quinta-feira, 18 de junho de 2020

Wari

Toy Art Wari
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Nomes
Outros nomes ou grafias
Família linguística
Informações demográficas
218
Warí
Uari, Wari, Pakaá Nova
Txapakura
UF / País
População
Fonte/Ano
RO
2721
Funasa 2006


Os Wari' são muitas vezes designados como Pakaa Nova, por terem sido avistados pela primeira vez no rio homônimo, afluente da margem direita do Mamoré, no estado de Rondônia. Mas é como Wari', palavra que em sua língua significa "gente", "nós", que gostam de ser chamados, e é dessa forma que são conhecidos pelos não-indígenas que mantêm com eles um convívio mais estreito. Vivem hoje aldeados em torno de sete Postos da Funai administrados pela Ajudância de Guajará-Mirim, Rondônia, e na Terra Indígena Sagarana, na confluência dos rios Mamoré e Guaporé, administrada pela Diocese de Guajará-Mirim.

 Os povos Txapakura

Os Wari' constituem um dos poucos remanescentes da família lingüística Txapakura, dado que a maior parte dos falantes de línguas dessa família encontrava-se extinta já no início do século XX.
Waris tocando o tambor Rowin em ritual
Atualmente, existem somente quatro grupos Txapakura: os Wari', os Torá, os Moré ou Itenes, que vivem na margem esquerda do rio Guaporé, um pouco acima da confluência com o Mamoré, em território boliviano, e os OroWin. Os últimos, encontrados em 1963 na região das cabeceiras do rio Pacaas Novos, foram exterminados por dois ataques dos brancos, restando não mais do que doze indivíduos adultos e algumas crianças, aldeados hoje no Posto Indígena São Luis, no alto rio Pacaas Novos. Existem ainda alguns indivíduos dispersos entre a aldeia de Sagarana, o PI Sotério e a cidade de Guajará-Mirim, que se dizem Cujubim, e que de sua língua falam apenas alguns vocábulos, o bastante, entretanto, para sabermos que se trata de língua dessa família.

As notícias que se tem dos povos de língua Txapakura são poucas e vagas: viajantes registram a sua presença e contam sobre as relações que mantinham com os brancos, enumerando vez por outra aspectos da cultura material. Somente os grupos conhecidos como Huanyam, os "Chapakura", e os Moré foram visitados por etnógrafos.

Segundo o etnólogo Curt Nimuendajú, o centro geográfico dos povos Txapakura parece ter sido ambas as margens do rio Guaporé, em seu médio e baixo curso, apesar de alguns grupos, como os Torá e os já extintos Urupá, estarem associados ao rio Madeira e seus afluentes desde os séculos XVIII e XIX. Muitos dos povos Txpakura tiveram contato com o “homem branco” já no século XVII; viveram em missões espanholas e portuguesas, aliaram-se aos brancos, fugiram e foram capturados ou foram exterminados por epidemias e ataques armados.

 Localização e população

Por volta do final do século XIX, os Wari' ocupavam a seguinte região, no sudoeste da Amazônia: a bacia do rio Lage, afluente da margem direita do Mamoré, as bacias do rio Ouro Preto, igarapé da Gruta, igarapé Santo André e rio Negro, afluentes do baixo e médio curso da margem direita do rio Pacaas Novos, além das cabeceiras dos rios Ribeirão e Formoso. Por volta dessa época houve uma migração de parte da população para os rios Dois Irmãos e Novo, afluentes da margem esquerda do Pacaas Novos.
Terra Indígena Wari

Com a invasão de seringueiros a partir das primeiras décadas do século XX, os Wari' foram se deslocando para as cabeceiras dos rios, locais de mais difícil acesso, até o momento em que foram "pacificados" por missionários e agentes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), entre o final da década de 1950 e início dos anos 1960. Reduzidos, devido às epidemias, a menos da metade da população original, os Wari' passaram, em poucos anos, a viver em torno dos postos do SPI.

No ano de 1998 viviam distribuídos por oito aldeamentos, então localizados em várias Terras Indígenas (para conhecer a situação fundiária atual dos Wari'  veja ao lado em "Terras habitadas").

