segunda-feira, 26 de abril de 2021

Mirity Tapuya

 
Toy Art Mirity Tapuya


#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
143
Buia-tapuyaTukano

UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
AM75Dsei/Foirn 2005

 


Os Miriti-tapuya viviam por tradição no baixo e médio rio Tiquié, especialmente nas comunidades de Iraiti, São Tomé, Vila Nova e Micura.

Localização

O Rio Uaupés tem cerca de 1.375 Km de extensão. De sua foz do Rio Negro até a desembocadura do Rio Papuri, o Uaupés está situado em território brasileiro e percorre cerca de 342 Km. Entre este ponto e a foz do Querari, serve de fronteira entre o Brasil e a Colômbia por mais de 188 Km. A partir daí até as suas cabeceiras se situa em território colombiano e percorre 845 Km. Navegando no Uaupés, H. Rice (1910) contou 30 cachoeiras maiores e 60 menores.

Terra Indígena Mirity-Tapuya

Depois do Rio Branco, o Rio Uaupés é o maior tributário do Rio Negro. Atualmente, o nome Uaupés é o mais usado (no Brasil, já que na Colômbia fala-se mais Vaupés), mas também é conhecido como Caiari. Em seu curso, o Uaupés recebe as águas de outros grandes rios, como o Tiquié, o Papuri, o Querari e o Cuduiari.

Os principais núcleos de povoamento do Rio Uaupés são a cidade de Mitu, capital do departamento colombiano do Vaupés, e Iaraueté, que é sede de um distrito do município de São Gabriel. Iaraueté, além de ser um centro de ocupação tradicional dos Tariana, abriga também uma grande missão dos salesianos e um pelotão de fronteira do exército. Existem ainda outras duas missões salesianas na bacia do Uaupés, uma em Taracuá (na confluência desse rio com o Tiquié) e outra no Alto Tiquié, chamada Pari-Cachoeira. Também há um destacamento do Exército na confluência do Querari com o Uaupés e outro em Pari-Cachoeira.

Homens entoando instrumento musical sagrado

A Terra Indigena do Alto Rio Negro, onde residem os Mirity Tapuya, com extensão de 7.999.380 ha foi homologada em 14 de abril de 1998, e registrada no CRI e SPU, com 26.046 de 18 etnias (SIASI/SESAI 2013).

Língua

Miriti, Tukano e Português (DAI/AMTB 2010). Atualmente falam apenas a língua Tukano, Miriti é considerada de ser extinta.

História

Durante o século XVIII os portugueses tentaram tomar conta dos territórios no extremo oeste da Amazônia, concedidos pelo Tratado de Madri em 1750. Mas os caciques do alto rio Negro se rebelaram em 1755. Um chefe chamado Yavita vendeu escravos dos rios Uaupés e Xié aos portugueses. A fronteira com a Espanha no alto rio Negro e a Venezuela foi definida em 1777 e marcada por fortes construídos pelos índios. Uma comissão sob um ‘astrônomo’ foi estabelecida em Barcelos e Tefé para determinar a fronteira entre os Solimões e Uaupés, que trouxe naturalistas e cientistas à região pela primeira vez.

O primeiro contato do alto rio Negro com os brancos eram ‘pelos objetos, como ferramentas, comerciados por outros indígenas, seguidos pelas expedições portuguesas à busca de escravos, acompanhadas de jesuítas acerca de 1650 (Cabalzar 2006.73). Escravos tukano entre outros foram levados para Belém entre 1739 e 1755 e epidemias de varíola e sarampo arrasaram a região entre 1740 e 176. Depois da derrota dos Manao pelos portugueses o alto rio Negro ficou despovoado. Os índios se dividiram entre os que cooperavam com os brancs e serviram os carmelitas com a coleta de produtos do mato e os outros que continuaram a resistir. Pombal terminou o trabalho dos missionários e quis trocar a escravidão pela assimilação dos índios, mas os coloniais continuaram a explorá-los (Cabalzar 2006.80).

Quando a nova providencia do Amazonas foi criada em 1850 os presidentes pensaram que ela prosperaria somente se os indígenas sejam transformados em mão de obra. O rio Negro já era quase sem índios e a atenção passou para o rio Uaupés com seus afluentes os rio Tiqué e Papuri, e os rios ao norte, os Içana e Aiari, que ainda tinha uma grande população indígena, inclusive os grupos falantes Tukano. O carmelita, frade José Maria de Bene, foi enviado e ele chegou no rio Uaupés em 1852 e começou a três pontos entre os Tukano. Ele conseguiu batizar o terço dos estimados 2.300 índios em quinze aldeias no rio Uaupés em dois anos. Quando ele transferiu para o rio Içana ele descobriu os Baniwa espalhados e depois de batizar 165 se demitiu do trabalho (Hemming 1987.303). O tenente de polícia Coreiro tentou ter o monopólio do comércio no rio Uaupés e visitou os chefes para persuadi-los mudar-se para as margens dos rios. Poucos o obedeceram porque ele ia capturá-los. Cordeiro puniu uma aldeia, matando todos (Hemming 1987.306).

Festividade Mirity-Tapuya

Em 1858, um movimento messiânico entre os Baniwa no Içana, do Venâncio Cristo, chegou no rio Uaupés e um Tukano, Alexandre organizou danças messiânicas e ele foi bem recebido pelos índios que temiam um ataque dos brancos. Alexandre realizou batismos, casamentos e deu profecias e centenas dos povos Tukano responderam. Ele profetizou que os índio dominariam os brancos. Um frade foi investigar mas os índios não cooperam e ele tinha que fugir depois um tiroteio, mas Alexandre sumiu rio acima no Tiquié. Uma expedição veio de Manaus para reconciliar os índios e uma capela católica foi construída pelos índios e consagrada. Os Tukano contam que houve muitos movimentos messiânicos no século até o fim do século XIX, mas em contraste como entre os Baniwa no Içana, eles desapareceram no rio Uaupés (Hemming 1987.311-113).

Dois capuchinos, frades Mathieu Canioni e Guiseppe Coppi chegaram no rio Uaupés em 1883. Coppi era um zelote que não falava as línguas indígenas e desprezava os povos Tucano. Instituiu uma disciplina severa, construiu a missão na aldeia dos Tariana chamada Panoré, com as casas em fileiras, uma igreja grande e uma casa pastoral fortificada. Os frades combateram as injustiças dos regatões e perseguiram os pajés. Para destruir a crença do Jurupari, Coppi mostrou uma mascara sacra às crianças e depois a todos na capela. Isso produziu um tumulto de temor e raiva, que resultou na fuga dos missionários rio abaixo. Os pajés tomou a oportunidade de purificar a aldeia com seus rituais. Alguns pajés pensaram em abandonar sua crença, mas eram persuadidos continuar por um velho colega que disse que recebeu uma visão do Jurupari. Os frades abandonaram sua missão (Hemming 1987.321-324).

Os povos viviam em temor dos seringueiros durante a primeira época da borracha do final do século XIX. As árvores ficavam mais no lado colombiano, e os colombianos vieram ao Brasil para escravizar os índios e levá-los para lá. Em 1927, Nimuendajú encontrou com Antônio Maia, agente do criminoso Julio Barreto. Maia viajou no rio Uaupés explorando os índios para pagar ‘dívidas’, trabalhar nos seringais, ou ser raptados para a Bolívia (Hemming 2003.241).

A época dos salesianos começou em 1914 e durou até 1952, instalando missões em São Gabriel, Taracuá, Iauareté, Pari-Cachoeira, Santa Isabel e Assunção do Içana. Reduziram a exploração dos patrões, mas destruíram a cultura e as línguas indígenas por levar as crianças para serem educados nos seus internatos, nos quais reinava só a fala portuguesa e uma disciplina rigorosa. Mandaram a destruição das malocas para substituí-las com casas de famílias nucleares e abandonar o ritual do Jurupari (Cabalzar 2006.95). Os salesianos só tinham influência no rio Içana depois 1950 e na época muitos Baniwa se converteram ao protestantismo, mas isso tinham pouco contato com os povos Tukano. Em 1979 o governo cortou os verbos e os salesianos terminaram o regime dos internatos.

O Plano de Integração Nacional (1970) incluiu a tentativa de construir a estrada BR-307 do Acre, lingando Benjamim Constante e São Gabriel da Cachoeira com Cucuí, na fronteira com a Venezuela. Só este último trecho foi construído. Em 1988 a nova Constituição deu direitos aos indígenas, mas levou uma década de luta, com a formação das Associações indígenas do rios para conseguir a demarcação e homologação das Terras Indígenas do Médio rio Negro, Téa e Apapóris em abril 1998.

Nos anos 80 do século XX os garimpeiros invadiram o rio Uaupés, o ouro atraiu milhares de homens que não respeitavam os índios. Os índios tentaram garimpar nas suas terras por conta próprio, não podiam defender o território dos invasores. Estes concentraram nos garimpos do Pari-Cachoeira e no alto Tiquié. Em 26 de outubro de 1985 noventa índios foram ao acampamento dos garimpeiros, pedindo que saíssem. Na luta que houve três garimpeiros foram mortos. Os índios descobriram outros garimpos de ouro e os Tukano fizeram um acordo com a Empresa de mineração. O plano de incluir o garimpos dentro a nova Terra Indígena foi cancelado. Os índios responderam por realizar uma ‘Assembleia da Organizações Indígenas do Alto Rio Negro com 300 representantes em abril 1987, criaram FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e rejeitaram a proposta de pequenas ‘ilhas’ de T. Is. para a T. I. Alto DRIO Negro. No fim o acordo com a empresa de mineração não se cumpriu e os índios deixados decepcionados (Hemming 2003.622, 626).

