo contingentes Tupiniquim e Botocudo (Aimoré e Gueren); de Santa Rosa, os Kariri-Sapuyá, que já haviam sido expulsos de Pedra Branca, situada na porção sul do Recôncavo baiano; e da antiga aldeia de Ferradas (São Pedro d´Alcântara), grupos Kamakã e Guerén. Otaviano enfatizou que esses não eram índios selvagens. “Esses índios aí foram aparecendo... Ah! aqui é terra de índio, aí foram tomando posse e se habituando, não foram pegos, eles que vieram”.
Os Tupinambá, em geral referidos sob a denominação Índios de Olivença, chegaram à Reserva em 1936, liderados pelo índio Marcelino, em busca de refúgio contra as perseguições sofridas na região do seu antigo aldeamento. O os Kariri-sapuyá foram conduzidos à Reserva, em 1939, pelo etnólogo Curt Nimuendaju, que estava em visita à região; e, finalmente, os de São Pedro d´Alcântâra foram reunidos e recolhidos pelo SPI, a partir de 1926.
Os Guerén, Kamakã/Mongoió e Kamakã-Menien
No rio Itaípe ou Pardo, havia sido estabelecida, por volta de 1756, para os Guéren – denominação que os Aimorés ou Botocudos recebiam nessa região – a aldeia de Almada, projeto que havia fracassado por razões não muito claras (Wied-Neuwied 1958:339). De todo modo, à época da passagem do príncipe, supunha-se que os Guéren, salvo por um velho chamado capitão Manuel e por duas ou três velhas, haviam morrido todos, e dos índios do litoral que haviam sido deslocados para habitar a aldeia, alguns teriam retornado às matas e outros deslocados, desta vez para a aldeia de São Pedro d´Alcântara, que já dava sinais, também, de breve desaparecimento (ib.:344). Dois anos depois, portanto em 1818, o velho índio Manuel havia morrido e apenas “alguns índios mansos, provavelmente da tribo dos tupiniquins, que já não sabiam mais falar a língua de seus pais, ficaram para servir de caçadores aos novos colonos” (Spix & Martius 1976: 162).
Os Kamakã são originários do rio de Ilhéus ou Catolé, onde eram também denominados Mongoiós (ib.:348). Às margens do rio Cachoeira, havia sido fundada, em 1814, quando se concluíra a estrada de Minas, a aldeia de São Pedro d´Alcântara ou Ferradas, onde eles teriam sido reunidos – formando o principal núcleo da população, cerca de 60 a 70 “almas”, em 1818, quando aí passaram Spix e Martius (1976: 167), juntamente com espanhóis e “homens de cor (pardos). A estrada de Minas ou do Rio Pardo, implantada com os objetivos de fazer participar a região costeira de Ilhéus, que não possuía pecuária alguma, da fartura dos sertões a leste do arraial do Rio Pardo, e abrir um caminho para trazer os produtos do interior até o litoral, atravessava matas habitadas pelos índios Kamakã (“cabeça enrodilhada”) e malogrou, entre outros fatores, pela falta de capim para o gado, que, às vezes, chegava à costa completamente enfraquecido, pela contração de febres pelos tropeiros e a presença de índios bravios, razões pelas quais se preferia seguir, com as boiadas e cavalarias, via Conquista ou ao longo do Rio Gavião, embora o percurso fosse mais longo e sujeito a secas freqüentes” (Spix & Martius 1976:165-166).
De acordo com o príncipe Wied-Neuwied, o território dos Kamakã se estendia do rio Cachoeira, ao sul, onde principiava às margens do córrego da Piabinha – considerado, ademais, o ponto extremo das incursões que os Pataxó do litoral faziam no interior (Wied-Neuwied 1958:368) – até o Rio Pardo, enquanto que ao norte eles se estabeleciam até além do Rio das Contas, onde já teriam renunciado “à vida selvagem”. Entretanto, seriam, conforme a sua classificação, mais civilizados que os Pataxó e Botocudos, seus vizinhos, que não viviam mais exclusivamente da caça e já cultivavam plantas para sua subsistência (ib.:356). Uma grande parte dos índios Kamakã teria morrido de uma moléstia contagiosa, e os restantes fugido para as matas. No momento da visita do príncipe, São Pedro d´Alcântara só era habitada por um padre vigário e meia dúzia de famílias, que esperavam medidas de proteção do governo “Essa povoação está situada numa zona inteiramente selvagem, rodeada por todos os lados de florestas cheias de animais ferozes, e percorridas por bandos de Patachós”, afirma o príncipe. Esses índios não haviam causado até então o menor mal aos habitantes, mas como não se conseguira concluir com eles um tratado, eram olhados com desconfiança (Wied-Neuwied 1958: 357).
Já as matas do Belmonte constituíam, em 1816, o principal “recesso” dos Botocudos, em virtude do que o rio não era navegado sem perigo, já que se criara em torno desses índios uma celebridade. Aí também estavam estabelecidos os Menien, denominação atribuída aos Kamakã dessa área, aos quais o príncipe Wied-Neuwied se referiu como uma “raça peculiar de índios civilizados convertidos ao cristianismo”, que se auto-designariam, porém, como Kamakã. Termos remanescentes da antiga língua, que o príncipe considerou “em extremo deturpada”, entendida apenas por uma minoria de gente velha, testemunhariam a sua origem, no Catolé, onde teriam permanecido até a chegada dos paulistas, que mataram muitos Índios e rechaçaram da região os que resistiram ao assalto, como os próprios Kamakã, compelidos a se deslocar para a Vila de Belmonte, onde os encontrou o príncipe, “completamente mansos e em parte cruzados com a raça negra, alguns empregados como soldados, outros como pescadores e lavradores” (Wied-Neuwied 1958: 235). Hábeis em trabalhos manuais, eles confeccionavam esteiras, chapéus-de-palha, cestos, redes de pescar e redes para capturar caranguejo. Eram também bons caçadores, mas já teriam trocado os arcos e flechas pela espingarda (ib.).