De acordo com o censo realizado pela Funai no ano de 1998, os Wari' somavam cerca de 1.930 indivíduos. Um censo anterior, do mesmo órgão, em 1996, indicava 2.050 pessoas.

 Dos primeiros contatos à pacificação

Os Wari' foram mencionados pela primeira vez pelo Coronel Ricardo Franco em 1798, localizados nas margens do rio Pacaas Novos. No entanto, até o início do século XX mantiveram-se isolados, possivelmente porque viviam em áreas de acesso difícil ou de pouco interesse econômico. Tudo mudou com a descoberta do processo de vulcanização da borracha, em meados do século XIX, que provocou uma verdadeira corrida em busca da matéria prima nas florestas; o rio Madeira foi escolhido como uma via privilegiada de acesso. Foi dado início à construção da ferrovia Madeira-Mamoré para ligar a localidade de Santo Antônio do Madeira a Guajará-Mirim, tendo como objetivo o escoamento da produção de látex até o ponto de Manaus. Em 1919, ocorreu o primeiro atrito documentado entre os Wari' e os trabalhadores da ferrovia, que raptaram vários índios e os levaram para ser exibidos na cidade. Justamente no ano da inauguração da ferrovia, 1912, houve uma queda abrupta do interesse pelo látex brasileiro, suplantado economicamente pela produção malasiana. Muitos seringueiros foram obrigados a abandonar suas atividades, e os Wari', que tinham sido forçados a se deslocar para territórios de mais difícil acesso, nas cabeceiras dos rios, puderam reocupar algumas das antigas aldeias.

Nos anos 1940, com a ocupação da Malásia pelos japoneses, ocorreu o segundo boom da borracha, e muitos seringueiros começaram a subir o rio Pacaas Novos e seu afluente Ouro Preto, de tal modo que, por volta de 1950, o primeiro era o afluente do Mamoré mais densamente ocupado. Foi o auge dos conflitos entre os Wari' e os "brancos". Seringalistas organizavam expedições de extermínio em que atacavam aldeias ao amanhecer, algumas vezes portando metralhadoras, matando grande parte de seus habitantes. A vingança dos Wari' não tardava: seringueiros e trabalhadores da ferrovia eram encontrados mortos, com seus corpos crivados de flechas. A tensão do conflito obrigou o SPI a tomar providências, iniciando o processo de "pacificação" com a criação de "postos de atração" em diversas localidades.

O primeiro contato pacífico só foi estabelecido em 1956, com a participação dos missionários fundamentalistas da Missão Novas Tribos do Brasil. Na época do contato, os Wari' ocupavam aldeias situadas ao longo do rio Lage (afluente da margem direita do Mamoré) e seus afluentes, nas cabeceiras do rio Ribeirão, em afluentes da margem direita do rio Pacaas Novos (alto Ouro Preto, Mana to', igarapé Santo André, rio Negro e seu afluente Ocaia) e no rio Dois Irmãos, afluente da margem esquerda do mesmo rio. O processo de "pacificação" durou mais de dez anos (até 1969, quando foram trazidos os últimos “índios arredios”): os Wari' viviam espalhados em um vasto território e, mesmo depois de estabelecidos nos Postos, retornavam à floresta quando se sentiam ameaçados, especialmente pelas epidemias que, na época do contato, exterminaram certamente mais de dois terços da população.

 Os grupos locais e os subgrupos

Os Wari' não têm um nome que designe o grupo como um todo, isso que se costuma chamar de tribo ou de etnia. A palavra wari' designa o pronome da primeira pessoa do plural inclusivo, "nós", que significa também 'ser humano', 'gente'.

A unidade étnica mais ampla definida por eles é o que aqui chamaremos de subgrupo. Não há um nome genérico para subgrupo, mas somente para 'pessoa de outro subgrupo', tatirim, que traduzimos como 'estrangeiro'.