O rio Uaupés com seus afluentes Tiquié, Papuri, Querari e os igarapés é a região habitada pelos povos de línguas Tukano. Na Colômbia, há vários grupos aparentados que vivem na bacia Vaupés e na bacia do rio Apapóris e seu afluente o rio Pirá-Paraná. Existem pelo menos dezesseis povos que são falantes deste línguas, mas usam o Tukano como a língua franca. Os Miriti-tapuya ocupam o médio e baixo rio Tiquié (Cabalzar 2006.41). Os Hupdah e Yuhupdeh dos chamados povos ‘Maku’ vivem na floresta da terra firme dos afluentes do rio Tiquié, os primeiros na margem esquerda e os segundos na margem direita. Rio acima na Colômbia vivem os Kakwa, outro grupo dos seis povos chamados ‘Maku’. Eles servem os povos Tukano, ‘os povos do rio’, como os Miriti, em brocar e queimar as roças maiores, providenciar carne de caça, e morar temporariamente ao lado dos povos ribeirinhos (Cabalzar 2006. 49-51). Assim a exploração econômica da áreas ecológicas diferenciadas da região é aproveitada. Os caçadores coletores ‘Maku’ usam as áreas interflúvias e os ‘povos do rio’ fazem a agricultura de coivara e a pesca. Em 2006 somente 12 Miriti-Tapuya moravam na cidade Iauareté, no rio Uaupés, entre uma população de 2.659 (Andrello 2006.153).

Sociedade 

Os povos da língua Tukano praticam o casamento exogâmico interétnico e patrilocal, os Miriti se casam com mulheres das outras etnias das línguas Tucano, como uma mulher Desana, Tukano ou Tuyuka. Desta maneira os povos são unidos em uma colaboração mútua. Também pessoas representantes da outra etnias se encontram nos assentimentos dos outros. Um comércio de troca de sal, raladores Baniwa e malhadeiras do lado brasileiro ganham panelas de alumínio do lado colombiano.

Artesanato: Cada povo do grupo Tukano tem sua especialidade: Os Tuyuka fazem canoas, os Tucano bancos, os Desana apás grandes, cestos e cumatás, os Tariana especializam em implementos de pesca como caiá, cacuri, matapi, os Wanana o preparo do carajuru para colorar bancos, artefatos rituais e a pintura corporal. Os Bará confeccionam aturás de turi, os Makuna fazem zarabatanas e curare e canoas (Cabalzar 2006.43-45).

Religião

A festa do Jurupari é celebrada pelos povos Tucano. O nome é termo impróprio, porque vem do Tupi, descreve um espírito mau temido pelos povos do litoral e usado pelos jesuítas para o diabo. Na realidade a festa celebra uma criança ancestral que vagava na mata, transformada em preguiça ou guariba. A festa dura três dias, e as mulheres e as crianças se escondam na floresta para não ver as flautas e os pajés disfarçados com mascaras. O Jurupari chega durante a música e entra a casa quando é silenciosa, bate em pessoas com seu bastão, recebe comida e volta para a floresta. Depois isso as mulheres voltam e a dança começa (Hemming 1987.321). 20% provavelmente Cristão católico.

Bibliografia

ANDRELLO, Geraldo, 2006, Cidade do Índio: transformações e cotidiano em Iauaretê, São Paulo, SP:UNESP.
CABALZAR, Alosio, 2006, (redator) Povos Indígenas do Rio Negro, uma introdução à diversidade socioambiental do noroeste da Amazônia brasileira, São Gabriel da Cachoeira/ São Paulo: FIORN-ISA.
DAI/AMTB 2010, ‘Relatório 2010 – Etnias Indígenas do Brasil’, Organizador: Ronaldo Lidório, Instituto Antropos –instituto.antropos.com.br.
EQUIPE do Programa Rio Negro do ISA, 2002, ‘Mirity-tapuya’, Povos Indígenas do Brasil, Instituto Socioambiental, São Paulo. pib.socioambiental.org/pt/povo/miriti-tapuya.
HEMMING, John, 1987, Amazon Frontier-The Defeat of the Brazilian Indians, London: Pan Macmillan.
HEMMING, John, 2003, Die If You Must – Brazilian Indians in the Twentieth Century, London; Pan Macmillan.
PHILLIPS, DAVID https://brasil.antropos.org.uk/203-miriti/
SIL 2014, Lewis, M. Paul, Gary F. Simons, and Charles D. Fennig (eds.). 2014. Ethnologue: Languages of the World, Seventeenth edition. Dallas, Texas: SIL International. Online version: www.ethnologue.com.

Jeripancó

Toy Art da Etnia Jeripancó

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
69JeripancóJeripancó, Geripancó
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
AL2074Funasa 2010



Vivem próximos à cidade de Pariconha, em Alagoas. Descendentes dos Pankararu do Brejo dos Padres, migraram para Alagoas no que o pesquisador Maurício Arrutti chama de viagens de fuga: migrações de grupos familiares em função das perseguições, dos faccionalismos, das secas ou da escassez de terras de trabalho. (Arrutti, 2005).

Terra Indígena Jeripancó

Mesmo migrados para longe do núcleo Pankararu, os Jiripancó mantiveram contato com os parentes e frequentemente visitavam o Brejo dos Padres, inclusive para as festas indígenas. Foi através das relações que mantinham com os parentes Pankararu que o Cacique jiripancó Genésio Miranda da Silva conseguiu o reconhecimento de seu povo. Ainda jovem Genésio fora iniciado nos rituais fechados dos Pankararu e até os 19 anos frequentou o terreiro e o Poró (casa de ritual) no Brejo dos Padres. Na década de 80 a comunidade Jiripancó, buscando seu reconhecimento e direitos enquanto indígenas, decidiu enviar representantes à Brasília (Ferreira, 2008). 
Festividade Jeripancó - foto Adalberto Gomes

Depois de várias reuniões foram eleitos Seu Genésio como Cacique e Seu Elias Bernaldo como Pajé. Os dois eleitos foram primeiro para Recife até a sede da Funai, fizeram o percurso por Maceió e seguiram para Brasília. Na companhia de seu Genésio e de Elias Bernaldo, estava também, uma grande liderança dos Xucuru-Kariri de Palmeira dos Índios, que lutou também, pelo reconhecimento étnico do seu povo (Ferreira, 2008).

“Seu Genésio e mais algumas pessoas do Ouricuri sempre mantiveram contato com o povo Pankararu que fica do outro lado do riacho Moxotó, já em Pernambuco, mas a proposta seria para um reconhecimento como um povo descendente dos Pankararu por ter uma organicidade própria e assim seria para ter uma identidade também própria, com um nome próprio, mesmo que derivado do tronco Pankararu, nome este que veio a ser Jiripancó, que já havia pertencido aos seus antepassados, ligados a história dos Pankararu." (Ferreira, 2008).

Festividade Jeripancó


 Fontes de informação

FERREIRA, Gilberto Geraldo. MEMÓRIAS DE FORMAÇÃO DE UM “CACIQUE” INDÍGENA. SBHE, 2008.
ARRUTTI, José Maurício, Verbete Pankararu. Site Povos Indígenas no Brasil. ISA. 2005.

sábado, 24 de abril de 2021

Truká

 
Toy Art da etnia Truká


#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
198Truká

UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
BA,PE3078Funasa 2009



Habitantes seculares da Ilha da Assunção, no rio São Francisco, os Truká tiveram suas terras apropriadas desde pelo menos o século XVIII por poderes municipais, eclesiásticos e posteriormente estaduais. Nos dias de hoje, a comunidade truká luta pela conclusão do processo de reconhecimento oficial de seu território, bem como pela expulsão de posseiros não-indígenas e de narcotraficantes, uma vez que está localizada no chamado “Polígono da Maconha” no sertão pernambucano.

 Localização e economia

Os Truká habitam a Ilha da Assunção, no médio curso do rio São Francisco, município de Cabrobó. A Terra Indígena Truká está inserida em região conhecida como “Polígono da Maconha” e os índios vêm denunciando o uso indevido de suas terras para esse plantio. Desde pelo menos o final da década de 1990 traficantes ameaçam índios e funcionários da Funai. Em abril de 1999, a polícia federal queimou 20 mil pés de maconha, mas as ameaças (incluindo tiros e emboscadas) não cessaram.

Terra Indígena Truká

Suas principais atividades produtivas estão voltadas para a agricultura e a pesca. Assim elencam os produtos que cultivam, destacando a importância do milho em sua tradição: “Nós plantamos cebola, arroz, manga, macaxeira, mandioca, goiaba, coco, coentro, alface, tomate, melancia, pimentão, pimentinha, cachi, cenoura, beterraba e milho. Quando nós dizemos: ‘só milho!’ é uma expressão de que está tudo bem”.

Os Truká também coletam e eventualmente caçam. Assim Deodato Truká relata sua vida no tempo em que suas terras passaram a ser apropriadas pelos não-indígenas:

“Passamos muita privação, de dia trabalhávamos na roça, à noite nós pescávamos, ou passávamos em cima de uma árvore, com a espingarda esperando a capivara. Comia Juá, xique-xique assado, mari (fruta do mato) assada, quixaba, também pegava um anzol, passava um barbante depois uma corda, botava um pedaço de carne e esperava o jacaré morder. Gostava muito de comer gambá e bola, que não pe igual ao tatu nem ao peba”.

Festividades Truká

Em relação aos posseiros que habitam em suas terras desde pelo menos a década de 70 e a atuação dos representantes do governo estadual, os Truká reclamam da exaustão do solo. Como afirma Dena Truká: “Eles nos entregaram um solo morto, a sucata da terra com a herança das ovelhas e das algarobas. O que ficou: a erosão e o sal. A algaroba não dá espaço para outras árvores nativas, como o juazeiro, a quixabeira, braúna, arueira, jurema. Cerca de 40% de nossas terras estão improdutivas por causa da algaroba, do adubo, dos agrotóxicos, das queimadas. Outra coisa que está destruindo é o arroz! Por que ele precisa de muita água e esse desperdício de água estraga o solo todo”.