Tanto no Catolé como no Verruga, ambos afluentes do Pardo, havia kamakã/mongoiós que trabalhavam por dia. Eles viviam a maior parte do tempo nus, pintados com urucu e jenipapo, colares de sementes grandes em volta dos pescoços, chefiados pelo mulato português João Gonçalves Costa, que aí residia e tinha sob seus cuidados diferentes aldeias, ou “rancharias” (Wied-Neuwied.1958: 385-86). Costa havia adquirido notoriedade como aventureiro e conquistador que aí teria aportado, acompanhado de um bando de homens armados, declarado guerra aos primitivos habitantes do território, os Kamakã, se apossado do seu território e fundado o arraial de Conquista (ib.: 428). Havia também famílias kamakã em Barra da Vareda, no Riacho da Ressaca, campos gerais que se estendiam até o rio São Francisco e confinavam com o sertão da Bahia, onde a criação de gado constituía a principal atividade (Wied-Neuwied.:405). Eles trabalhavam aí também mediante salário, empregados, sobretudo, na derrubada das matas ou em caçar na floresta. A maioria havia sido batizada e alguns traziam uma cruz vermelha pintada com urucu na testa (ib.:393). O comércio entre Minas e Bahia se fazia nessa área por diferentes caminhos. “Grandes tropas de sessenta a oitenta burros vão e vêm sem parar transportando mercadorias, principalmente sal, que falta em Minas” (Wied-Neuwied: 407).
J. B. de Sá Oliveira registrou a presença, em 1894, de Kamakã à margem do Catolé Grande, tendo destacado a sua perícia na fabricação de tecidos, mais especialmente estofos de fios de algodão muito bem trabalhados e tingidos de cores vivas e variadas, que não guardava correspondência, em qualidade, com a cerâmica, que, salvo por alguns corrugados, era confeccionada mediante a pulverização de certas pedras, cujo pó era misturado à argila, à qual se adicionava água. Modelados, os vasos eram levados ao fogo (RIGHB 1894: 209).
Estabeleciam-se, assim, os Kamakã nas grandes florestas que iam desde o rio Pardo, através do Catolé, até o rio das Contas, na fronteira da área de ocupação Kariri-Sapuyá. Eles não iam absolutamente até o litoral, com receio de grupos isolados de índios Pataxó que deambulavam nesse intervalo, até quase o último desses rios (Wied-Neuwied.: 428-9). O príncipe visitou uma aldeia de Kamakã por ele classificados “completamente selvagens mas já se curvando à vontade de seus opressores, adotando seus usos e costumes” e constatou que alguns ainda andavam completamente nus, exceto, no caso dos homens, pelo uso da tacanhoba (estojo peniano) referida para os Botocudos, que eles denominavam hiranaika; furavam, às vezes, as orelhas, pintavam o corpo e deixavam cair os cabelos ao longo das costas. Todos já cultivavam milho, banana, mandioca, um pouco de algodão e muita batata. A farinha, contudo, vinha de fora. Não usavam redes mas camas formadas de um estrado de paus sustentado por quatro estacas, que cobriam com estopa. Fabricavam panelas com argila cinzenta, faziam corda de algodão e as mulheres teciam, artisticamente, os seus aventais, tingidos de vermelho e branco. As suas armas constituíam, para o príncipe, “prova” de que os seus homens possuíam “maior indústria inata que os outros ramos dos Tapuias: arcos cuja altura ultrapassava a de um homem, flexíveis e fortes (Wied-Neuwied 1958: 429-433) e flechas apenas envenenadas com o extrato de uma trepadeira, quando utilizadas na guerra (Spix & Martius 1976: 168). Eles confeccionavam também flechas ornamentais tão delicadas que o príncipe mostrou surpresa de que pudessem ser produzidas por “mãos tão grosseiras, servidas por instrumentos tão ruins” e bastões lisos, outrora vistos, às vezes, nas mãos dos chefes. Nas ocasiões solenes, principalmente nas danças, os chefes usavam barretes – charó – de penas de papagaio, artisticamente confeccionados (Wied-Neuwied ib.: 433) e, às vezes, uma vara aguda e bem polida, de madeira vermelho, na guerra, a modo de bastão de comando (Spix & Martius ib.: 168).
Curt Nimuendaju encontrou, em 1938, onze Kamakã estabelecidos na Reserva Caramuru-Paraguaçu, no denominado Riacho do Mundo Novo. Eles haviam sido compelidos a emigrar – os vizinhos não-índios tomaram-lhes as terras – em 1932, da sua última aldeia, no Catolé, a cerca de 60 km em linha reta acima da reserva, para onde se deslocaram a convite do funcionário do SPI Alberto Jacobina. Entre eles só restavam dois falantes da língua, duas velhas, a mais nova das quais morreu, justamente, no dia da chegada de Nimuendaju ao local. Jacinta Grayirá, a sobrevivente, parecia ter muito mais de 70 anos, era cega de um olho e surda. Foi através dela que Nimuendaju recolheu, ao longo de um mês de intenso trabalho, uma tabela com termos de parentesco, vinte e quatro mitos e um vocabulário, esse último por ele considerado no mesmo nível dos vocabulários recolhidos por Wied-Neuwied e Martius mas aquém daquele registrado por Douville (Nimuendaju 1938).
Os Kariri-Sapuyá
Sob a denominação genérica de Índios da Pedra Branca havia, tradicionalmente, dois grupos: os Kamuru, da Aldeia Pedra Branca, posteriormente denominados Kariri, e os Sapuyá ou Sabuja, da Aldeia Caranguejo, um quarto de hora mais ao sul, ambos pertencentes à família lingüística Kariri, respectivamente aos ramos Kipeá e Sabujá. Aos primeiros se imputa uma trajetória caracterizada por estreito relacionamento com a instituição militar, durante o governo colonial, na condição de soldados utilizados na captura de escravos foragidos e na repressão a quilombos; já aos segundos, uma reputação de índios refratários à igreja e aos poderes seculares Os dois grupos comporiam, em 1818, de acordo com os naturalistas alemães Spix e Martius, em visita à região, um contingente de “600 almas” (Spix e Martius 1976:121).
À época da passagem do príncipe Wied-Neuwied, eles estariam supostamente “todos civilizados; o que deles resta é conhecido pelo nome de “Cariris da Pedra Branca”. Na condição de soldados, sempre que recebiam ordens para uma expedição, levavam consigo suas mulheres e filhos (Wied-Neuwied.:466).