Cada subgrupo tem um nome. São hoje os OroNao, os OroEo, os OroAt, os OroMon, os OroWaram e os OroWaramXijein (oro é uma partícula coletivizadora, que pode ser traduzida como 'povo', 'grupo'). Alguns indivíduos identificam-se com dois outros subgrupos que não mais existem: os OroJowin e os OroKaoOroWaji.

Cada subgrupo relacionava-se até o momento da "pacificação" - e de certo modo ainda hoje - a um território específico, constituído por um conjunto de áreas nominadas, habitadas por grupos locais. Os grupos locais tinham como núcleo um conjunto de irmãos de sexo masculino, casados, muitas vezes, com um grupo de irmãs. A poliginia, especialmente a sororal (isto é, o casamento simultâneo com uma ou mais irmãs da esposa), era freqüente. Após o casamento, costumava-se alternar a moradia, ora com os pais da mulher, ora com os pais do homem. Não se pode falar, portanto, em regra de residência. Um grupo permanecia em um mesmo local entre um e cinco anos, e depois desse período sua composição e local de aldeamento variavam. Os aldeamentos localizavam-se sempre na terra firme amazônica, às margens de pequenos rios perenes. Consistiam em um grupo de residências ocupadas por famílias nucleares e uma casa dos homens, dormitório dos rapazes solteiros e lugar de reunião de homens adultos.

Nas proximidades havia sempre uma roça de milho, base da subsistência wari'. Na verdade, era o solo propício para o plantio de milho - terra preta - que determinava a escolha do local de aldeamento.

A associação do subgrupo ao território é algo insistentemente marcado pelos Wari', e o antônimo de "estrangeiro", tatirim, membro de outro subgrupo, é "conterrâneo", win ma. Mas as fronteiras desses territórios podiam ser franqueadas, de tal modo que, se uma determinada área normalmente associada a um subgrupo passasse a ser ocupada por um conjunto de pessoas cujo núcleo fossem os homens de outro subgrupo, essa área passava a ser reconhecida como território deste último.

Não há uma regra unívoca que defina o pertencimento ao subgrupo. Ora se diz que os filhos pertencem ao subgrupo do pai, ora ao da mãe, ou então àquele associado ao território em que nasceram. O que acontece é que a identidade de uma pessoa vai sendo constituída durante a vida, por meio da convivência com seus conterrâneos, especialmente através da comensalidade. Isso não quer dizer, como pode parecer, que os Wari' assumam que a filiação ao subgrupo pode variar durante a vida. O que acontece é uma espécie de identidade múltipla, onde diferentes pessoas classificam de modo distinto determinado indivíduo.

Sua distribuição atual ilustra bem o tipo de relação que os Wari' estabelecem entre o espaço físico e o subgrupo enquanto unidade. Os subgrupos do tempo da pacificação continuam a existir. Os Wari' se dizem OroEo, OroAt, OroNao, OroWaram, OroMon e OroWaramXijein. A maioria dos OroEo, OroAt e parte dos OroNao vive no posto Negro-Ocaia, que se situa na fronteira do território outrora ocupado pelos OroNao e próximo à terra dos OroEo e dos OroAt. Outra parte dos OroNao vive na margem esquerda do rio Pacaas Novos, para onde se deslocaram no final do século passado, ocupando os postos Santo André e Tanajura. Os OroWaram vivem em sua maioria no posto Lage, perto do território em que viviam os OroWaramXijein. Os OroMon vivem, em sua maioria, no posto Ribeirão, região que os Wari' ocupavam esporadicamente, quando caçavam, mas onde não faziam roças. Os OroWaramXijein vivem parte com os OroWaram, no Lage, e parte com os OroMon, no Ribeirão. Quando alguém de fora, um estrangeiro, refere-se ao posto Lage, por exemplo, diz que é a terra dos OroWaram. "Vou dançar nos OroWaram", dizem os Wari' que se dirigem ao posto Lage para uma festa.