 História

Fontes históricas estimam a fundação de uma aldeia indígena na extremidade ocidental Ilha da Assunção no ano de 1722. Em 1761, a ilha foi elevada pelas autoridades coloniais à categoria de paróquia, recebendo habitantes não-indígenas. Dados de 1789 indicam uma população de 400 pessoas habitando a ilha. Mas uma grande cheia ocorrida em 1792 inundou toda a vila, acarretando a saída de boa parte de seus moradores. Entre os que ficaram, os índios tiveram que enfrentar uma série de disputas relativas à posse da terra e o controle do seu rebanho, sendo continuamente ameaçados por figuras de poder que – segundo registra uma carta de 1857 –, após a Independência do Brasil, apossaram-se da Ilha, convertendo-a em sede da Freguesia de Belém do São Francisco e patrimônio da Comarca Municipal.

Quando a sede foi transferida para Cabrobró, a comarca arrendou por quase uma década toda ilha e um conjunto de ilhotas próximas. Os índios continuaram então à mercê dos arrendadores da terra, tendo que trabalhar para estes em regime de semi-escravidão ou escravidão, e tendo seu gado expropriado pelo Juiz Municipal.

Em 1920, o bispo de pesqueira passa a reivindicar a ilha como patrimônio da Igreja, alegando uma doação feita pelos índios a Nossa Senhora. O cartório da comarca de Belém do São Francisco lavrou a escritura de compra e venda de toda a ilha de Assunção. Os habitantes indígenas passaram então a pagar o foro anual e a serem subjugados pelo bispo, “proprietário” da ilha..

Em meados dos anos 1940, com apoio e mediação dos Tuxá de Rodelas, os Truká passam a reivindicar junto ao SPI (Serviço de Proteção aos Índios, órgão antecessor da Funai) o reconhecimento de seus direitos fundiários sobre a ilha. O SPI consegue então instaurar uma Ação de Nulidade de Venda e Reintegração de Posse. Desde então os conflitos entre a comunidade indígena e os posseiros não-indígenas se acirraram, acarretando inclusive a morte de uma liderança truká.

O estado de Pernambuco, ignorando a ação impetrada pelo SPI, compra então parte da ilha da Assunção para criar, em 1965, um núcleo de Colonização. O recrutamento de colonos não deu prioridade aos habitantes da ilha, atraindo pessoas de fora com lotes individualizados.



Agravando ainda mais a situação da comunidade truká, no final da década de 60 um trecho da ilha foi apropriado por outro órgão estatal e convertido em viveiro de mudas. Com receio de serem expulsos e diante da exigüidade de terras para plantarem, os Truká retomaram o processo de reivindicação territorial, dessa vez junto à Funai. Em 1976, o órgão indigenista deslocou uma equipe (Portaria n. 876/P de 21/06/76) para averiguar a existência de “remanescentes indígenas” e avaliar sua situação fundiária.

Ritual Truká

Nessa época, os Truká passaram a contar com apoio do Cimi (Conselho Indigenista Missionário, instituição da Igreja Católica) na veiculação de sua situação adversa em órgãos da imprensa local e regional. Depois de muito conflito, o trecho que vinha sendo utilizado como viveiro de mudas foi devolvido à comunidade.

Como a indicação de cessão de 500 ha aos Truká feita pela equipe da Funai não foi acordada pelo estado de Pernambuco, uma nova comissão foi designada para realizar o levantamento antropológico em 1980 (Portaria n. 687/E de 05/03/80). No ano seguinte, a Funai obteve a concessão de dois lotes de 14 ha do governo pernambucano para uso temporário de todo o grupo. Em 82 os Truká resolvem ocupar mais um trecho de 70 ha. Finalmente, em 84 a Terra Indígena Truká foi identificada com superfície de 1.659 ha, embora cerca de mil hectares continuassem ocupados por posseiros.

Em 1987, um posto indígena da Funai foi instalado na cidade de Arcoverde, próxima à ilha.

Em 1993 a TI Truká foi finalmente declarada pelo ministro da Justiça como de posse permanente indígena (Portaria n. 315, de 17/08/93). Em 2002 a terra foi delimitada com 5.769 ha, abrangendo a totalidade da ilha. Os Truká ainda aguardam, porém, a conclusão do processo demarcatório por meio da homologação do Presidente da República.

 Aspectos cosmológicos

Como na grande maioria das comunidades indígenas no Nordeste, o consumo da jurema e o complexo ritual do toré constituem o cerne da religiosidade Truká e alicerçam sua identidade étnica.

O mundo, para os Truká, é povoado de Encantados, que são seus ancestrais convertidos em seres espirituais e fortemente associados a elementos da natureza.O dono da mata, por exemplo, é um Encantado chamado Manoel da Obra. Já o Encantado associado ao rio São Francisco é a Mãe D´Água. Assim conta o Truká Pedro Alberto Maciel:

“Uma vez que minha avó estava no Toré, foi buscar água mais as amigas dela. Aí enchia o pote e ele ficava preso no rio, não saia da água. Aí voltou no Toré e disse: ‘ A água não quer sair do rio, não! Está presa como uma pedra!’. Aí falaram pra ela: ‘Vai ao rio e diga à Mãe D´Água que você quer água para o povo dela beber’. Aí foi e pediu, tirou e levou a água”.

Na comunidade, aqueles que têm contato com os Encantados são os “mestres de aldeia” e “juremeiros”. Como afirma Issor Truká, “através deles, nós temos o conhecimento e as informações de como nós devemos proceder e as medidas e os cuidados que devemos tomar. São eles que carregam os nossos costumes e é através do ensinamento deles que eu, junto com outras lideranças, vamos seguindo e tentando conduzir a aldeia truká”.

A respeito do toré, assim relata Antonio Chico, que ocupa a posição de contra-mestre nesse ritual:

“A religião do índio é beber jurema. É ir no mato e fazer as obrigações. Ir no mato para arrancar a raiz da Jurema, no dia do trabalho, depois fazer o Toré, cantando e dançando com a Jurema. Primeiramente é a Jurema, porque é dela que vem a força para o trabalho”.

A fala é complementada pela de Tonho de Chiquinho, Mestre de aldeia:

“Tem que ser todos um corpo só. Temos que cuidar de nós todos, de nosso costume. Nosso costume é dançar toré. O Toré nos dá todo o ensinamento. Os antepassados dão orientação para a gente. (...) Nasci e me criei com o Toré. Cantar, dançar, beber Jurema. Maracá era da boca da noite até amanhecer, era de sábados e quartas. O que eu quero pra mim eu quero para os outros todinhos. Encanto não se pega com a mão. A gente se concentra na Jurema e aquilo entra na cabeça e dá tudo certo. No toré, eu sei o que está acontecendo, está entrando um e saindo outro, porque alguém está soltando pra eu soltar. Eles ensinam tudo. O índio canta para isso”.

De acordo com a memória truká, a prática do toré foi aprendida com os índios Tuxá, de Rodelas, e fora muito perseguida pela polícia. Assim conta Dona Maria de Lourdes Ciriaco:

“Acilão ficou doido! Meu pai era um homem sadio, mas um dia adoeceu com uma febre, ficou doido e depois foi que ele se aleijou. Passava um dia e uma noite acordado, depois um dia e uma noite dormindo. Depois foi Marina e depois Prosperina que ficaram loucas. Eu tinha nove para dez anos e vi quando eles pegaram aqueles cachimbos de ciência do índio. E também tinha uns apitos. Aí defumaram as pessoas que estavam ali. As meninas e Zé Martins e meu pai estavam caídos depois de começar a dançar. Minha mãe disse que ia atrás de um João Amaro, que trabalhava com uma índia velha de Rodelas, de nome Maria Cabocla, pra ajudar a levantar. Eles combinaram ir para Rodelas dançar com os índios de lá. Eles ficaram bons depois de começar a dançar toré. (...) Desse dia em diante, por 10 anos, João Amaro trabalhou com meu pai. Meu pai era mestre e ele contra-mestre. Aí meu pai começou a sofrer, porque a polícia vinha atrás, levava esporro, apanhava, era maltratado (...). Foi nessa luta e morreu com 50 anos”.

 Fontes de informação

BATISTA, Mércia Rejane Rangel. De caboclos da Assunção à índios Truká : estudo sobre a emergência da identidade étnica Truká. Rio de Janeiro : UFRJ-Museu Nacional, 1992. 229 p. (Dissertação de Mestrado)
 

CIMI NORDESTE. Truká : violência, impunidade e descaso. Recife : Cimi-NE, 1992. 35 p. (Série 500 Anos de Resistência)
 

GERLIC, Sebastián (ed.). Os índios na visão dos índios. Truká. Salvador : Thydêwá, 2003.

Wajuru

 
Toy Art Wajuru

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
215Wajuru
Tupari
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
RO242Siasi/Sesai 2012



Há tempos imemoriais os Wajuru vivem num rico contexto multiétnico, mantendo trocas regulares de cônjuges, sangue, músicas, conhecimentos de todo tipo com outros povos, cujos arranjos sociais dependem desta interação. Conhecidos como o povo mais guerreiro entre os demais grupos indígenas vizinhos, os Wajuru também se destacam por sua capacidade de receber bem as pessoas e identificam-se, simultaneamente, como um povo “muito trabalhador” e consumidor de chicha, bebida fermentada produzida pelas mulheres.

 Nome e povos Wajuru

Wayurú, Ayurú, Wajuru ou Ajuru são os termos que hoje este povo assume para se autoidentificar. Os dois primeiros são frequentemente empregados para indicar as pessoas antigas, que nasceram no “tempo da maloca”, aquele em que a presença do branco se não inexistente, era sobretudo fraca. O segundo e o terceiro termo estão mais relacionados ao momento atual, a uma vida na qual o branco se tornou presença constante e irrevogável.
Mulher Wajuru - Aldeia Ricardo Franco, Terra Indígena Rio Guaporé. Foto: Nicole Soares Pinto, 2008

No passado, os Wajuru estavam divididos em três grupos distintos e hoje eles são a junção histórica destes. São eles: 1) os Guayurú, povo da pedra, concebidos como Wajuru verdadeiros ou próprios, ou ainda conhecidos pelo termo Wãnun mian (wãnun significa pedra); 2) o povo dos Cotia, Waküñaniat; 3) e o povo do mato, Kündiriat. Esses grupos formam uma unidade do ponto de vista lingüístico, mas apresentam uma descontinuidade do ponto de vista de sua origem territorial e de seus modos de vida.