Entre as décadas de 1840 e 1860, os Kariri-Sapuyá se envolveram em confrontos, motins e sublevações variadas. A aldeia de Caranguejo desapareceu depois de 1865, em face do que os dois grupos se reuniram em Pedra Branca. Novos confrontos tiveram lugar, o que teria culminado com a sua expulsão da região de origem, provavelmente em 1884. Uns resistiram, aí, por certo tempo, outros foram aniquilados e outros tantos se dispersaram. Alguns anos mais tarde, eles se reuniram, agora em Santa Rosa, afluente da margem esquerda do rio Contas, um pouco ao norte da atual cidade de Jequié, onde já estariam estabelecidos, ou se estabeleceram no mesmo período, os índios originários da Aldeia de Trancoso, em Porto Seguro, daí também expelidos, aos quais se teriam juntado, ainda, índios tobajara da “aldeia de Batateira”, nas proximidades de Areias, atual cidade de Ubaira. Ali, os refugiados viveram em paz por algum tempo, até que os seus vizinhos não-índios cobiçaram as terras da aldeia. “Espremeu-se os índios dos seus sitios, perseguindo e aterrorizando-os com todos os meios “legaes” até que abandonaram novamente a aldeã” (Nimuendaju 1971: 278). Eles então se retiraram para o Gongogi, e, enxotados daí, agruparam-se no local chamado São Bento, nas cabeceiras do Catolé. A região estava desabitada, mas algum tempo depois, quando os índios já tinham casas e roças, apareceram, também aí, os “donos legítimos das terras”, mandaram medi-las e expeliram novamente os índios. Uma parte deles refugiou-se, então, em 1938, na Reserva Caramuru-Paraguaçu, sob o aconselhamento do etnólogo e funcionário do Serviço de Proteção aos Índios Curt Nimuendaju, que realizava uma “jornada oficial de observação” à região que se estende do sul da Bahia até o vale do rio Doce, ao longo da vertente oriental da serra do Mar (Nimuendaju 1971).
Nimuendaju permaneceu na Reserva Caramuru-Paraguaçu de 22 de setembro a 28 de novembro de 1938, tempo suficiente para observar o estado de abandono em que ela se encontrava e que teria ensejado sua intrusão por parte da população regional (Nimuendaju 1938). Dos Kariri-Sapuyá aí recém-fixados, que ele também designava “índios de São Bento”, ele registrou que não conservavam quaisquer vestígios da língua original, tampouco qualquer “particularidade tribal”. Em contrapartida, teriam desenvolvido, apesar ou devido à miscigenação, um profundo sentimento de divisão étnica, a humanidade sendo distinguida entre “nós”, enfeixado pelos índios, independentemente da afiliação lingüística e étnica, e os “outros”, os “contrários” (ib.8). O seu deslocamento para o sul da Bahia não teria alterado positivamente o sentimento de desconforto urdido ao longo das sucessivas migrações. Nesse sentido, uma certa confiança em relação ao etnólogo só se manifestaria ao perceberem seu comportamento refratário aos intrusos e próximo aos índios. Incessantemente, eles relatavam-lhe as perseguições a que tinham sido submetidos, um dos temas recorrentes sendo a “história da resistência armada” e o trágico final dos seus “últimos guerreiros”, Rodrigues e João Baetinga, nas caatingas da Pedra Branca. Um dos kariri-sapuyá que serviu de informante a Nimuendaju, convencido de que na Bahia ainda vigorava a monarquia e um vice-reinado, afirmou-lhe que a situação dos índios só melhoraria com a volta de D. Sebastião, índio como eles, cuja imagem por ele possuída, retratava-o de tanga e portando flechas (Nimuendaju 1938).
Naquele que se afigura como o último período do confronto armado, seis índios morreram e quinze foram feitos prisioneiros, transportados para Salvador e tratados como criminosos militares. Foram julgados em 1854, sendo que 12 dos que haviam resistido às condições de prisão foram liberados, e Baetinga e um outro índio foram condenados a trabalhos forçados (Carvalho 1994).
Os Pataxó
Dos Pataxó, dirá Aires de Casal que eram mais numerosos do que todas as outras nações juntas; e estendiam-se repartidos em tribos duma até a outra extremidade da província (Casal 1976: 216). Do mesmo modo que João Gonçalves da Costa, que utiliza o etnônimo Cutachós como alternativo ao Patachó, Casal emprega Cotochós, e afirma que no sertão eram conhecidas, de “largo tempo duas nações pagãs: Patachós ou Cotochós, e Mongoiós” (Casal 976: 222).
Douville contradiz Casal, ao afirmar ter encontrado os Pataxó várias vezes e que eles formavam uma população pouco numerosa, que habitava, geralmente, o rio de Contas. A pequena magnitude demográfica se deveria, em parte, à varíola que teria sido “maliciosamente” introduzida entre eles pelo coronel José de Sá Bitanco, que, por morte de João Gonsalves da Costa, se encarregou da sua conquista. Bitanco morava às margens do rio de Contas, à altura do local onde os Pataxó tinham as suas principais aldeias, e deixava suspensos nos ramos de árvores toda sorte de objetos que ele julgava lhes fossem atraentes. Os Pataxó, em troca, retribuíam com belas flechas, o que o coronel entendeu como uma declaração de guerra. Então ele introduziu pus de tumores da varíola em um boné que suspendeu sobre os ramos de uma árvore, contaminando os Pataxó, que “morreram como moscas” (Douville apud Métraux 1930: 285). Eles usavam os cabelos longos, pintavam os corpos nus (Douville ib.:286) e faziam uma cavidade no lábio inferior e no lóbulo, introduzindo no orifício um pedaço de bambu (Wied-Neuwied 1958: 286).
No período da fundação do Posto Paraguaçu (1927), o centro principal de estabelecimento dos Pataxó eram as cabeceiras do Rio Salgado, afluente da margem norte do Cachoeira, de onde atacavam, às vezes, os viajantes na estrada Ilhéos-Conquista (Nimuendaju 1938). Esse etnólogo os encontrou, em 1938, reduzidos a 23 indivíduos, dos quais 16 habitavam na reserva Caramuru-Paraguaçu. Esse contingente seria o que havia persistido dos cerca de cem Pataxó que, durante os últimos dez anos, haviam sido capturados pelos administradores do Posto, e estava, então, dividido em dois grupos. O primeiro era composto de três homens, três mulheres e três crianças que moravam em um alpendre aberto para um lado e cercado com um muro, junto à cozinha do Posto. Não falavam português, ou pelo menos não eram capazes de se comunicar nessa língua, e viveriam ociosamente, elaborando, de modo negligente, arcos e flechas, as únicas armas que possuíam, à época, o que ele imputava à “confraternização com o pessoal neo-brasileiro” (Nimuendaju 1938). O segundo grupo era formado por uma jovem mulher que havia abandonado o marido índio para viver com o cozinheiro do Posto, sua filhinha mestiça, dois rapazinhos e três moços que, ao contrário do outro grupo, falavam regularmente o português e muito pouco a língua indígena (Nimuendaju 1938). O ambiente que prevalecia no PI era, de acordo com Nimuendaju, incompatível com a realização de trabalho científico, o que muito o desalentou, já que ele supunha constituírem os Pataxó a camada mais primitiva da população indígena da parte sudeste do estado da Bahia, entre os rios Mucuri e Contas: não cultivavam uma única planta sequer, não teciam e não conheciam nem canoas nem a arte cerâmica. Os seus recipientes para água e mel eram sacos de couro de macaco. Carregavam bagagem em aiós de cordas de envira. A primeira expedição que, a partir do posto, foi ao seu encontro, ainda se deparou com um acampamento de 15 ranchos de cumeeira, cobertos com casca de árvore, circulando uma praça aberta na mata com uma árvore no centro, ao redor da qual parecia que dançavam (Nimuendaju 1938).