Os diferentes subgrupos relacionam-se ritualmente por meio de três tipos de festas: tamara, hüroroin e hwitop. Em linhas gerais, anfitriões de um subgrupo preparam chicha (bebida de milho), fermentada (hüroroin e hwitop) ou não (tamara), para oferecerem a convidados de outro subgrupo. A relação entre convidados e anfitriões é de hostilidade ritualizada, onde os últimos procuram embriagar e humilhar os primeiros, que estariam recebendo uma espécie de castigo por terem atuado inicialmente como predadores dos anfitriões: disfarçados de animais ou atacando eles próprios os animais dos anfitriões, e gracejando com as suas mulheres. Quando um convidado tomba inconsciente por excesso de bebida, o anfitrião diante dele exclama: "eu o matei". Essas festas realizam-se hoje entre habitantes de distintos postos que, como vimos, são associados aos diferentes subgrupos.

A sociedade wari' é marcadamente igualitária, sem chefes, grupos de idade, grupos rituais ou especialistas de qualquer tipo.

 A guerra

O inimigo é pensado como um Wari' que se distanciou espacialmente e com quem as trocas foram interrompidas. Os Wari' equacionam os inimigos às presas animais. No passado, quando os Wari' praticavam a guerra, os inimigos eram flechados e mortos e, quando possível, partes deles eram levadas às aldeias dos matadores (todos aqueles que participaram da expedição) para serem comidas por suas mulheres e por aqueles que haviam permanecido em casa. Os matadores, ao retornar, entravam em um período de reclusão, onde permaneciam deitados a maior parte do tempo na casa-dos-homens, evitando muitos movimentos e especialmente ferimentos, de modo a manter em seus corpos o sangue do inimigo morto.

Esse sangue, associado à chicha não-fermentada, que constituía praticamente o único alimento dos matadores, fazia-os engordar, tornando-os homens fortes e viris. Nesse período era proibido também o ato sexual, que provocaria a perda do sangue do inimigo tornado sêmen, que então iria engordar não a eles, mas a suas mulheres e amantes.

Por conter em si o sangue do inimigo morto, o matador estava interditado de comer da sua presa, o que consistiria em ato de auto-canibalismo e provocaria a morte. Todos os demais, com exceção das crianças, podiam comer da carne do inimigo, que era assada e ingerida em grandes pedaços, marcando a diferença entre esse repasto e o canibalismo funerário, e associando-o à ingestão de presas animais.

Após a reclusão, que terminava quando as mulheres se diziam cansadas de preparar continuamente grandes quantidades de chicha, e quando os homens se sentiam gordos o suficiente, o espírito do inimigo morto permanecia associado ao matador, como um filho: acompanhava-o por toda parte e comia da sua comida.

Tradicionalmente os Wari' faziam guerra com povos vizinhos, em sua maioria Txapakura e Tupi. Os inimigos mais citados por eles são os tupi Karipuna e os Uru-Eu-Wau-Wau. Com a invasão de suas terras por seringueiros no início do século XX, perderam contato com esses inimigos e a guerra passou a ser direcionada contra os brancos, também classificados como inimigos, wijam. Essa guerra durou até a "pacificação", e constituiu um de seus motores centrais: diante dos corpos mutilados de vizinhos e parentes, que os Wari' matavam muitas vezes em represália aos ataques armados que massacravam suas aldeias de madrugada, os agentes governamentais e poderosos locais apressaram-se a atrair os Wari', não só para acabar com as mortes, mas principalmente para abrir caminho à expansão das atividades econômicas locais, especialmente a extração da borracha.

 O canibalismo funerário

Os Wari' comiam não só os inimigos que matavam, mas também os mortos do grupo. O rito tinha início já na doença grave, quando o moribundo era chorado por parentes consangüíneos e afins. Desde aí, iniciava-se um canto fúnebre, em que todos se referiam ao doente/morto por termos de consangüinidade, e relembravam fatos vividos com ele. Diante da morte, o choro se intensificava. Os parentes próximos, chamados de "parentes verdadeiros" passavam então a diferenciar-se dos "parentes distantes", categoria que aí inclui especialmente aqueles efetivamente relacionados pelo casamento. Os primeiros organizavam o funeral, e os últimos o executavam.