O sufixo iat opera como um “coletivizador”: é empregado como referência a outras coletividades que o sujeito se destaca no momento de enunciação, e também se liga mais propriamente às categorias de alteridade, como espíritos e afins. É, sobretudo, do ponto de vista dos Guayurú (Wajuru verdadeiros) e de seus descendentes em linha direta que essa distinção toma forma. Assim, Wajuru iat, pode ser dito por alguém que se afirma Wajuru, mas carrega consigo algo de “estranho” ou engraçado. Ao passo que Waküñaniat e Kündiriat são perfeitamente utilizados sem nenhuma reserva.

Os Guayurú (Wajuru verdadeiros) ou Wãnun mian (povo da pedra) referem-se àquelas pessoas que viviam próximas a uma serra de pedra, que abrigava os espíritos de seus mortos. Como dizem: Nós somos lá das pedras! Enquanto os Guayurú são vistos como o povo das pedras – pois tem como substrato o território que ocupavam -, os Cotia, Waküñaniat, por sua vez, são identificados a um povo preguiçoso que não trabalhava e que saqueava a roça alheia. Eles são como cotias. Durafogo Opeitxá, um pajé wajuru muito velho, é o único representante atual deste povo e durante as chichadas [festa de chicha] todos os mais velhos fazem questão de chamá-lo de Cotia e assim a piada está feita. Por último, os Kündiriat era um povo que só vivia no mato, andava de um lado para o outro, não construía maloca, não fazia roça e era,por tais motivos, de uma “civilização inferior” aos Wajuru verdadeiros. É sempre um Outro que pertence ao povo Kündiriat, principalmente as pessoas que já morreram, ou ainda os mais velhos.

A multiplicidade de povos encobertos pelo etnônimo Wajuru é produzida pelas diferenças linguísticas e territoriais entendidas como primordiais. Estas estão ancoradas nas narrativas míticas sobre o começo dos tempos. O registro mitológico wajuru, com temas bastante similares aos compartilhados por diversos povos vizinhos, aciona e fundamenta tais diferenças: depois que os humanos foram encontrados pelos irmãos demiurgos embaixo da terra e saíram de lá, dois eventos passaram a marcar as diferenças sociológicas. O primeiro, quando todos os humanos estavam sentados, o irmão mais novo, o mais teimoso, começou a falar diversas línguas e foi ensinando a cada pessoa uma língua diferente: Wajuru, Tupari, Jabuti, Makurap etc. inclusive a língua dos brancos – já presentes no início dos tempos. Passou-se então uma grande confusão e desentendimento entre eles. O segundo evento deu-se depois que este irmão (o mais novo) pensou na morte e ela começou a existir. O surgimento da morte marca o momento em que as pessoas, não mais sentadas, começam a andar sobre a terra, orientadas pelos irmãos descobridores. A partir daí cada grupo ficou em um lugar específico e assim todos se territorializaram.

Desde então essas pessoas não mais se misturaram e formaram tribos, como dizem os Wajuru. Guayurú, Kundir iat e Wakuñan iat, seriam, então, dada a identidade linguística, simplesmente Wajuru, “o mesmo” do ponto de vista do primeiro evento. Por outro lado são diferentes no que diz respeito a sua territorialidade primordial, visto que foi a partir do segundo evento que as pessoas começaram a andar sobre a terra. Diz-se ainda que caso Wakowereb, o demiurgo mais novo, não tivesse dado uma língua aos brancos, esses não seriam tanta gente, pois simplesmente não existiriam - já que a distinção linguística acarreta distinções entre tipos de pessoas - e os Wajuru seriam hoje a maior população na Terra. Por conta dessa “trapalhada”, os Wajuru são muito poucos e não deixam de ter algum ressentimento disso.

Existe ainda uma outra distinção corrente baseada nas transformações das formas de organização social. Esta se dá entre os Guayurú, os Kündiriat ou os Wakuñaniat (povos do tempo da maloca, que não se misturavam, não casavam com outros grupos) e os Wajuru, filhos sobretudo dos Wajuru próprios que se misturaram com outras gentes. Esta última classificação parece ser bastante atual, visto que destaca o contexto exogâmico [casamentos entre pessoas de grupos étnicos distintos] em que vivem hoje os Wajuru e os outros povos provenientes do médio Guaporé. 

 Localização

Terra Indígena Wajuru


Nas primeiras décadas do século 20, os Wajuru foram localizados pelos exploradores e seringalistas nos rios Terebito e Colorado, afluentes da margem direita do médio rio Guaporé, no estado de Rondônia. A maioria da população aldeada, cerca de 90 pessoas (em 2009), vive na Terra Indígena Rio Guaporé, localizada no baixo rio Guaporé. Ali vivem também muitos outros povos (Makurap, Djeromitxí, Tupari, Arikapu, Aruá, Aikanã, Kanoê, Kujubim), e a população total da TI neste mesmo ano ultrapassava 600 pessoas. Em Porto Rolim de Moura do Guaporé, povoado à beira do rio Mequéns, encontra-se outro agrupamento importante, composto por mulheres wajuru, seus maridos e filhos.

 Língua

A língua Wajuru foi classificada pelo linguista Aryon Dall'Igna Rodrigues como pertencente ao tronco linguístico Tupi e à família Tuparí. Entre os Wajuru mais velhos, é comum aqueles que falam mais de uma língua indígena. Os jovens, em grande parte, são falantes passivos da língua Wajuru e dominam completamente o Português. Há aqueles que compreendem mais de uma língua indígena, mas falam somente o Português, o que parece ser a realidade da maioria dos jovens do local. Por ocuparem uma região de fronteira internacional, muitas pessoas também manejam bem o castelhano. Para dar um exemplo desse multilinguismo, entre os filhos de Pororoca Wajuru e Pacoreiru Djerotmitxí, o mais velho é falante de Wajuru, Jabuti e Português, além de entender o Makurap e o Tupari; os outros são falantes de Jabuti e manejam o Wajuru, além do domínio completo do Português. Por razões de inteligibilidade mútua entre os grupos, o Português foi adotado como língua franca e toma hoje o lugar antes ocupado pela língua Makurap na região do Médio Guaporé. É comum que no âmbito doméstico também se fale, além do Português, a língua da mãe ou do pai do marido. Assim, os casais mais novos, mesmo se comunicando largamente em português, têm diversas possibilidades linguísticas. No entanto, é reconhecido que as mulheres são quem mais têm seu escopo linguístico “alargado”, pois não raro entendem mais de duas ou três línguas e isso decorre sobretudo do fato de residirem junto com o grupo doméstico de seu marido, que fala outra língua.

 Histórico do contato

Os povos nos afluentes da margem direita do rio Guaporé, localizados, sobretudo, nas margens dos rios Branco, Terebito e Colorado, permaneceram “desconhecidos” até o começo do século 20. Em 1914 há notícias na região das explorações do major inglês P. H. Fawcett, que mais tarde alcançaria o posto de coronel. Na época de sua viagem, já havia sido instalado um seringal no rio Colorado. É somente na terceira década deste século que alguns pesquisadores esboçaram mapas do território tradicional desses povos: Stethlage em 1936 e no ano seguinte, e Becker-Donner e Caspar em 1955.

Antes disso, o que se passou nas áreas adjacentes durante o século 19 é pouco documentado. De um ponto de vista mais amplo, a historiografia nos fala de um comércio lento e de uma demanda da borracha ainda tímida, que começou a ser explorada na Amazônia na segunda metade deste século, sobretudo a partir de 1880. Era o início de um período de exploração que se intensificou até o primeiro decênio do século 20, período em que foram enviados cerca de cem mil trabalhadores - na sua maioria nordestinos - às regiões amazônicas para atuarem na exploração seringalista. O ano de 1912 marca o início de uma drástica redução na produção, em conseqüência da concorrência asiática, e trinta anos mais tarde, um notável incremento em decorrência da Segunda Guerra Mundial.

Entretanto, no que se refere à região da margem direita do médio Guaporé, houve um fato interessante que não deve passar despercebido: os seringalistas chegaram no período de decadência da borracha. Somente em 1912 um alemão fundou uma colocação no rio Colorado, o que colocou os Wajuru, Makurap, e posteriormente os Djeoromitxí e os Aruá em contato com estrangeiros (Price, 1981). Foi o seringal Pernambuco, sua instalação e, em seguida, a fundação do seringal São Luís, entre 1910 e 1920, no alto rio Branco, que catalisaram o processo de contato com os povos indígenas nas regiões das cabeceiras dos rios (Maldi, 1991). Tais empresas seringalistas incorporaram drasticamente as populações indígenas da região à sua força de trabalho, bem como foram responsáveis pelas inúmeras epidemias de sarampo que abateram grande parte do contingente indígena da região. Já em 1927, a companhia norte-americana Guaporé Rubber Company estabeleceu um seringal em Paulo Saldanha, no Rio Branco (Price, 1981).

Na década de 1950, Caspar (1956) observou que, não obstante os casamentos entre os povos da margem direita do médio rio Guaporé parecerem de antigo uso [já em 1934, Snethlage encontrara duas mulheres Tupari casadas entre os Arikapú], eles também teriam interesse em estabelecer alianças com os não-índios, na época bastante presentes na região. O autor diz também que essa propensão à aliança com os brancos, transformando-os em genros ou cunhados, foi responsável pelo aumento de casamentos entre grupos “amigos”. Segundo esta interpretação, os Makurap, Djeoromitxí e Aruá, por estarem localizados nas partes navegáveis do rio Branco, foram os primeiros a sofrer com a busca desesperada dos seringueiros por mulheres, o que os fez buscar possíveis cônjuges entre os Arikapú e Wajuru. Da mesma maneira, a baixa suplementar de mulheres causada pela entrada dos seringueiros acabou obrigando alguns homens arikapú, wajuru e makurap a procurar mulheres entre os Tupari. Os não-índios teriam assim entrado num sistema de trocas multiétnico pré-existente, acelerando e incrementando essas trocas.