Fora da reserva Caramuru-Paraguaçu, Nimuendaju supunha existir ainda outro pequeno bando Pataxó de sete indivíduos, que habitava, em estado selvagem, o rio Guabira, que desemboca três léguas abaixo do Salto Grande, no rio Jequitinhonha pela banda do Norte, mas desses há quatro anos não se tinha mais notícias. Outro bando habitava, antes de 1927, no baixo rio Gongogi, e havia sido, gradativamente, exterminado pelos fazendeiros vizinhos. Em 1938, só restava do grupo um único homem que, quatro vezes capturado pelos funcionários do Posto Paraguaçu, fugiu três vezes antes de falecer (Nimuendaju 1938).
Baenã
Em 1927, por ocasião da fundação do Posto Paraguaçu, habitava ao sul do divisor das águas, para os lados do rio Pardo e um pouco acima da Reserva, uma pequena tribo denominada Baenã pelos Pataxó, e à qual Jacobina designou Nocnoács (Jacobina 1932). Até então eles eram completamente ignorados pela literatura etnológica e Nimuendaju chegou a afirmar não ter nenhuma idéia sobre a origem dos Baenã. Eles teriam sido, também, capturados à força e arrastados para o posto, lá morrendo quase todos em pouco tempo, restando, em 1938, apenas um menino de uns seis anos “pegado” pequenino e que nunca havia aprendido uma única palavra sequer da língua da tribo. Além dele, existia ainda um pequeno grupo de cerca de dez indivíduos nas cabeceiras do Ribeirão Vermelho, afluente do alto rio Cachoeira pela margem direita, fora, portanto, da Reserva. Em janeiro desse ano eles mataram um homem com duas flechadas, e, no decorrer da permanência de Nimuendaju, flecharam animais.
A sua cultura seria, conforme esse etnólogo, muito semelhante à dos Pataxó, mas as duas tribos se distinguiriam tanto pela língua como pelo físico. O único objeto material baenã registrado por Nimuendaju foi uma flecha, que ele considerou ser, talvez, a mais comprida que jamais tivesse visto: 1,30 m de comprimento, haste inteiramente de madeira com uma ponta de taboca aposta com amarração de casca de guembé, e emplumação tangencial, em forma de ponte (1938).
O órgão indigenista e a expropriação dos territórios indígenas
Em 1911, o SPI (Serviço de Proteção aos Índios, órgão indigenista oficial até 1967) fundou um posto de atração na confluência do Gongogi com o rio de Contas, a doze léguas da vila do Gongogi (SPI: 1913: 22). Por essa época, os funcionários do órgão ressentiam-se da falta de intérpretes para as línguas pataxó e kamakã, o que dificultava a sua tarefa, na Bahia e em Minas, de proteção aos índios, contra os quais eram organizadas batidas, pelas quais os índios, infalivelmente, se vingavam.
Na década de 1930, a Inspetoria de Proteção aos Índios da Bahia estava incorporada à Inspetoria Regional do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, e, até janeiro de 1932, havia sido gerida por Alberto Jacobina. Nesse mesmo mês e ano, ele redige um relatório em que afirma que a origem dos vários grupos Tupinambá que estavam se extinguindo na zona cacaueira do sul baiano, havia sido finalmente esclarecida: os Han-han-hãe seriam Gueren; os Baenan seriam os Noc-Noács do Pardo; os Baenan-mintãe, os Kamakan do Gongogi; ao passo que os Pataxó estariam reduzidos ao pequeno grupo do Jequitinhonha (Jacobina In RIGHB 1934: 253).
Jacobina relata os esforços desenvolvidos, em 1931 para retirar, “a custo e com grande despeza”, da mata que se estende do Cachoeira, atravessa o Pardo e o Jequitinhonha e limita com a zona criadora do Estado de Minas Gerais, os grupos indígenas aí estabelecidos, em razão da “miseria nelles produzida”, tendo se tornado impossível defender a mata e os índios. A malária fez vítimas tanto no grupo de índios que tinha sido atraído para o PI Paraguaçu quanto no pessoal trabalhador do estabelecimento. À malária se seguiu a Leishmaniose que também causou vitimas entre os Pataxó, atacando-lhes através do aparelho nasal.
De contexto tão desfavorável se aproveitaram os passarinheiros (caçadores sertanejos) e grileiros, de modo que a mata foi invadida por todos os lados e afugentados para longe os índios que ali residiam (Jacobina In RIGHB 1934: 255). Ele ressalta haver esses suportado, dentro dos postos de atração, “onde a falta completa de gêneros, remédios e recursos pecuniários lhes dava a impressão de terem sido chamados da floresta para morrer”, até os primeiros dias de 1932. Jacobina só chegou em abril, com os recursos, quando eles já tinham abandonado o Paraguaçu, no rio Cachoeira, tomado por invasores e caçadores sertanejos (Jacobina In RIGHB 1034: 256).
Jacobina não hesitou em denunciar as queixas dos índios por ele classificados “sedentários”, ou seja, os Tupinambá de Aricobé, Olivença, Catolé e Barcelos, de serem “enxotados” das suas terras quando recusavam concordar em vendê-las e identificou nos delegados de terras, no Estado da Bahia, “o instrumento das invasões desse gênero”, já que ganhavam pelas medições que faziam. Finalmente, ele julgava que as dificuldades que ainda tolhiam a ação do SPI estariam aplainadas se fosse acolhida a proposta que ele encaminhara ao Interventor Juracy Magalhães de partilha, entre o Estado e a União federal, das florestas desbravadas e valorizadas pelo SPI; se os promotores de justiça nas comarcas de Itabuna e Canavieiras dessem prosseguimento aos processos de intimação e despejo dos invasores ricos que ali se haviam encastelado, “simulando antigas posses”; e se houvesse imposição de respeito pela União Federal no caso imprescindível do Posto Gongogi, “invadido pela ousadia do grilo [propriedade territorial estabelecida sob títulos falsos] ou do caxixe [negociata envolvendo terras de plantação de cacau]” (Jacobina RIGHB 1934: 265).