Antes que o cadáver pudesse ser preparado, devia-se aguardar a chegada dos parentes próximos que viviam em outras aldeias, e que recebiam o aviso da morte por meio desses mesmos afins. Nesse período, de cerca de dois a três dias, o cadáver apodrecia, e é nesse estado que era cortado e moqueado pelos afins. Pronta a carne, os parentes próximos a desfiavam e depositavam-na sobre uma esteira, ao lado de pequenos pedaços de pamonha de milho assada. Solicitavam então aos parentes distantes que a comessem. Não se devia pegar a carne com as mãos, mas espetá-la em pauzinhos, levando-a delicadamente à boca. Os Wari' não gostavam que se comesse do morto com avidez, como se fosse carne de caça, e o apodrecimento, que aparentemente era conseqüência de um prolongamento inevitável do velório, já que os parentes que moravam longe faziam questão de ver o cadáver íntegro, era também um modo de tornar a ingestão da carne desagradável, às vezes quase impossível. Nesses casos, comia-se só um pouco, e o resto era queimado, juntamente com os cabelos, órgãos internos (com exceção do fígado e do coração, que eram comidos), e genitália.

Finda a carne, os parentes próximos decidiam se os ossos seriam queimados e enterrados com o moquém, ou se seriam macerados e ingeridos com mel. De um modo geral são os parentes distantes que ingerem os ossos, mas algumas pessoas afirmam que essa parte do repasto cabia aos netos, que também eram os comedores preferenciais dos miolos assados do morto.

Após o funeral, iniciava-se o período do "varrer", quando eram queimados todos os pertences do morto, desde a casa que construíra, o local onde havia sido assado, até sua roça de milho e os lugares na floresta onde costumava andar e se sentar. Um luto prolongado, de vários meses ou mesmo anos, terminava diferencialmente para os diversos parentes, que decidiam quando deveriam voltar a falar normalmente e a participar de festas. Realizavam então o rito de final de luto, quando uma grande quantidade de presas previamente moqueadas, resultantes de uma caçada coletiva, eram choradas como se fossem o morto. Essas presas eram depois comidas não só por não-parentes, mas também pelos consangüíneos próximos. Depois disso cantava-se e dançava-se e a vida voltava ao normal. O espírito do morto passava a viver plenamente no mundo subaquático dos mortos, como acontece ainda hoje. Quando quer vir à terra ver os seus, ou passear, torna-se queixada, sendo caçado e comido pelos Wari', e retornando ao mundo dos mortos.

Atualmente, os mortos não são mais comidos, mas enterrados, depois de chorados por dois ou três dias. O abandono do canibalismo ocorreu pouco tempo depois da "pacificação".

 Cosmologia
A dinâmica que estrutura as relações sociais wari' - o contraste entre a inimizade relacionada ao assassinato e devoração, e a sociabilidade, relacionada às trocas de comida, cônjuges e cooperação mútua - estende-se também às relações com outros seres. Muitas espécies animais, assim como alguns poucos vegetais e certos fenômenos naturais, são considerados humanos por serem dotados de espírito.

Grande parte da mitologia, dos rituais, e dos processos de cura, giram em torno da idéia de que, sendo estes seres humanos, os Wari' podem se comunicar e lidar com eles como lidam com outras categorias de gente.

Espíritos ancestrais e espíritos animais são as categorias de espírito mais significativas para os Wari'. Apesar de reconhecerem também a existência de outros tipos de seres dotados de espírito, como plantas, trovão e personagens míticos, as idéias sobre a sua humanidade tendem a ser vagas, em contraste com as imagens elaboradas dos ancestrais e espíritos animais.