Segundo Maldi (1991), no início da segunda da metade do século 20, todos os seringais da região dos rios Branco, Colorado, São Luís, Laranjal e Paulo Saldanha foram adquiridos por João Rivoredo, agente do antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios), que se tornou proprietário único de todos seringais. A João Rivoredo são atribuídas terríveis condutas: dissolução de todas as aldeias indígenas na região e submissão dos índios a condições precárias de saúde, causando muitas mortes. Tais ações espelham-se na atuação do órgão de qual fazia parte, cuja política visava, além da atração e transferência dos índios para os Postos Indígenas, sua arregimentação nos seringais.

Em 1930, no mesmo período em que houve o incremento da exploração seringueira na região do médio Guaporé, foi criado pelo SPI, no baixo curso deste rio, o Posto Indígena de Atração Ricardo Franco, que mais tarde veio se tornar a Área Indígena Rio Guaporé. A primeira demarcação desta área data de 1935 e teve a aprovação do Marechal Rondon. Sua história não difere da história dos demais postos do SPI, criados com o objetivo de “civilizar” os índios. Este local também não ficou isento das epidemias que dizimaram os indígenas nas regiões de interflúvios. Colônia agrícola, teve seu “apogeu” na década de 1940, quando os funcionários do SPI transferiram compulsoriamente por lá parte dos povos indígenas dos rios Mequéns, Colorado, Corumbiara e afluentes (Funai, 1985). Há registros de que os Wajuru, que habitavam até então o interior da mata entre o rio Colorado e o rio Branco, foram transferidos para o Posto entre as décadas de 1940 e 1950: “Em 1947 foram transferidos para o Posto Ricardo Franco 70 Makurap, recém-contatados no P.I. Pedro de Toledo (Rio Apidiá) e 70 Ajuru e Jaboti” (SPI: Reg. 554/1947 e Reg. 559/1947. Funai, 1985).

 Uma outra história

No que concerne às primeiras relações com os brancos, diferentes povos no médio Guaporé tiveram um papel importante no processo de contato entre aqueles e os grupos que viviam em áreas mais afastadas das margens dos rios. As reações aos novos contatos eram diversificadas e dependiam do ímpeto guerreiro ou pacífico dos índios.

Muitos Wajuru, conforme conta o velho xamã Antônio Côco, moravam nas malocas do igarapé Preto, na parte alta do rio Terebito, quando viram pela(s) primeira(s) vez(es) o branco. Acompanhada de índios arikapú conhecidos e de um velho wajuru, a expedição -composta por 3 exploradores - foi recebida nas malocas wajuru tal como se deve receber  humanos ou parentes outros: deram-lhes chicha, milho, cará e amendoim e carnes de caça. Receberam os visitantes como se já os conhecessem, “amansaram-lhes”. Os Wajuru, não se assustaram, logo se acostumaram, já sabiam que eram gente, mas diferentes deles, visto que a língua era diferente, bem como a comida. Esses não-índios ficaram então conhecidos e foram nominados pelos Wajuru como “Tabô”, pois chegavam, abraçavam e diziam: “Tá bom?”, “Tabô”.

Os Arikapú também não eram brabos e era deles que, no início, os Wajuru pegavam alguns machados. Convidados a acompanhá-los na exploração da região, alguns Wajuru seguiram para a maloca Jaboti, juntamente com os Arikapú. Brabos como eram, os  Djeoromitxí queriam guerrear com os brancos. Para os Wajuru verdadeiros, esta era uma clara demonstração da incapacidade djeoromitxí em reconhecer a humanidade de possíveis aliados. Mas não foi somente os Djeoromitxí que resistiram aos primeiros contatos, os Kündiriat (um dos povos wajuru) também o fizeram e são lembrados como aqueles que demoraram a ser amansados, diferentemente dos Wajuru verdadeiros.

No que diz respeito ao seringal Pernambuco, há poucos relatos wajuru de suas idas até lá, por isso fica difícil precisar se os primeiros não-índios alcançaram suas malocas antes ou depois da instalação deste seringal. Existe ainda a dúvida se os Wajuru alcançaram o Pernambuco antes de algum branco alcançá-los em suas malocas.

Avisado por outros índios da existência de mercadorias no seringal Pernambuco, Sínamu, cacique wajuru na época, visitou o barracão em algumas ocasiões. Ali deixou Atxü Esperança, sua filha arikapú criada entre os Wajuru, em troca de algumas mercadorias. Esperança, uma menina na época, achou que os brancos fediam e demorou muito a se acostumar. Passadas duas luas, seu pai, Sinamú, voltou ao seringal Pernambuco e, mesmo sem a anuência dele, Esperança fugiu, alcançando-o já no caminho de volta à maloca wajuru, no Igarapé Preto.

Esses primeiros contatos, via índios arikapú, ou as eventuais idas ao seringal Pernambuco eram muito intermitentes e por isso não ocupam uma posição privilegiada nos relatos wajuru sobre o passado - apesar de muitas mortes terem ocorrido nesse período. Mais importantes são suas relações com os americanos. Assim conta Durafogo Wajuru: americano só quer Wajuru, não quer Arikapo, não quer Tupari, não quer Aruá. Só quer Wajuru mesmo. A presença de americanos entre os Wajuru nunca foi registrada por nenhum autor. No entanto, essa referência pode encobrir uma pluralidade de casos: os americanos poderiam ser tanto os seringueiros da Guaporé Rubber Company, os exploradores de minérios, quanto os missionários do Summer Institute of Linguistics ou de outros grupos de evangelizadores estrangeiros (pois alguns Wajuru dizem que eles só rezavam).

Para entender as relações dos Wajuru com tais americanos é necessário centrar atenção nos aspectos cosmológicos desta interação. As histórias dos tempos antigos sustentam uma geografia mitológica e falam do Igarapé Preto como território wajuru, situado ao pé de uma serra, que era a maloca dos espíritos dos parentes mortos. Esses espíritos, depois de amaldiçoados por uma mulher, ficaram muito brabos e foram morar no céu. Para a tristeza dos vivos, excetuando-se os xamãs, nunca mais puderam conversar com os seus mortos. Ao pé dessa serra existia o Campo Grande, um campo que se formou depois da morte de Wakowereb, o demiurgo mais novo. Isto aconteceu depois que os irmãos demiurgos roubaram o fogo de Kupenkarantô, um ser maligno, urubu/gente, dono do fogo e canibal. O irmão mais novo, o mais teimoso, não tirou o fogo da forma correta e acabou incendiando o mundo. Wakowereb se queimou, dando origem ao Campo Grande. Desde então, todas as vezes que os Wajuru atravessavam esse campo tinham que ficar muito atentos quando se aproximavam de uma pedra que se assemelhava a uma mãe segurando o filho. Caso vissem uma criança chorando, não deveriam acudi-la, pois o fogo incendiaria todo o caminho, tal como aconteceu no passado.

Na maloca localizada no Igarapé Preto, os Wajuru mantiveram relações duradouras com os americanos. Tais estrangeiros chegaram por terra e arregimentaram a mão-de-obra wajuru para construir uma pista de pouso. O fato de terem aprendido tão bem a língua Wajuru fez com que fossem vistos como parentes. O velho Antônio Côco disse que dali onde o fogo queimou e deu origem ao Campo Grande, os americanos retiraram uma enorme quantidade de ouro, além de fósforos, isqueiros e lanternas. Cavaram, tiraram tudo e levavam para o país deles - eram muitas e muitas malas -, além disso, também levaram muitos Wajuru. Os americanos não só aprenderam a falar a língua Wajuru (transformando-se em seus parentes) como também roubaram objetos de origem indígena – estes que hoje são vistos como “objetos dos civilizados”. Aos americanos também se atribuiu o fato de comerem urubus brancos, chefes dos urubus. Assim situam-se numa cadeia de relações canibais: os Wajuru, assim como os Djeoromitxí, não comem suas vítimas, entregam-nas aos urubus; os Tupari são seres canibais; e os americanos, por sua vez, são os que comem os urubus.

No meio dos brancos

A “retirada” dos americanos e a morte de um xamã makurap, que vivia entre os Wajuru, marcaram o momento em que os Wajuru estavam saindo da maloca, entrando nos seringais e indo morar no meio dos brancos. Foi nesse tempo que receberam compadres e deram nomes cristãos para seus filhos. Não se pode afirmar que antes não estivessem vinculados à extração da seringa, nem que posteriormente não tivessem o Igarapé Preto como referência territorial.

É difícil precisar o momento em que a endogamia praticada nos tempos antigos deixou de existir entre os Wajuru e quando a exogamia foi inaugurada. Depois da saída dos americanos, os Wajuru estavam bastante reduzidos, contavam com poucos homens, acompanhados de suas mulheres (algumas de grupos indígenas distintos) e filhos. A entrada nos seringais foi marcada pela dispersão das famílias, guiada em parte pelas relações de afinidade com pessoas de outros grupos indígenas que, por sua vez, já mantinham relações com seringueiros da região. Os grupos locais eram formados por um homem wajuru, sua esposa e filhos, que se inseriam em grupos previamente formados por seringueiros. As mudanças de assentamentos, sempre constantes, eram marcadas principalmente pela morte de um parente, normalmente um filho, mesmo que ainda criança. Tais assentamentos se mantinham todo o tempo em comunicação, principalmente por meio das festas de chicha.