Na mesma década de 1930, a Reserva Caramuru-Paraguaçu foi alvo de grande repressão policial decorrente da resistência do então encarregado do PI, Telésforo Fontes, à tentativa, por parte de engenheiros e posseiros invasores, de procederam a medições na região do rio Pardo, a fim de requerem títulos de propriedade ao Estado. Os alvos preferenciais da repressão foram os pequenos arrendatários, por terem se recusado a abandonar suas terras para os fazendeiros e pouco mais de três dezenas de índios, encontrados em precária situação de saúde, acometidos, inclusive, de leishmaniose (cf.depoimento reservado do Cel. Antonio Medeiros Azevedo à Maria Hilda Paraíso 1976: 35). Os arrendatários que haviam permanecido na área da reserva foram os beneficiários, já que a sua situação foi formalizada mediante contratos-padrão do SPI, assim como os novos posseiros requerentes de terras (Paraíso ib.:36).
A situação se manteve, aparentemente, sem alterações, com os arrendatários usufruindo, desde 1938, uma terra fértil em troca de uma taxa simbólica de 0,10 (dez centavos) por ha, até a década de 1960, quando o tema é suscitado internamente à Fundação Nacional do Índio, órgão que substituiu o SPI. Relatório de uma visita de inspeção do Cel. Hermogêneo Encarnação, em julho de 1968, refere aos “36.000 ha de terra fertilíssima, toda ocupada por arrendatários que pagam à FNI uma taxa simbólica de apenas dez centavos (0,10)” (Brasileiro 1968). À época havia 800 arrendatários em área já medida e demarcada, carecendo apenas do termo de doação por parte do Governo Estadual. Em 1969, a Funai cogitou a possibilidade de celebrar novos contratos pelo preço real da região, i.e., NCR$50,00 por ha, e, nesse sentido, José Maria Gama Malcher, presidente em exercício, encaminhou parecer do secretário-executivo à apreciação do Chefe da Ajudância Minas-Bahia, Manuel dos Santos Pinheiro, que, por sua vez, o submeteu ao encarregado do PI, José Brasileiro. Este informou não haver dificuldades para a formação de novos contratos, tendo em vista, inclusive, o fato de os arrendatários haverem constituído “valiosos patrimônios em benfeitorias”, porém não de acordo ao novo valor aventado, taxa que, segundo ele, era aplicada na região ao aluguel de pastagens, mas a uma taxa de 5% , ao ano, sobre o valor da terra arrendada, o que daria à Funai uma “renda substancial” e não geraria descontentamentos aos arrendatários (Silva 1969).
A posição de Brasileiro, tão sensível aos interesses dos arrendatários, bem como a dos seus superiores hierárquicos, ao delegarem a um subalterno, claramente comprometido com os interesses anti-indígenas, matéria tão relevante, constituem evidências da incúria governamental no caso sob exame, cujas conseqüências negativas ainda hoje repercutem sobre os índios, limitados como estão, transcorridos já mais de duas décadas de uma luta judicial pela anulação dos títulos de propriedade outorgados pelo Estado da Bahia, nas décadas de 1970 e 80, a não-índios ali estabelecidos desde 1938, ao usufruto de apenas 12.000 ha de áreas descontínuas do seu território.
Cosmologia e ritual
Douville registrou a couvade entre os Mongoió e Pataxó, afirmando que, após haver parido na floresta, a mulher retornava à aldeia e o marido se deitava, imediatamente, seguindo-se um regime rigoroso para o segundo, no decorrer do qual ele não comia carne de veado, anta, porco e macaco, sendo-lhe permitido, em troca, a carne de pássaros. Podia comer, igualmente, inhames, mas a banana e o milho lhes eram interditos. Era a mulher parida que servia ao marido e se ocupava de todas as atividades, uma vez que ele não podia mover-se, permanecendo estendido no leito e “morrendo literalmente de fome”. Eles supunham que a criança e a mulher morreriam se o homem não observasse esse regime (Douville apud Métraux 1930: 266).
Ambos os povos usavam cauim. Em ocasiões de boa caçada ou diversão, os Kamakã celebravam, com danças e cânticos, e, em grande número, começavam cortando transversalmente o tronco de uma barriguda (Bombax) e a esvaziá-la, deixando apenas o fundo, com o que obtinham um recipiente com 2 a 3 pés e meio de altura, que colocavam em lugar plano, entre as suas cabanas ou em suas proximidades. Enquanto os homens trabalhavam nisso, as mulheres preparavam o cauim com mandioca ou milho. Doze ou dezesseis horas antes mastigavam os grãos de milho, cuspidos no vaso, acrescentando depois água quente e despejando a mistura no vaso de casca de árvore, onde tinha lugar a fermentação (Wied-Neuwied 1958: 435). Enquanto isso, os dançarinos se paramentavam para a festa: os homens pintados com longas listas negras, e as mulheres, com círculos formados de meias-luas concêntricas e linhas no rosto. Alguns ornavam a cabeça com seus barretes de penas e enfiavam penas pintadas nas orelhas. Um portava o herenehediocá, instrumento feito de uma porção de cascos de anta amarrados em dois maços, por meio de cordões, que servia para marcar o compasso, e outro o kechiech, um maracá, ou seja, uma cabaça oca com cabo de madeira que continha pedrinhas (Wied-Neuwied ib.: 435; Douvillle apud Métraux 1930: 259-60). Douville refere, ainda, a um arco distendido com uma corda muito fina, que eles faziam vibrar por meio de uma vareta (ib.:260).
A “dança” descrita por Wied-Neuwied evoca muito o ritual, contemporaneamente presente em muitos povos indígenas das porções nordeste e leste do Brasil, denominado Toré: quatro homens um pouco inclinados para diante avançam e dispõem-se em círculo, uns por detrás dos outros, cantando hoi!hoi!hê! hê! he!, enquanto um acompanha a toada com o som de um instrumento, ora mais forte, ora mais suave. As mulheres, nesse momento, se introduzem na dança, duas a duas, com a mão esquerda nas costas umas das outras. Em seguida, homens e mulheres, alternadamente, rodopiam, ao som da “encantadora música”, em torno do recipiente que contém o cauim. Dançam a noite inteira até que o recipiente esvazie (Wied-Neuwied 1958:436).