Os espíritos dos mortos residem em uma sociedade paralela formada por aldeias situadas sob as águas de rios profundos, em áreas ocupadas pelos subgrupos wari' antes do contato. O líder desse mundo subaquático dos mortos é um gigante chamado Towira Towira. Ele é a causa última da morte dos Wari', pois recebe o espírito das pessoas gravemente doentes em uma festa de tipo hüroroin e, como anfitrião, oferece-lhes chicha de milho fermentada que, se aceita, causa a morte definitiva do corpo físico. Ao modo das relações de hostilidade ritualizadas entre anfitriões e convidados nas festas wari', esse encontro com Towira Towira é concebido como predação simbólica seguida de consumo e posterior ressurreição da presa, já que os mortos revivem sob a água. Os Wari', por sua vez, consomem os espíritos subaquáticos, pois quando os ancestrais emergem, o fazem na forma de queixadas. Como convidados em uma festa, os mortos-queixadas cantam e dançam para os Wari', permitindo que estes os matem como presas. Um morto-queixada aproxima-se freqüentemente de um caçador que é seu parente próximo, de modo que sua carne vai alimentar os seus próprios parentes. Desse modo, o oferecimento de comida e a ajuda mútua que constituem o cerne da vida familiar wari' continuam depois da morte, transformadas em uma relação na qual os vivos e os mortos, humanos e animais, alternam nas posições de anfitrião e convidado, predador e presa.

Temas de reciprocidade e predação também permeiam as idéias wari' sobre os animais com espírito humano, os jami karawa. Esta categoria inclui o veado, queixada, caititu, anta, macaco-prego, jaguar, peixes, abelhas e cobras, além de algumas outras espécies, dependendo do subgrupo do informante. Os jami karawa vivem em comunidades organizadas em subgrupos, ao modo das aldeias wari' antes do contato; vivem em casas, fazem roças e festas. Os Wari' vêem os jami karawa como animais, mas estes percebem a si mesmos como humanos, e os Wari' como animais ou inimigos. Os jami karawa provocam doenças ao atacar os Wari', flechando-os magicamente, ou entrando em seus corpos e devorando-os; o resultado é a animalização da vítima. No caso dos jaguares e cobras, a predação tem como alvo o corpo físico da vítima e não o seu espírito. Os Wari', por sua vez, matam jami karawa, pois estes animais constituem o tipo de caça mais apreciado por eles. Antes do contato, vários tipos de animais eram proibidos como alimento, mas as proibições alimentares hoje não são mais tão rígidas.

A prática do xamanismo diminuiu nos primeiros anos após o contato, mas a partir do início dos anos 1980 ocorreu um reavivamento. Na maioria das aldeias, muitas famílias continuam a depender dos xamãs para o tratamento de doenças causadas por espíritos animais, já que somente o xamã tem a visão especial que lhe permite diagnosticar a doença e enxergar os jami karawa na sua forma verdadeira, como humanos com quem é possível negociar. Praticamente todos os xamãs são homens, e idiomas de caça, guerra e afinidade permeiam o discurso wari' sobre xamanismo e espíritos animais. Um homem se torna xamã quando um jami karawa o mata e o faz reviver, processo tipicamente associado a uma doença grave ou trauma. Quando o espírito animal tira frutos e outras substâncias de seu próprio corpo e os implanta no corpo de um Wari', provê essa pessoa de poderes xamânicos e de uma dupla identidade: torna-a simultaneamente humana e animal da mesma espécie que a iniciou. Os xamãs tratam as doenças causadas por espíritos animais e por feiticeiros wari'. Geralmente não curam doenças identificadas como doenças de brancos, que são tratadas pelos assistentes de enfermagem, enfermeiros e médicos, que utilizam técnicas de cura ocidentais.

 Cultura material

Saúde, dieta e economia
Os problemas de saúde mais comuns são a malária (que algumas vezes atinge níveis epidêmicos), infecções respiratórias, parasitoses, diarréias e doenças gastrointestinais. A tuberculose, que inclui formas resistentes, também tem sido um problema recorrente. No decorrer dos anos, as condições de saúde têm variado radicalmente, dependendo do grau de assistência médica, especialmente no âmbito da aldeia. Atualmente, cada posto-aldeamento tem uma pequena farmácia, onde se oferece assistência médica primária ministrada por um auxiliar de enfermagem empregado pela agência governamental. Recentemente, jovens wari' passaram a receber treinamento como assistentes de saúde, modelo vigente há muito na aldeia de Sagarana, e atuam em seus próprios aldeamentos, ao lado dos auxiliares de enfermagem ou mesmo sozinhos, quando da ausência destes. Os funcionários da Casa do Índio da Funai em Guajará-Mirim oferecem diagnósticos e tratamentos mais especializados, e coordenam programas de vacinação e o trabalho de um grupo constituído por médico, enfermeiro e dentista, que periodicamente visita as aldeias wari'. Entre os anos 1983 e 1989, o Projeto Polonoroeste subsidiou melhorias na infraestrutura médica, a construção de farmácias-enfermarias nas aldeias, escolas e casas para os funcionários da Funai, além da aquisição de barcos, motores, caminhões, rádios e geradores para os postos indígenas. Com o fim desse subsídio, os serviços médicos e outros têm sofrido cortes constantes e dependido de verbas esporádicas e incertas.