As pessoas para quem os Wajuru trabalhavam - na exploração da seringa, na abertura de estradas, na exploração da poalha (espécie de raiz com propriedades medicinais, vendida pelos seringalistas para os laboratórios farmacêuticos) e na caça de jacarés - foram se tornando sistematicamente parentes por meio do parentesco consanguíneo, do compadrio ou do casamento com jovens wajuru. Mas somente aqueles que detinham o domínio de um certo território (especialmente de colocações, áreas do seringal onde a borracha era produzida) foram assimilados como parentes consanguíneos. A relação patrão-pai estabelecida pelos Wajuru com uma multiplicidade de brancos seringalistas obedece principalmente ao idioma do cuidado e do provimento: é recorrentemente realçado o fato deles receberem roupas e objetos ocidentais, bem como serem auxiliados nos transportes para outros locais mais longínquos, em especial no caso de doenças e mortes.

Quando “entravam” nos seringais ou quando já estavam no meio dos brancos, as famílias wajuru ficavam nas colocações, circulando pelas áreas de interflúvios. Essas movimentações, no entanto, não fizeram com que o Igarapé Preto deixasse de ser um centro de referência para os índios. Relatos de acontecimentos importantes no caminho entre a maloca e a Terra Indígena, como nascimentos, casamentos ou mortes, fazem sempre referência a esse local.

O centro de produção da seringa na região foram os seringais de Rivoredo no rio Branco, mas os Wajuru permaneceram na periferia desse sistema e multiplicaram o número de patrões. O único a trabalhar para Rivoredo foi Pororoca Wajuru, justamente por sua relação de afinidade com os Djeromitxí. Por esse motivo, Pororoca chegou antes que seus parentes wajuru no Posto Ricardo Franco.

Muitas mulheres wajuru, que eram solteiras antes da ida de seus pais à TI Rio Guaporé na década de 1980, casaram-se com seringueiros brancos, e os assentamentos onde viviam, mesmo considerados lugar dos brancos, podiam agregar um homem wajuru, sua esposa, seus filhos e filhas casadas e os genros seringueiros não-índios.

A entrega de mulheres wajuru, fato já entrevisto nos primeiros anos do seringal Pernambuco, era bastante recorrente nas regiões do rio Terebito e do Serrito, uma importante colocação cujo “dono/cacique”, na década de 1970, era Casimiro Wajuru. O Serrito ficava entre as cabeceiras do Terebito e Porto Rolim de Moura do Guaporé, povoado ribeirinho na beira do rio Mequéns, e era o centro de escoamento da seringa produzida nas colocações ao longo dos rios Mequéns, Colorado e Terebito. Expulsos da região do Serrito no início da década de 1980 por empreiteiras de grande porte, os Wajuru seguiram para o Posto Indígena Ricardo Franco, avisados de que lá estava Pororoca. As filhas já casadas à época permanecem até hoje com seus maridos e filhos em Porto Rolim de Moura do Guaporé.

Apesar dos relatórios do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) registrarem a transferência de 70 índios wajuru, em 1947, para o PI Ricardo Franco, nenhuma das pessoas que hoje vivem na TI Rio Guaporé e arredores se dizem descendentes deste um grupo. Os atuais Wajuru chegaram ao Posto Indígena na década de 1970 e 1980, portanto, muito tempo depois. Além disso, entendem essa mudança não como uma transferência compulsória, mas como um empreendimento do grupo: a busca por um lugar bom para se viver.

 Aldeias

A Terra Indígena Rio Guaporé é composta pela aldeia do Posto Ricardo Franco ou mais simplesmente “Posto”, pela Baía da Coca, Baía das Onças, Baía Rica e pelos locais “Mata Verde” e o “Bairro”. A aldeia Ricardo Franco compreende o Posto Indígena, a escola, a enfermaria. Há nas suas cercanias muitas casas chefiadas por homens de diversos grupos étnicos, e mais distante, alguns sítios, locais de assentamento de famílias extensas ou jovens casais. É na aldeia Ricardo Franco que estão as casas de homens wajuru e suas famílias. É ali também que se encontram pessoas que vêm das outras povoações da TI, índios de outras localidades, principalmente de Sagarana, além de representantes da Funai, Cimi, entre outras organizações indigenistas. Na Baía da Coca vivem famílias chefiadas por homens makurap e tupari. A Baía das Onças é reconhecidamente território djeromitxí, bem como a Baía Rica, onde vive somente uma família extensa. O “Bairro” e a “Mata Verde” estão situados entre o Posto e a Baía da Coca, assim como a Baía Rica se localiza entre o “Posto” e a Baía das Onças. O “Bairro” é local de moradia de uma família extensa tupari e a “Mata Verde” é uma área makurap. Ao longo dos caminhos de ligação entre os assentamentos mais densos existem numerosos sítios.

Hoje, as moradias próximas ao “Posto” acompanham o padrão regional: as casas dispõem normalmente dois quartos e uma cozinha. São construídas de madeira, têm o telhado de amianto e o chão batido, quando não são assoalhadas. Entretanto, mesmo no “Posto”, nem todas as casas são construídas dessa maneira, e podem ser de pau-a-pique com o telhado coberto de palha.

Nas proximidades do Posto Indígena todas as casas possuem energia elétrica, mas essa não é uma realidade para as casas mais afastadas e nem para as moradias das outras aldeias. O principal aparelho eletrodoméstico é, sem duvida, o congelador e é encontrado em quase todas as casas. A televisão é um artigo mais raro e as poucas casas que a possuem tornam-se local de encontro durante a noite.

Cada casa tem o seu terreiro e é ele que delimita o espaço de convivência da família - marca uma descontinuidade entre o mato que cresce ao redor e a casa. As mulheres e suas filhas procuram limpar o terreiro todos os dias, deixando visível o contraste entre o mato e o terreiro. Não existe um pátio central ou um local de convivência de todos da aldeia. A cozinha é como se fosse uma extensão do terreiro, é ali que se recebe os visitantes. No terreiro ficam as criações (galinhas, patos e porcos) e cachorros que ajudam a caçar. Uma casa, porém, só é realmente autônoma se tiver um pilão para moer macaxeira e produzir chicha, atividade exclusivamente feminina. Aquelas que possuem um pilão tornam-se local de encontro das mulheres que vivem nas casas mais próximas.

As casas estão dispostas em fileiras que acompanham o curso do rio desde sua margem e são bastante próximas umas das outras. Essa proximidade é maior entre casas de uma mesma fileira, do que entre casas de fileiras diferentes. Essas fileiras, dispostas num eixo horizontal, possuem também caminhos horizontais. Estes são mais largos e é por ali que as pessoas passam para ir até as instalações do Posto ou para ir beber chicha na casa de algum conhecido. Transitar por ali é uma forma de tornar visível um deslocamento. Entre as fileiras de casas, existem os caminhos que levam até o rio, a mata e a roça e que as pessoas também utilizam para fazer visitas. São caminhos mais privados, pois passam por dentro dos terreiros das casas. Nesse caso, somente se anda por esses caminhos quando há uma relação de parentesco próxima com os seus moradores.

A maioria das mulheres, depois do casamento, acaba se dispersando no território e pode muitas vezes se mudar para longe de onde vivera até então. Os homens, ao contrário, permanecem quase sempre no mesmo local. Quando decidem mudar, raramente se deslocam para áreas distantes de onde viveram com seus pais, ou vão para o lugar que foi aberto por seu pai. Casar uma filha é ter mais um lugar para ir tomar chicha, e os assentamentos também podem ser descritos a partir das relações entre aqueles que mais tomam chicha juntos. Os Wajuru dizem que os caminhos estão limpos quando as chichadas oferecidas pelas casas próximas são frequentes, e que estão cerrados quando o intervalo entre estas aumenta.

As casas abrigam normalmente uma família nuclear ou um homem, sua esposa, as filhas não casadas e os filhos recém-casados. No “Posto”, as casas, na maioria das vezes, reúnem um homem de uma etnia e uma mulher de outra. É ali que a exogamia [casamentos entre pessoas de etnias diferentes] torna-se mais visível, onde estão, na expressão nativa, misturados. Apesar desta “mistura”, pode-se perceber a contiguidade entre as casas dos homens wajuru (e também de outros grupos, como Kanoê, Djeromitxí e Makurap), tornando visível uma forma de organizar o espaço que se baseia nas relações de famílias extensas. Tal organização delimita os espaços de convivência cotidiana, que inclui a partilha de alimentos e cuidados, como os aconselhamentos aos mais jovens, a atenção a um parente doente, os carinhos e risadas fraternas.

 Atividades produtivas

A base da alimentação wajuru é a macaxeira, além de peixes e carnes de caça. Também plantam muitas variedades de milho, arroz, feijão, cará, amendoim e abacaxi. As casas que possuem renda extra, como bolsa família e aposentadoria, também contam com produtos industrializados para sua alimentação. O café, o açúcar, o sal e o óleo, por exemplo, são produtos indispensáveis em qualquer casa, assim como o sabão.

As roças são distantes das casas, mas sua disposição segue o padrão de distribuição daquelas: as roças de irmãos são contíguas umas às outras. Frequentemente o marido e a esposa vão juntos às roças e às chichadas, e o casal pode ser visto como a principal unidade produtiva devido a sua estreita colaboração nas atividades diárias [a esposa produz a chicha e o marido caça e pesca]. Antes do casamento, o rapaz passa a cultivar sua própria roça, separada da roça de seu pai, mas que será não raramente contígua a esta.  Depois, a roça é entendida como um espaço do casal e assim, a esposa começa a se ocupar dele e se apropriar de seus produtos.

Mulheres e meninas são responsáveis pela limpeza da casa e pelo abastecimento de água e lenha, além de fazerem a coleta de frutos silvestres. O cultivo da mandioca é uma atividade exclusivamente feminina: enterram manivas, colhem e carregam o produto de suas roças, que são limpos em mutirões. Tecem maricos (bolsas de vários tamanhos feitas de fibras de tucum) e ornamentos, como colares, pulseiras e brincos. As esposas, mesmo quando moram distantes de seus pais, também os visitam, e assim acabam ajudando o seu grupo consangüíneo nos trabalhos da roça. Elas vão com frequência às festas de chicha que acontecem ali, assim como os seus pais vão visitá-las no intuito de beber a chicha que produziram. Assim, é comum os sogros visitarem seus genros, mas o inverso raramente acontece. 