Nas ocasiões solenes, quando a noite havia sido passada a dançar, realizava-se a corrida de tora: os índios jovens, para ostentarem sua força, corriam à mata, cortavam um grande pedaço cilíndrico de um tronco de barriguda, muito pesado enquanto cheio de seiva, e enfiavam-lhe um pau, para carregá-lo mais facilmente. O mais forte do grupo tomava deste pedaço de tronco, carregava-o sobre os ombros e corria para a aldeia, perseguidos pelos demais, que buscavam arrebatar-lhe o fardo (ib.). Douville afirma que a denominação kamakã para a corrida era “cortar o bolo” e que após a sua finalização os homens se lavavam e tomavam o cauim feito pelas mulheres (Douville apud Métraux 1930: 275), ao passo que Casal observa que os Kamakã faziam uso também, como bebidas embriagantes ou espirituosas, da diluição, em certa proporção d´água, da cera de abelhas, deixadas fermentar após coadas (1976:228).
As doenças, entre os Kamakã, em geral eram combatidas mediante práticas xamanísticas, com fumaça do tabaco. Durante dias inteiros, os mortos eram pranteados: homens e mulheres, inclinados sobre o cadáver, soltavam “gritos horríveis”, com pequenos intervalos de descanso, enquanto o morto ficava às vezes estendido no chão durante muito tempo, até o enterramento (Wied-Neuwied ib.:437). Já de acordo com Douville o morto era muito bem paramentado: várias fileiras de colares eram distribuídas por várias partes do corpo, assim como um cocar de plumas. O corpo inteiro era pintado de vermelho e negro, através de linhas que se cruzavam sem muita arte, após o que o cadáver era transportado para o local da sepultura e depositado na fossa já referida. Sobre o túmulo plantavam-se alguns arbustos e, nas adjacências, algodoeiros e bananeiras, se o local não fosse bem sombreado. Não se comia jamais dessas bananas e não se fazia, tampouco, uso desse algodão (Douville apud Métraux 1930: 272).
O missionário Fr. Ludovico de Leorne, que viveu entre eles, refere-se à sepultura como uma cova bem forrada de estacas de paus e de folhas, na qual depositavam o cadáver envolto em cortiça de árvore, que servia de caixão, e que após forrada pela parte superior era cheia de terra, sob “lastimosos gritos” (MS 1). Spix e Martius, por sua vez, registraram pedaços de carne fresca dispostos sobre o monte de folhas de palmeira que recobria o túmulo: assim que essa era comida por algum animal ou desaparecia por outra razão, eles acreditavam que o morto se satisfizera e evitavam, por muito tempo, comer a carne do animal que havia sido oferecido (1976:168).O morto era pranteado ao longo do dia, e, após o enterramento, pela manhã, ao meio-dia e à tarde, quando o sol se punha, ao longo de uma lua (Douville apud Métraux ib:272).
Antigamente, os Kamakã observavam o costume de cremar os mortos xamãs, a fim de que eles não retornassem sob a forma de um jaguar, para os destruir uns após os outros, contentando-se, porém, à época de Douville, em fazerem fogo sobre o túmulo após tê-los enterrado. Métraux observa que é, provavelmente, a esse caso particular que se refere Douville quando afirma que “eles transportam os doentes para muito longe, na floresta, onde são deixados até que estejam mortos, quando, então, são cremados e depositadas suas cinzas em grandes urnas” (ib.:272).
O missionário Ludovico Leorne registrou que o ente supremo Kamakã é Queggiahorá e que eles acreditavam na imortalidade da alma e imaginavam que, sendo ela separada do corpo, não se afastaria enquanto não estivesse totalmente putrefato. Julgariam, ademais, que, livres do corpo, as almas percorriam as matas, assistiam às suas conversas e danças e testemunhavam as suas ações, voavam pela atmosfera ou pelo espaço existente entre o sol e a lua, que consideravam como a morada exclusiva das almas dos seus defuntos e o lugar do seu descanso. As almas dos mortos seriam consideradas também divindades, se lhes dirigindo preces e atribuindo-lhes as tempestades. Aquelas que não tivessem sido bem tratadas durante a vida, voltavam, sob a forma de uma onça, para fazer mal aos vivos; daí a razão de disporem, junto do cadáver, numa cuia ou panela, um pouco de cauim, bem como arcos e flechas, objetos que eram acomodados por baixo do morto, enchendo-se em seguida a cova e acendendo-se uma fogueira em cima” (Wied-Neuwied.:437).
Todos os anos, no primeiro dia de bom tempo após a estação das chuvas, os homens kamakã iam às plantações, preparavam cauim e deixavam fermentar, lapso durante o qual plantavam. Ao final, bebiam profusamente, acreditando que seus parentes mortos retornavam para lhes ajudar a plantar e beber (Douville apud Métraux 1930: 274).
O Sol e a Lua
O Sol é um gênio mal que se nutre dos homens: foi ele que introduziu a morte no mundo. Ao descer à terra, a cada dia, ele se sacia, no decorrer da noite, daqueles que foram enterrados durante o dia. Por isso, quando eram feitas grandes plantações, os Kamakã só queimavam um pequeno aceiro na floresta, a cada vez. A fumaça incomodava ao Sol e ele se tornava vermelho de cólera quando se fazia fogo. Assim, queimando-se pouco a pouco, faz-se menos fumaça e se o irrita menos (Douville apud Métraux 1930: 270 – 271).
A Lua, ao contrário, é considerada uma divindade benfazeja. É ela que indica aos Kamakã o melhor período para plantar, na lua nova, quando ela surge, a oeste, assim que sol se põe. É a Lua também que lhes informa sobre o início dos tempos chuvosos e tempestades e os guia no decorrer da celebração das festas: a cada cinco anos, eles permanecem ao longo de um ano em festas, quando os casamentos são celebrados (Douville apud Métraux 1930: 271).