O estado nutricional da maioria dos Wari' varia entre o adequado e o precário. Desde o contato os Wari' adotaram diversos cultivos, dentre eles a mandioca brava, o arroz, e várias frutas, além de animais domésticos, como cachorros e galinhas. O gado foi introduzido em diversas aldeias, mas a criação não tem tido êxito. As crianças que freqüentam as escolas dos postos recebem merenda diária, e as famílias wari' consomem alguns alimentos industrializados, apesar da subsistência ainda depender largamente da caça, pesca, coleta e cultivo de roças.
Tambor Rowin (também chamado de Towa) revestida com caucho (balata ou towa em língua warí) de seringueira.

Para que os Wari' possam viver de sua terra é preciso que tenham alguma mobilidade para usufruir os recursos florestais que estão dispersos pelo território. Essa necessidade de mobilidade está em conflito com a política governamental de concentrar a população em poucas aldeias permanentes, em locais de fácil acesso de modo a permitir o deslocamento dos administradores. Alguns desses locais não têm, em suas imediações, solo adequado para o cultivo, especialmente do milho, base da subsistência wari', e que exige um solo especial, conhecido como terra preta. Solo fértil, caça, pesca, lenha e outros recursos tornam-se escassos nas vizinhanças desses postos permanentes e populosos, com impacto negativo na dieta e na saúde, que piora com o crescimento da população indígena. Diante disso, os Wari' estão iniciando um processo legal de requisição de parte de seu território tradicional, nas margens dos rios Pacaas Novos e Ouro Preto, hoje ocupada por posseiros para a criação de gado. Pretendem com isso fundar novas aldeias, evitando a escassez de alimentos e o alto índice de doenças.

Técnicos agrícolas e outros funcionários da Funai criaram vários programas para incentivar a coleta de borracha e de castanha-do-pará, roças coletivas e produção agrícola para a venda. Os resultados desses projetos são variados. A obtenção de dinheiro para comprar munição, material de pesca, roupas e outros bens constitui um problema constante para os Wari'.

Muitas famílias coletam e vendem borracha e castanha-do-pará, mas a instabilidade dos preços não permite que dependam disso como fonte de renda. Os mais idosos recebem uma aposentadoria, e os jovens algumas vezes conseguem dinheiro através de trabalho temporário para a Funai ou para fazendeiros e seringueiros vizinhos. A questão da comercialização de recursos florestais é polêmica. Nos últimos anos, alguns Wari' têm pressionado a Funai para permitir o comércio de madeira, mas têm sofrido a oposição de vários de seus pares. Até o momento, a Funai tem se mantido firme na sua decisão de proibir o comércio de madeira em larga escala e de evitar a exploração dos Wari' e de seus recursos por firmas comerciais.

 Nota sobre as fontes

Os primeiros estudos antropológicos foram realizados por dois etnógrafos que viveram com os Wari' no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Alan Mason estudou a comunidade de Pitop (hoje Tanajura), e sua tese de doutorado trata da organização social e parentesco dos OroNao. A tese de doutorado de Bernard Von Graeve trata da história do contato entre os Wari' e a sociedade nacional, com ênfase especial na história e organização da comunidade de Sagarana, administrada pela Igreja Católica, é a base de seu livro The Pacaa Nova.

Em 1986, Denise Maldi Meireles defendeu sua dissertação de mestrado em antropologia social na Universidade de Brasília, baseada em entrevistas realizadas em diversas comunidades wari' (Os Pakaas-Novos). Trata de temas tais como a organização social, a noção de pessoa, mitologia e canibalismo. Em 1989 publicou um estudo histórico sobre a ocupação da região do rio Guaporé: Guardiães da Fronteira.

Beth Conklin realizou, nos anos de 1985-1987, pesquisa na comunidade de Santo André, e em outras quatro aldeias wari'. Sua tese de doutorado em antropologia médica, Images of Health, Illness and Death Among the Wari', analisa experiências de doença na sociedade wari' antes e depois do contato, e as concepções do corpo nas relações sociais wari', na doença e no canibalismo funerário, trabalho que continua em vários artigos posteriores. Seu livro, Consuming Grief: Mortuary Cannibalism in an Amazonian Society, explora o modo como o endocanibalismo se enquadra em um processo de luto constituído por idéias sobre corpos, espíritos, memória e pela psicologia do sofrimento.

Em 1986, Aparecida Vilaça iniciou pesquisa de campo entre os Wari', tendo como principal sede a aldeia do Rio Negro-Ocaia. Sua dissertação de mestrado, defendida em 1989, no Museu Nacional, UFRJ, foi publicada como livro, Comendo como gente, em 1992. Trata-se de um estudo do canibalismo wari', tanto literal quanto figurado, com ênfase na cosmologia, guerra, xamanismo e rituais. Sua tese de doutorado em antropologia social, Quem somos nós, analisa a questão da identidade e da definição das categorias estrangeiro, inimigo e branco antes, durante e depois da pacificação, contato e conversão ao cristianismo. Tem publicado vários artigos sobre estas e outras questões.

Em 1996, Marlene Rodrigues Novaes (Unicamp) escreveu uma dissertação de mestrado em antropologia social baseada em cinco semanas de trabalho de campo na comunidade do PI Lage: A Caminho da Farmácia. Trata das representações indígenas das doenças e tratamentos e das relações entre a medicina wari' e os serviços de saúde da Funai.

Desde os anos 1950 a língua wari' vem sendo estudada por missionários da Missão Novas Tribos do Brasil, que desenvolveram uma ortografia, transcreveram partes da Bíblia e organizaram cartilhas e outros materiais didáticos. Seu trabalho sobre a língua wari' tornou-se finalmente acessível com a publicação de uma gramática descritiva, Wari': The Pacaas Novos Language of Western Brazil, escrita por Daniel Everett, lingüista da University of Pittsburgh, e Barbara Kern, uma lingüista da Novas Tribos que trabalha com os Wari' desde o início dos anos 1960.

Em trabalhos mais antigos se encontram referências básicas sobre os povos Txapakura, como os capítulos de Métraux, Tribes of eastern Bolivia and the Madeira Headwaters: The Chapacuran Tribes, e de Lévi-Strauss, Tribes of the rigth bank of the Guaporé River, no Handbook of South American Indians; o Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú e o seu artigo As Tribus do Alto Madeira; as Notes on the Moré Indians, Rio Guaporé, Bolívia, de Rydén; os livros El Itenez Salvaje, de Leigue Castedo; Atiko y, de Snethlage; e o artigo de Nordenskiöld The Ethnography of South-America seen from Mojos in Bolivia.

 Fontes de informação

CAMPOS, Mônica Soares de. Estudo da correlação mercúrio-selênio em amostras de cabelos de índios Wari. São Paulo : USP-Ipen, 2001. 100 p. (Dissertação de Mestrado)


CATHEAU, Gilles de. Os Warí : subsistência, saúde e educação. In: RICARDO, Carlos Alberto (Ed.). Povos Indígenas no Brasil : 1991/1995. São Paulo : Instituto Socioambiental, 1996. p. 559-61.


COIMBRA JÚNIOR, Carlos E. A.; ESCOBAR, Ana Lúcia. Considerações sobre as condições de saúde das populações das Áreas Indígenas Pakaanova (Wari) e do Posto Indígena Guaporé, Rondônia. Porto Velho : UFRO, 1998. 22 p. (Documento de Trabalho, 1)


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