O trançado é uma atividade masculina: fazem os telhados das casas, esteiras e abanos... Os rapazes também talham o banquinho dos pajés (normalmente seu neto) que é de seu uso exclusivo. Os homens limpam a roça, fazem a coivara, abrem clareiras para construir nova moradia, caçam e pescam. As caçadas, realizadas mais com espingardas do que com arco-e-flecha, podem ser em dupla (irmãos, jovens casais ou até mesmo cunhados) e podem levar uma, duas ou três noites seguidas, no máximo. Essas atividades contrastam com as antigas expedições de caça na mata que envolviam grupos bem maiores e duravam mais de duas semanas – práticas ainda realizadas na Baía das Onças. Também são comuns as tocaias, momento em que o caçador vai sozinho até um local, que é concebido como sua espera, em cima de uma árvore, e lá passa a noite de vigília.

A mata tem muitos donos: sejam os espíritos, os donos dos animais, sempre perigosos, seja o seu principal predador, a onça. A atividade de caça é concebida como um roubo. Os Wajuru dizem que os caçadores roubam a caça da onça. Existem, no entanto, regras de etiqueta para esse roubo. Em primeiro lugar, existem territórios que são utilizados por certos caçadores e não por outros. Em segundo, o produto da caçada não pode exceder a quantidade necessária para alimentar os parentes mais próximos, pois deixar estragar carne (e peixe também) é uma conduta amplamente condenada. Por último, a saída para uma caçada é marcada pelo silêncio, os caçadores não dizem nada sobre a atividade que estão prestes a realizar, mas as mulheres já o sabem. Tal silêncio se estende até a volta, quando o alimento começa a ser preparado. Também não se nota narrações ou maiores descrições sobre a caçada e os momentos no interior da mata ou no rio. Quem retorna da roça (homens ou mulheres), da caçada ou da pescaria (homens) segue direto a sua casa, sem falar com ninguém e o mesmo se dá na ida. O retorno da mata, no caso dos homens, é acompanhado invariavelmente de um banho no rio ou no igarapé.

A caça é uma atividade realizada principalmente por jovens sem filhos ou com filhos pequenos. Estes, à medida que vão crescendo começam a caçar no lugar de seu pai que, por sua vez, passa a ter mais tempo para participar das chichadas. Mesmo sendo os jovens, os principais caçadores da família extensa, seu produto é das mulheres. São as avós que “chefiam” as casas e que distribuem a carne às outras casas aparentadas.

A relação sogra/nora é em grande parte mediada pela distribuição da caça e dos produtos da pescaria, cuja contraparte é o trabalho na produção da bebida fermentada. Como é a chefe de família que orienta a produção da chicha, realizada no âmbito da casa, é por meio do trabalho reiterado da nora que esta pode alcançar uma certa independência em relação a sua sogra, tornando-se chefe de sua própria casa. Além disso, no contexto de produção da chicha, a irmã do esposo e a esposa do irmão desempenham um papel semelhante do ponto de vista da relação mãe/sogra. Elas fornecem igualmente sua força de trabalho, inclusive com as mesmas atribuições na produção, sendo as principais colaboradoras entre si.

Todas essas atividades - roça, caça e pesca (no caso dos homens) e roça, trabalhos domésticos, cozimento de alimentos e produção de chicha (no caso das mulheres) - são concebidas como trabalho.

 Concepção, sangue e patrifiliação

Os Wajuru não concebem o ato sexual como o único meio de uma mulher engravidar. Pelo contrário, são igualmente imputadas aos xamãs capacidades de inseminação, associadas, na maior parte das vezes, ao componente anímico da pessoa. Conta-se que os xamãs trazem as almas do céu e as colocam dentro da barriga das mulheres. De outro lado, pode-se manipular a capacidade reprodutiva feminina, seja favorecendo a gravidez, seja evitando-a por meio do uso de remédios do mato.

Também vigora uma teoria da gestação que supõe não ser o útero feminino capaz, por si só, de gerar adequadamente um bebê. Afirmam que a atividade masculina é imprescindível nesse sentido. Durante a gestação, a mulher recebe o sangue do marido, que é inserido durante repetidas relações sexuais. Caso isso não aconteça, o corpo do bebê correrá sérios riscos a sua saúde e integridade. Além disso, as atitudes da mãe durante a gravidez podem influenciar na constituição do bebê, sendo responsável muitas vezes por alguma característica física ou social que o acompanhará durante toda vida.

Depois do nascimento, a mãe e o pai devem respeitar alguns resguardos a fim de evitar que o recém-nascido fique exposto aos perigos do mundo dos espíritos, principalmente ao roubo da alma. O corpo do bebê é mole, mas à medida que os pais vão alimentando-o e observando seus resguardos, este vai endurecendo. O processo é visto como o declínio das relações com o plano virtual, quando o bebê encontra-se protegido contra os assédios dos espíritos, donos dos animais de caça. É preciso dizer, no entanto, que tais perigos podem irromper a qualquer momento ao longo de sua vida.

Os resguardos que incidem sobre a constituição do corpo da criança variam de acordo com o gênero: cabe às mulheres as restrições alimentares (visto que são elas que amamentam seus filhos) e aos homens, restrições sobre suas atividades de caça. Evita-se, no caso das mulheres, a ingestão de algumas carnes de caça, aves e peixes de couro (que só podem ser ingeridas após um ritual xamânico de cura), e, no caso dos homens, evita-se a morte de algum animal predador. No intuito de proteger a vida do bebê, o casal não tem relações sexuais durante cerca de um mês, até que a mulher produza sua primeira chicha depois do parto, a chicha-lava-mãos. Esse momento é visto como o fim do escoamento de sangue entre a  mãe e o bebê: a chicha “lava” as mãos do bebê, quando já saiu o sangue. Aqueles com filhos recém-nascidos, apesar de permanecerem nas festas regadas a chicha, não dançam.

Existe a noção de que o sangue é signo das relações de substância/parentesco e que é próprio da reprodução feminina engendrar um caráter descontínuo nestas relações. É por isso que os Wajuru dizem que cabe às mulheres aumentar os parentes e/ou o sangue dos outros, visto que seu filho não pertencerá ao mesmo grupo étnico que o seu. Em sentido inverso, a reprodução masculina é responsável pelo caráter contínuo das conexões de sangue. Diz-se que os filhos são decididos pelo pai, pois quem tem filho é o pai. A patrifiliação é assim em grande parte mediada pelas conexões de sangue entre o pai e seus filhos, o que dizem ser atestado pelo fato de que desde a gestação a criança já traz as características físicas do pai.

Deve-se observar que a reprodução de um grupo de substância/sangue em linha masculina pode, em alguns casos, prescindir da convivência entre filhos e seu genitor. Nesse caso, os filhos estendem sua rede de parentesco a partir de seu pai adotivo, aqueles no poder do qual são criados. Mesmos assim, um indivíduo ainda é referido como pertencente ao grupo étnico de seu genitor e deve levar em consideração tais redes de parentesco.

No caso dos Wajuru, o recorte étnico prescinde de ampla profundidade temporal e não se estabelece em função de relações de descendência entre ancestrais míticos e humanos atuais. Nas narrativas wajuru sobre os irmãos demiurgos descobridores, não há referência ao surgimento de descendentes ou à consolidação de um grupo de parentes. Não há portanto uma trajetória comum ao grupo que remonte a sua origem. Os “povos” wajuru estão organizados a partir de uma antiga territorialidade e de modos de vida a ela associados e o alcance da memória genealógica é de pouca profundidade.

Na organização social wajuru, o recrutamento étnico baseia-se na noção de patrifiliação. Essa concepção fornece o idioma das uniões matrimoniais preferenciais para fora do grupo étnico.

 Casamento e amizade

Os casamentos podem ocorrer quando uma filha é entregue ao grupo doméstico de seu futuro esposo, ou quando há rapto e fuga dos jovens casais. Não há nenhuma cerimônia formal que delimite o novo status dos parceiros, não obstante é necessário que a menina tão logo entre em seu novo grupo doméstico produza ali sua primeira chicha. É nesse momento que os homens dos dois grupos se encontrarão para beber juntos. Além disto, existe uma clara disposição para que os meninos não se casem muito novos, quando ainda não estão formados – isto é, quando não possuem os conhecimentos necessários para as atividades de caça e agrícolas.

Nos tempos atuais, em que a mistura é destacada, a identidade étnica, transmitida por linha paterna, estabelece a distância necessária para a realização de trocas de mulheres. Os parentes do lado paterno são considerados parentes próprios e os parentes em linha materna são considerados parentes outros. É com esses parentes outros que o casamento preferencial deve se realizar. Essa divisão no campo do parentesco, entre próprios e outros, pode ser modificada de acordo com outras formas de calcular a distância, caso se considere a possibilidade do casamento entre parentes do lado paterno. Ainda que o casamento entre um homem e uma mulher wajuru seja logicamente possível, ele de fato não ocorre. O casamento que pode preferencialmente ocorrer é aquele entre filhos de primos (com distância de uma ou mais gerações), desde que haja, anteriormente, um casamento exogâmico (entre um homem e uma mulher de etnias diferentes).

Existe uma categoria prescrita para cônjuges, estes são chamados oguaikup, em Wajuru, ou virá em Djeromitxí, que é o termo mais usado entre os Wajuru. Tais categorias marcam, de um lado, a preferência para o casamento e, de outro, a amizade formal entre pessoas do mesmo gênero. Por isso os virás são chamados também de amigos/companheiros. Embora o casamento “preferido” seja aquele com uma geração de distância, alguns casamentos ocorrem com um maior alargamento geracional.