Nimuendaju recolheu, junto à kamakã Jacinta Grayirá, na reserva Caramuru-Paraguaçu, relato de “histórias bonitas” e “histórias feias”. As primeiras, que ela insistia em contar ao etnólogo, tratavam de brancos ricos, que usavam botas e correntes de ouro e moravam em casas grandes caiadas de branco, cujas esposas se faziam acompanhar de negras que carregavam as crianças. Já as “feias”, que ela resistia a relatar, para desespero de Nimuendaju, tratavam de lobisomens, do Sol e da Lua, almas de defuntos, de cataclismas e de animais que falavam e agiam como gente, ou seja, eram expressões da mitologia kamakã. Não obstante todas as dificuldades interpostas à comunicação entre os dois, ao final ele recolheu um conjunto formado por 24 relatos (Nimuendaju 1938). Destes, estão publicados: os mitos do Sol e Lua; os preás e os caratingas; a enchente; o enfeite do pica-pau; o roubo das flechas; a lua na caverna; eclipses e incêndio mundial; a moça-estrela; o trovão; kecaxkwenyói; a origem das mulheres; o homem que queria morrer; Wadyé; a mulher que ressuscitou como onça; a festa das almas de defuntos; o sagüi; o pica-pau e as kanondarátsi; o herói Korõ; o jaguar na festa dos índios; a mulher e o casal de jaguares; a onça teimosa; o homem entre as antas; a batalha das aves; os irmãos encantados; o viajante (Viveiros de Castro 1984:98- 106).
Os Pataxó, por sua vez, temem o trovão, considerado como um espírito maligno que retorna para levar qualquer um. Eles teriam grande preocupação de fazer os parentes prometerem chamá-los após a morte, o que significava que, chamados, os homens retornavam, ao contrário das mulheres, que não mais voltavam (Douville ib.:287).
Um velho de 83 anos oriundo da Aldeia de Trancoso, Apolinário, transmitiu a Nimuendaju, também em 1938, na Aldeia de Santa Rosa, alguns mitos sobre temas variados, como o da cabeça sem corpo, perna de lança, gêmeos, fim do mundo e a cerimônia da jurema. Ele e outro índio velho que Nimuendaju mandou buscar em São Bento, às suas expensas, ainda se lembraram do culto da jurema, que, conforme Nimuendaju, os Kamuru da Pedra Branca introduziram na aldeia de Santa Rosa, um deles tendo descrito as visões que havia tido (Viveiros de Castro 1984: 71-73). Apolinário revelou que nos anos de sua mocidade, ele havia tomado parte na cerimônia da jurema celebrada pelos Kamuru-Kariri (ib.:73). Devido à sua especial relevância, transcrevemos, a seguir, esse último mito:
“Iam-se buscar, a leste do sítio da cerimônia, pedaços de galhos de jurema dos quais se tirava a casca, de cima para baixo, com um bastão de pau. A massa lenhosa era posta em infusão com água e depois espremida numa cuia especial (com um prolongamento que servia de cabo). A cerimônia era executada durante a noite para os neobrasileiros não saberem dela. Um certo número de moças sentava-se ao redor da cuia. Elas fumavam de um grosso cachimbo de barro e sopravam a fumaça sobre a bebida, onde ela formava uma camada espessa. Um velho, com um maracá enfeitado com um mosaico de penas grudadas, dançava, com o torso curvado, ao redor do grupo, cantando: Endarindandá nafé nafé nafé! e as moças respondiam: Darindarindandá! Em seguida, o velho dava às moças e aos homens, que formavam uma fileira ao lado, um pouco da bebida de jurema numa pequena tigela de barro.
A jurema mostra o mundo inteiro a quem a bebe: vê-se o céu aberto, cujo fundo é inteiramente vermelho; vê-se a morada luminosa de Deus; vê-se o campo de flores onde habitam as almas dos índios mortos, separadas das almas dos outros. Ao fundo vê-se uma serra azul. Vêem-se as aves do campo de flores: beija-flores, sofrês e sabiás. À sua entrada estão os rochedos que se entrechocam, esmagando as almas dos maus quando estas querem passar entre eles. Vê-se como o sol passa por debaixo da terra. Vê-se também a ave do trovão, que é desta altura (um metro). Seus olhos são como os da arara, suas pernas são vermelhas e no alto da sua cabeça ela traz um enorme penacho. Abrindo e fechando este penacho, ela produz o raio e, quando corre para lá e para cá, o trovão” (Viveiros de Castro 1984: 73).
O Toré e a religiosidade hoje
É importante observar que não obstante afetadas pelo violento contato histórico experimentado pelas várias etnias estabelecidas na reserva Caramuru-Paraguaçu, as concepções cosmológicas, a mitologia e os rituais continuam vivos, e passíveis de serem acionados sob certas circunstâncias, notadamente pelos mais velhos. De todo modo, no âmbito público, é o Toré, hoje, que constitui a sua mais relevante expressão ritual. Trata-se de um ritual de possessão, mediante o qual os encantos – ou encantados, mestres encantados, entidades sobrenaturais consideradas benéficas – se manifestam, e que, em geral, é realizado para introduzir qualquer atividade considerada socialmente significativa. Dele participam homens e mulheres, que fazem uso do fumo, mediante cachimbos, mas não da jurema (Mimosa nigra, Hub.; Acacia hostilis, Mart.) – pequena árvore típica do sertão nordestino, de cuja entrecasca os povos indígenas do contexto etnográfico do Nordeste preparam um vinho, com propriedades levemente alucinógenas –, apenas evocada pelos cânticos entoados.
Há três igrejas instaladas na reserva: católica, testemunha de Jeová e wesleyana. Essa última atua como uma igreja pentecostal convencional, salvo pelo esforço de adaptação à cultura local, através da utilização de símbolos indígenas, como maracás e roupas.
Atividades produtivas
A maior parte da área – coberta de capoeiras, parte das quais servem de pasto e parte para a instalação de roças – apresenta limitação à mecanização e se ressente da falta d´água, nos períodos de estiagem, caracterizando-se pela maior aptidão para as atividades pastoril e agrícola. A antropização acarretou o surgimento de muitas árvores frutíferas (mangueiras, jaqueiras, goiabeiras, acerolas, coqueiros, cajazeiras, bananeiras) que estão dispersas por toda a área e asseguram uma importante fonte de suplemento alimentar.
A agricultura de subsistência, parte da qual é destinada à venda nas feiras livres dos municípios de Pau-Brasil e Camacã, constitui, contemporaneamente, a sua principal atividade produtiva, seguida da criação de gado e da lavoura comercial do cacau. De modo geral, as roças de maior porte são compartilhadas por produtores de uma mesma família extensa. O gado, criado em pastos comunitários, é, para alguns grupos domésticos, a mais relevante fonte econômica sob as formas de produção de leite, comercializado nos laticínios da região, e de adubo, o único insumo empregado, ao passo que o cultivo do cacau é muito recente, decorrendo das retomadas das fazendas e suas benfeitorias, estabelecidas no território indígena. As áreas produtoras de cacau se revestem de grande valor econômico, daí serem as mais cobiçadas, e, eventualmente, alvo de acirradas disputas territoriais.
A pesca é realizada em águas represadas e complementa a agricultura de cereais e legumes. A caça é também uma atividade muito incipiente, praticada mediante o uso de espingardas e auxílio de cães. Os animais mais usualmente abatidos são o sarigüê, paca, tatu, caititu, jabuti, preguiça, rolinha, guriatã e bem-te-vi (Wanderley 2003: 35).
Já o artesanato é produzido muito irregularmente, em geral para venda nas áreas imediatamente próximas, ou, mais raramente, durante eventos passíveis de atrair pessoas externas para dentro da reserva. Alguns poucos artesãos pataxó hã-hã-hãe, pataxó de Barra Velha e baenã são identificados como tendo no artesanato uma fonte de renda relevante (Wanderley 2003: 33). As sementes empregadas na confecção dos colares e pulseiras são parcialmente coletadas e cultivadas, tais como beiru ou pariri, juerana, mata-pasto, tento e semente de pau-brasil. A madeira utilizada como matéria-prima são pau-brasil, jatobá, tapicuru, aroeira e jenipapo. Em ocasiões de retomadas territoriais, celebração de casamentos e outros eventos festivos, assim como em exposições públicas, tem lugar o uso de pintura corporal, adereços, armas e vestimentas indígenas. Bordunas mais ou menos elaboradas, cocares de penas, saias e corpetes femininos confeccionados de envira, bem como maracás, colares, pulseiras e outros objetos são, então, invariavelmente usados como símbolos de afirmação étnica.
Organização social
A composição genealógica dos diversos sub-grupos indígenas, etnicamente definidos, que compõem o conjunto englobado pelo etnônimo “Pataxó Hãhãhãe”, são uma via de acesso à compreensão das redes de parentesco que permitem articular, na Reserva, os vários subgrupos etnicamente definidos e que logram construir uma englobante totalidade social e étnica, hoje recoberta pelo etnônimo Pataxó-Hãhãhãe – que se situa no nível mais elevado desse sistema hierarquizado e composto por subsistemas igualmente definidos em termos étnicos.
Não tendo sido possível levantar, por motivos de ordem prática, a genealogia de todos os segmentos étnicos familialmente organizados, que constituem as unidades mínimas, a atenção incidiu sobre os dois segmentos que, conforme preconiza a tradição oral, desde tempos imemoriais habitam territórios na Reserva – os quais, aliás, já existiam antes mesmo da criação desta última: os Baenã e Hãhãhãe. E, com isso, por enfocar especialmente as conexões de parentesco que, por consangüinidade e por afinidade derivada de alianças matrimoniais interétnicas, permitem superar as “fronteiras” étnicas entre esses dois povos, conectando-os a uma rede de parentelas que os transforma, de grupos discretos e distintos, em sistema que, nesse nível, é totalizante e multiétnico – e que é o sistema nuclear, na Reserva, do que veio a ser o povo Pataxó-Hãhãhãe, tal como se organiza contemporaneamente. Isto, sem esquecer os outros subgrupos ali existentes, que também entram nessas alianças, mas não têm a crucial posição estratégica detida pelos dois segmentos sobre os quais a atenção se concentrou.
A genealogia aqui apresentada teve como base uma outra, anterior, elaborada por Lopes da Silva e Násser em 1984. Na verdade, esses dados e os de Souza (2002) constituem-se como complementares, na medida em que atualizam até 2000 a genealogia antes levantada, e corroboram os dados dos dois primeiros antropólogos. Essa primeira genealogia (Nasser e Lopes da Silva 1984) é parte do Laudo Antropológico por ambos elaborado, como instrumento técnico para o estudo da organização social daquele grupo, e “como recurso capaz de atestar a existência de laços de consangüinidade e afinidade entre os membros de um grupo étnico atual, e destes com seus antecedentes” (ib.).
É assim possível afirmar que, no lapso de 16 anos já decorridos desde a elaboração da genealogia por Lopes da Silva e Nasser, até sua complementação-atualização em 2000, nasceu uma nova geração, que segue e aceita as mesmas “regras implícitas de comportamento próprias a cada grupo étnico, e relativas ao padrão de residência, às regras de descendência, à composição do grupo doméstico, às regras matrimoniais” (ib.), e a outros muitos aspectos de sua cultura.
Por meio de um sumário exame dos diagramas, torna-se clara a intensidade dos laços de consangüinidade entre seus membros, em todas as gerações registradas. E mais: na nova geração há a ocorrência de um conjunto significativo de casamentos entre diferentes etnias indígenas e destas com não-índios.
Foi possível, ademais, verificar uma aliança matrimonial recente (na geração imediatamente posterior à última do levantamento Nássser/Silva), que ocorreu entre os Baenã e os Hãhãhãe. Souza (2002) registrou uma outra união inter-étnica, desta vez entre um Baenã e uma Kariri-Sapuyá. Em ambos os casos ocorreu o deslocamento do homem para o ponto de origem da mulher. Foi também registrado um outro caso de aliança matrimonial entre um Baenã e uma Kariri-Sapuyá, mas neste caso a Kariri-Sapuyá deslocou-se para a área da Reserva onde se concentra a família do marido, que é predominantemente masculina.
No que concerne às alianças matrimoniais entre os Hãhãhãe e as demais etnias encontradas na Reserva, constata-se também a existência de apenas uma união entre um Hãhãhãe e uma Kariri-Sapuyá. Na etnia Hãhãhãe, e especificamente em sua nova geração, percebe-se um número significativo de casamentos com não-índios, talvez pelo fato de ser a área ocupada por essa etnia (aldeia Bahetá) muitíssimo próxima – cerca de 2 km – da cidade de Itajú do Colônia. Alguns índios têm, além de sua casa dentro da Reserva, casinhas em um bairro da cidade (Parquinho), que podem ocupar alternativa e episodicamente.
[A distribuição étnica nas áreas ocupadas da Reserva estão no item Contexto Contemporâneo]
Fontes de informação
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JACOBINA, Alberto. Encaminha, da Bahia, ao Diretor do SPI, atendendo ordens, relatório referente aos trabalhos desta sub-secção durante o ano de 1931, “em que esteve o nosso Serviço na Bahia sem um funcionário que o dirigisse”. Ministério do Trabalho, Indústria e Commercio, Serviço de Proteção aos Índios. Bahia; Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1932. Relatório dos trabalhos de 1931.
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