O modo de relação entre virás/companheiros de mesmo gênero, que é mais comum entre os homens, oscila entre a brincadeira extrema e o respeito e proteção mútuos. As atitudes dos virás, ao mesmo tempo que formalizam posições, expressam a informalidade que pode haver entre aqueles que são muito próximos. Do ponto de vista dos Wajuru, os virás brincam tanto um com outro que deixam de agir como parentes, pois estes se relacionam de forma contida e extremamente respeitosa. Virás podem se apoderar de objetos um do outro sem problemas, assim como é permitido a um virá defender o outro de ameaças até as últimas consequências. Na infância, convivem intensamente, caçam, pescam, comem, nadam e brincam juntos. Depois de casados, ajudam-se mutuamente nos trabalhos de roçado e estão sempre presentes nas chichadas que organizam.

Os casamentos entre virás que não aconteceram podem com isso transformar os cônjuges de mesmo gênero de ambos os casais em companheiros, o que inclui, caso morem próximos, a ajuda mútua e a companhia nas atividades diárias. Ao mesmo tempo, os casamentos que ocorreram cancelam as atitudes virás, de brincadeira e extrema proximidade, entre cunhados efetivos. Neste sentido, as posições virá aparecem mais como uma potencialidade, indicando suas diversas possibilidades de efetivação.

 As chichadas

As chichadas, festas regadas a bebida fermentada, condensam as principais relações e acontecimentos da vida aldeã e cosmológica dos Wajuru e ocorrem muito frequentemente, de duas a três vezes por semana, reunindo pessoas dos mais diversos grupos étnicos. A chicha, tuerô na língua Wajuru, ou tuerô jati, “chicha braba, azeda, fermentada”, é feita na maioria das vezes com macaxeira, mas conta-se que no passado costumavam fazer muita chicha de milho, cará ou amendoim. A bebida com esses ingredientes tem, em algumas casas, um valor especial: são chichas que remetem ao passado na maloca. Seu consumo é muito mais doméstico do que a chicha de macaxeira, que é consumida em grandes reuniões, por todas as pessoas, desde crianças muito pequenas até os mais velhos.

Chicha Wajuru, ou tuerô jati, “chicha braba, azeda (fermentada)Chichada. Aldeia Ricardo Franco, Terra Indígena Rio Guaporé. Foto: Nicole Soares Pinto, 2008

A macaxeira é concebida como fruto de uma série de transformações a partir do corpo de um ser mitológico. É nesse sentido que plantar maniva pode ser traduzido como enterrar gente. A chicha, para os Wajuru, guarda um mistério. A masca produzida pelas mulheres faz a macaxeira ficar mole, e o único interdito para essa atividade é quando estas se encontram menstruadas, pois caso alguém consuma a chicha corre o risco de ficar panema [a pessoa fica sem força e com má sorte na caça]. Por sua vez, a fermentação é realizada no interior do cocho (recipiente de madeira talhada suspenso sobre forquilhas), associado muitas vezes ao corpo de uma jibóia. Por outro lado, a produção e consumo da bebida são atributos de outros seres que não apresentam forma humana para aqueles que não possuem a visão xamânica (os xamãs usam tabaco e o rapé para alcançar essa visão). Estas características são, para os Wajuru, atestado de sua humanidade: dizem os pajés, que no céu ou dentro d’água, tudinho é gente! Lá tem tudo igualzinho como aqui: roça, maloca e chicha.

O processo de fermentação da chicha é o índice de seu alcance na comunidade: quanto mais braba/azeda for a chicha, mais pessoas se reunirão ao seu redor, e quanto mais doce/mansa, mais doméstico será seu consumo. O ideal é que toda chicha se torne azeda, ou seja, embriagante, e as mulheres trabalham intensamente para que isso aconteça. Produzida no âmbito das casas, a chicha é consumida coletivamente em duas ocasiões: como pagamento de um trabalho coletivo realizado em benefício de um grupo doméstico (abertura, coivara, plantação ou limpeza de roças, caminhos e terreiros, colocação do telhado), ou como dádiva em festas: aniversários dos mais jovens, casamentos, datas comemorativas (Natal, Ano Novo etc.). Nas festas comemorativas não pode faltar a dança (ao som de forró e músicas makurap cantadas pelos velhos), mas nas chichadas de trabalho coletivo essa relação não é direta. Em ambos os casos, ninguém comparece se o dono da chicha não convida para a festa em sua casa, e aos convidados é oferecido alimento pelo grupo organizador do trabalho ou da festa.

Há uma troca constante dos papéis de organizador/trabalhador e produtor/consumidor, e nesta, a chicha surge como uma espécie de dádiva por meio da qual as pessoas se comunicam e se encontram, mas sempre ocupando uma posição diferente. Nesta circulação da função de organizador, fica claro que são os homens mais velhos que melhor desempenham essa função catalisadora da vida social. Suas filhas solteiras auxiliam sua esposa na preparação da bebida, e genros ou filhos ajudam na construção de casas, na troca dos telhados, na abertura e cuidados com a roça etc. Mas o mais importante é que haja um cocho de chicha cheio, pois este tem o poder de reunir muitas pessoas no trabalho.

As metáforas sexuais estão sempre presentes nas chichadas e a brincadeira (entre conversas e danças) é o modo relacional nestas ocasiões, seja porque é ali que os virás/oguaikup (companheiros) têm a oportunidade de expressar sua proximidade, seja porque as atitudes entre certos parentes encontram nesse contexto uma espécie de relaxamento, principalmente entre parentes de gênero oposto.

Os homens costumam se apoiar em outras relações de parentesco, aquelas estabelecidas por intermédio de suas ascendentes femininas. Assim, irão chamar para beber junto seus manos, forma de tratamento utilizada, sobretudo, entre aqueles que são considerados irmãos de grupos étnicos distintos. Da mesma maneira, a fraca presença das relações de afinidade que marca a socialidade doméstica, sob o ponto de vista masculino, encontra nas chichadas sua contraparte. Ali os homens da casa se relacionam intensa e publicamente com seus afins de mesmo gênero.  Nas chichadas, cabe às mulheres suavizar as relações entre os homens, já que são elas que os colocam em comunicação. As mulheres, por sua vez, encontram nessas ocasiões seus parentes próprios e têm a oportunidade de brincar e beber junto a eles.

 Notas sobre as fontes

Em 1948, Claude Lévi-Strauss advertia ser a história dos povos indígenas da margem direita do médio rio Guaporé uma das menos conhecidas no Brasil. Não obstante, muito tempo depois da publicação do Handbook of South American Indians (1948), na qual o autor foi o responsável pela breve caracterização da área (“Tribes of the right bank of the Guaporé River”), e dos inúmeros trabalhos de Franz Caspar publicados originalmente na década de 1950 sobre os Tupari, pouquíssimo se falou dessa região.

Há, no entanto, exceções como o trabalho de Denise Maldi (1991) sobre o “Complexo do Marico”. Esse importante texto, encomendado pelo Museu Goeldi, é fruto do trabalho de campo da pesquisadora, no qual traça um panorama mais amplo, enfatizando os elementos culturais comum desses povos e desenha um complexo intercultural. Por seu turno, os trabalhos de Betty Mindlin (1995, 1997 e 2001), de compilação das narrativas míticas, parece ser o único que voltou seu olhar mais recentemente para esses povos. Além disso, a autora também realizou um trabalho que enfocou a mitologia tupari (Mindlin, 1993).

No ínterim entre os trabalhos de Caspar, de um lado, e Maldi e Mindlin, de outro, foram publicados dois importantes documentos. Um, refere-se à breve compilação de informações e fontes realizada por Price (1981) no bojo das reações ao Projeto Polonoroeste que atingiria populações indígenas no estado de Rondônia. O outro é o relatório de ampliação da Terra Indígena Rio Guaporé, feito sob coordenação da antropóloga Maria Auxiliadora de Sá Leão (Funai, 1985), no qual encontram-se informações valiosas sobre a atuação do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) na região e os modos de organização social desses povos no contexto de transformação de suas relações na área do Posto Indígena Ricardo Franco, posteriormente transformada em TI Rio Guaporé.

Em 2009, Nicole Soares Pinto defendeu uma dissertação de mestrado no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná, cujo título é Do poder do sangue e da chicha: os Wajuru do Guaporé (Rondônia). Esse trabalho foi um esforço etnográfico de aproximação à dinâmica social wajuru, principalmente no que diz respeito ao parentesco e organização social.

 Fontes de informação

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CASPAR, Franz. 1953a. Tupari: entre os índios, nas florestas brasileiras. São Paulo: Melhoramentos.
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FUNAI .1985. Relatório Antropológico de demarcação da Terra Indígena Rio Guaporé (coordenação de Maria Auxiliadora de Sá Leão).
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MALDI, Denise . 1991. “O complexo cultural do marico: sociedades indígenas do rio Branco, Colorado e Mequens, afluentes do médio Guaporé”. In: Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (Antropologia). vol. 7, nº 2, pp. 209-269.
MINDLIN, Betty. 1993. Tuparis e tarupás — Narrativas dos índios Tuparis de Rondônia. São Paulo: Brasiliense/Edusp/Iamá (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente).
----------------------1995. Antologia de mitos dos povos Ajuru, Arara, Arikapu, Aruá, Kanoe, Jabuti e Makurap. São Paulo: Iamá, 67 p
---------------------e narradores indígenas. 1997. Moqueca de maridos: mitos eróticos. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos.
---------------------2001. Terra grávida. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos.
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SNETHLAGE,  Emil H. 1935. Indianer kulturen aus dem grenzgebiet Bolivien - Brasilien. Ergebnisse der forschungsreise 1933 - 1934. Führer durch Ausstellung im staatlichen Museum for volkerkunde, Berlin vom 15August bis 15. november 1935. Berlim. 
SOARES-PINTO, Nicole. 2009. Do poder do sangue e da chicha: os Wajuru do Guaporé (Rondônia). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná.
WAWZYNIAK, João Valentin. 2000. Do Barracão à Casa: Uma etnografia das transformações nas formas de apropriação, gestão e transmissão dos recursos naturais por seringueiros do rio Ouro Preto – RO. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná.