sábado, 9 de abril de 2016

Taurepang

Toy Art Taurepang

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
189TaurepangTaulipang, Taurepangue, Taulipangue, PemonKarib
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
RR673Funasa 2010
Venezuela27157INE 2001



É na savana venezuelana onde encontra-se a maioria dos Taurepang. Os que habitam o lado brasileiro da fronteira com a Venezuela e a Guiana Inglesa estão em aldeias nas Terras Indígenas São Marcos e Raposa Serra do Sol, nas quais também habitam outras etnias. Desde as primeiras décadas do século XX, foram acossados pela expansão da pecuária no lavrado de Roraima. A presença não-indígena em suas terras intensificou-se com a construção da BR-174, na década de 1970, cortando a TI São Marcos. Em 2001, uma linha de transmissão de energia foi ainda implantada ao longo dessa rodovia. Em contrapartida, conseguiram a saída dos fazendeiros, mas vivem o impasse de ter a sede de um município no interior da TI.

 Nome e língua

Os Taurepang se auto-designam Pemon, termo que significa “povo” ou “gente”. Pouco conhecido no Brasil, este etnônimo é empregado com uma freqüência muito maior na Venezuela, onde designa uma grande população indígena de língua Karib. A. B. Colson (1986:74) afirma existir na região fronteiriça entre Venezuela, Brasil e Guiana duas grandes unidades étnicas: os Pemon e os Kapon, sendo a primeira auto-designação dos Arekuna, Kamarakoto, Taurepang e Macuxi, e a segunda dos Ingariko e Patamona.

O nome do estado, Roraima, vem de Roro-imã, roro – ou também rora – significa grande verde azulado na língua indígena Pemon (Taurepang), e imã significa serra, monte, formando portanto, a palavra “serra verde“, que reflete a paisagem natural da região específica.

Muitas vezes estes termos são empregados simultaneamente, marcando diferentes níveis de contraste, de modo que, sob pontos de vista diferentes, um mesmo grupo poderá ser designado como Taurepang ou Arekuna. Este último parece ter uma amplitude maior, sendo freqüentemente aplicado a todos os grupos que habitam a savana venezuelana.

Vários autores afirmam que os índios desconhecem o significado do termo taurepang, tampouco obtive dos meus informantes explicação alguma a esse respeito. Contudo, o Frade Cesáreo de Armellada (1964:7), missionário franciscano que trabalha com os Taurepang na Venezuela desde a década de 1940, propõe que Taurepang seja um nome composto de tauron, “falar”, e pung, “errado”, indicando que os Taurepang seriam “aqueles que falam a língua Pemon incorretamente”, constituindo uma designação pejorativa atribuída por seus vizinhos.

 Localização e população

Em território brasileiro, os Taurepang localizam-se na porção norte da região de campos e serras do estado de Roraima, área fronteiriça entre Brasil, Venezuela e Guiana, tendo como vizinhos os Makuxi e Akawaio (no Brasil mais conhecidos como Ingarikó), de filiação lingüística Karíb, e os Wapixana, de filiação lingüística Aruák.
Território Taurepang

Na Venezuela, o grupo – aí designado Pemon – ocupa a chamada Gran Sabana, correspondente à porção sudeste do estado Bolívar. O território pemon compreende a parte superior da bacia do rio Caroni, englobando os seguintes afluentes: Carrão, Uriman, Tirika, Icabaru, Karuai, Aponguao e Surukun. Nas cabeceiras do rio Caroni (nesta altura conhecido por Kukenã), as aldeias pemon distribuem-se ao longo dos rios Uairen, Arabopo e Yuruani.

No Brasil, além da existência de uma aldeia na Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, há aldeias taurepang estão no interior da TI São Marcos. Representa uma faixa de terras com uma extensão total de 654.110 hectares limitada à oeste pelo rio Parimé e à leste pelos rios Surumu e Miang; no sentido norte-sul, inicia-se a partir da junção dos rios Tacutu e Uraricoera, onde se forma o rio Branco, estendendo-se até a fronteira Brasil/Venezuela.

Nas aldeias situadas nos limites da TI São Marcos habitam três dos quatro atuais grupos indígenas que vivem na região do lavrado de Roraima: à exceção dos Ingarikó (localizados na fronteira com a República da Guiana), a população indígena na TI é formada pelas etnias Taurepang, Makuxi e Wapixana.

A TI São Marcos é cortada por uma rodovia federal asfaltada, a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista e essa cidade até a fronteira da Venezuela, ponto em que se localiza a sede do município de Pacaraima, criado pelo estado de Roraima no interior da TI, com uma população majoritariamente não-indígena que em 1998 se aproximava de 2.000 pessoas. Ao longo da BR, estão implantadas torres metálicas e fios de alta tensão para transmissão de energia do complexo de Guri, na Venezuela, à Boa Vista.

O setor norte da TI, onde se concentra a população taurepang, é justamente a área de influência da BR-174, do linhão de Guri e da sede do município de Pacaraima, configurando um corredor de passagem entre Boa Vista e Santa Elena, na Venezuela.

Aldeias

Na distribuição das aldeias, a população wapixana está concentrada majoritariamente na porção sul e central da Terra Indígena, e a população Taurepang exclusivamente na porção norte. Os Makuxi, representavam, em 2004, mais de 60% de toda a população, encontrando-se dispersos por toda área. Há um índice de intercasamentos Makuxi/Wapixana muito alto, seguido por um conjunto bem menor de intercasamentos Makuxi/Taurepang. As uniões Wapixana/Taurepang são raríssimas, certamente não por outro motivo além de seu afastamento geográfico.

Durante a década 1988-98, de norte a sul, surgiram nove novas aldeias em São Marcos, denotando a mobilidade e dispersão característica da territorialidade desses grupos, bem como um significativo crescimento demográfico.

 História

Arekuna ou Jarekuna eram os etnônimos pelos quais os Taurepang eram referidos por aqueles que deixaram registros escritos ao longo do século XIX. Ocupavam uma região partilhada por diferentes interesses coloniais e estavam dispersos em diferentes nações. Do rio Amajari, na bacia do Rio Branco, então Império do Brasil, ao Monte Roraima, ponto para onde confluíam as fronteiras entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa e divisor de águas das bacias do Amazonas, Orinoco e Essequibo. Passando pela cordilheira da Pacairama, ocupavam ainda parte da savana venezuelana.

Dada sua localização eminentemente fronteiriça, a história do contato taurepang até os dias de hoje vem sendo marcada pelo avanço de distintas frentes de expansão. Uma primeira fase do contato dos povos indígenas da bacia do rio Branco inicia-se no final do século XVIII com o estabelecimento de aldeamentos indígenas na região pelo governo colonial português, empreendimento que se encerra logo, em 1790, com a eclosão de uma grande revolta entre a população indígena aldeada. No ano de 1787, já pronunciado o fracasso dos aldeamentos, o governador da Capitania de São José do Rio Negro introduz as primeiras cabeças de gado na região como estratégia alternativa para a colonização, uma vez que os campos do alto rio Branco, na perspectiva dos portugueses, apresentavam características particularmente favoráveis para a introdução do gado por constituírem pastagens naturais. Criava-se então a Fazenda do Rei. Duas outras fazendas seriam instaladas em momento posterior, cuja data é imprecisa (inicialmente estas eram de propriedade particular e depois passaram ao domínio do Estado).

A disputa de fronteiras com a Guiana Inglesa, a partir da década de 1840, despertaria a atenção do Estado brasileiro para a região do rio Branco, em particular quanto a questão das fazendas nacionais. Os limites de uma dessas fazendas, a chamada Fazenda Nacional de São Marcos, coincidem precisamente com os limites da atual Terra Indígena São Marcos, cuja área, somada às das outras duas fazendas, perfaziam a quase totalidade dos campos do alto rio Branco. Não consistiam então em terras devolutas, mas grandes latifúndios de propriedade da União, cujo interesse concentrava-se no fato de estarem localizadas em uma fronteira em litígio.

Não se verifica a fixação de colonos civis na região até a década de 1880, quando a pecuária se consolida, impulsionada por levas migratórias provocadas pelas secas do Nordeste. No curto período de 1877 a 1885 o número de cabeças de gado teria triplicado, atingindo a cifra de 20 mil, assim como se multiplicaram as fazendas particulares à margem direita do rio Branco e no rio Uraricoera, em detrimento das Fazendas Nacionais: o regime de pecuária extensiva adotado na região – onde o gado era criado solto e as fazendas não possuíam cercas, facilitando o roubo de gado de propriedade do Estado – prestou-se à formação de inúmeros rebanhos particulares (Koch-Grunberg, 1924).

Os Jarecuna (ou Taurepang) foram extremamente afetados pelo avanço da pecuária, fornecendo, assim como seus vizinhos Macuxi e Wapixana, a mão-de-obra necessária ao trabalho nas fazendas. Assim, a mão-de-obra indígena constituiria elemento de fundamental importância na consolidação da ocupação pecuarista na região, pois, além de prestar-se ao manejo do rebanho, fornecendo vaqueiros para as fazendas, eram os índios que remavam os batelões que faziam a comunicação dos campos do alto rio Branco com Manaus (Farage e Santilli, 1992). Tal contexto correspondeu a um primeiro movimento de migração de índios do rio Branco em direção aos países vizinhos, que se intensificou a partir dos anos 1930.

O SPI e a fazenda São Marcos

Nesse quadro, o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, órgão indigenista oficial de 1910 a 1967 – entra em cena, enviando em 1912 um funcionário para a área compreendida entre os rios Maú, Tacutu, Surumu e Cotingo (Zany, 1914a). Registra este funcionário que a principal demanda dos índios à então recém-criada Inspetoria do Rio Branco era a demarcação de suas terras, já extremamente invadidas, principalmente na região do rio Amajari, onde o SPI passa a concentrar sua atuação.

A fazenda S. Marcos fora transferida à responsabilidade do Ministério da Agricultura, ficando a Superintendência da Defesa da Borracha encarregada de sua administração; em 1915, com a extinção desse órgão, é ao SPI que recaem os cuidados sobre a manutenção de S. Marcos. Dentro dos limites da fazenda encontrava-se parte do território taurepang (entre os cursos superiores dos rios Surumu e Amajari), várias aldeias Macuxi (localizadas no médio curso do rio Surumu) e ainda uma parte do território Wapixana (na região da junção dos rios Tacutu e Uaricoera). Foram assim agregadas parcelas reduzidas de três grandes territórios que iam além das fronteiras nacionais.

Com a instalação de um Posto Indígena na sede da fazenda, a ação do SPI estaria agora mais concentrada. Sob a nova administração, a fazenda recebeu várias melhorias e seu rebanho cresceu sensivelmente. Durante o período 1915-1930, várias foram as realizações do SPI na fazenda S. Marcos, entre as quais poderíamos citar: esforços para medição e demarcação da fazenda (1920); atendimento à saúde (combate à epidemia de febre biliosa de 1920); instalação de uma Escola Agrícola Indígena (em 1920 possuía 31 alunos); escola Indígena Teófilo Leal (1924); inúmeros melhoramentos nas benfeitorias e incremento do rebanho (1924); tentativa de reativar linha regular de navegação entre S.Marcos e Manaus (1928).

Agindo dessa maneira, esperava o inspetor do SPI intervir diretamente no regime específico de ocupação territorial próprio aos Taurepang, Wapixana e Macuxi, ocupantes tradicionais das terras de S.Marcos. Dentro dos princípios básicos que guiaram a constituição do SPI, esperava-se treinar e disciplinar sua mão-de-obra, transformando-os em úteis "trabalhadores nacionais" que guardassem aquelas longínquas fronteiras.

A partir dos anos de 1930, porém, há indícios de decadência dos serviços que vinham sendo desenvolvidos pelo SPI. Já no início da década ressurgem denúncias de roubos e desvios do gado existente nos retiros da fazenda S. Marcos e para a década de 40 temos as primeiras notícias de uma nova atividade econômica que passa ser desenvolvida nos campos de São Marcos: o contrabando de mercadorias para a fronteira da Venezuela, onde o governo desse país investia para a implantação da cidade de Santa Elena.

Na década seguinte, o rebanho prosseguia diminuindo e a fazenda ia minguando, conforme um encarregado da Inspetoria do Serviço em Manaus: “submetida a uma verdadeira pilhagem, dela se tendo formado muitas fazendas particulares com milhares de bovinos. Foi assim, este importante patrimônio nacional saqueado e dilapidado, às vistas impotentes, e, sem dúvida, também coniventes, das autoridades” (Lage, 1956). É certo que até 1967, quando é extinto o SPI, esta situação não se alteraria, sendo provável que tenha se deteriorado ainda mais. O Serviço portanto não logrou obter êxito na tentativa de barrar o esbulho das terras de S.Marcos, de maneira que a história do contato dos grupos ali estabelecidos é marcada mais pelo avanço da pecuária que pelo acalentado sonho de criação de colônias agrícolas indígenas. O engajamento da mão-de-obra indígena nas fazendas e o estabelecimento de relações de opressão com pecuaristas vieram a se tornar a tônica da história indígena local. Há diversos episódios, narrados até hoje pelos índios residentes em S. Marcos, de expulsões de aldeias inteiras que haveriam ocorrido no passado por fazendeiros que então formavam suas posses.

A Funai e a BR-174
Em 1969, uma primeira medida administrativa da Funai transforma a fazenda em “Colônia Indígena Agropecuária de São Marcos”. Apesar da introdução da expressão “colônia”, permanecia a fazenda São Marcos sendo de usufruto exclusivo dos grupos indígenas residentes. Porém, nesse momento um novo tipo de invasão já ocorria: era a época de construção de estradas na Amazônia e a BR-174, interligando Manaus a Boa Vista e daí até a fronteira com a Venezuela, já adentrava pela área da fazenda ao cruzar o Rio Parimé, de maneira que se abria um total de 66 Km de estrada dentro da área, atravessando justamente a porção norte, onde terminam os campos e começa a mata, onde as terras são muito mais férteis e onde se concentram os Taurepang.

No final dos anos 1980, havia forte ingerência do Conselho de Segurança Nacional, através do Projeto Calha Norte, sobre a política indigenista oficial. Insinuava-se transformar em colônias as terras habitadas por populações indígenas supostamente aculturadas e assim promover o povoamento das fronteiras do norte do país. Nesse contexto, S. Marcos era certamente a mais forte candidata, uma vez que já carregava essa palavra em seu nome e via crescer a vila de Pacaraima dentro de seus limites, no ponto extremo da BR-174, na fronteira com a Venezuela, bem como a chegada dos novos posseiros que iam se instalando às margens dessa rodovia. Além disso, com nome de Colônia Indígena Agropecuária, S. Marcos, passou pela exclusão de uma parcela de terra de cerca de mil hectares na fronteira para implantação de um pelotão do Exército em 1975, pela demarcação física em 1976 e pelo primeiro levantamento sistemático de ocupantes não-indígenas em 1979 (Processos Funai 434/90 e 2504/79), além do crescimento e acirramento dos conflitos com invasores, advindos sobretudo após a abertura da estrada.

O total de invasões cadastradas em 1979 é de 91; já em 1995 cresce para 106. Como se vê, temos duas frentes distintas de invasões das terras de S. Marcos, uma iniciada já ao final do século XIX e que tomou corpo pelas décadas seguintes com a ocupação dos rios Parimé e Surumu pelas fazendas de gado; a segunda iniciando-se a partir da década de 1970 com abertura da BR-174 e inúmeros posseiros agricultores instalando-se às suas margens. Ou seja, uma primeira pecuarista, fluvial e incidindo nas porções sul e central da área; uma segunda agrícola, rodoviária e incidindo na porção norte. Ambas valendo-se do apoio decidido dos poderes públicos estaduais – no primeiro caso ainda do Amazonas, no segundo já do ex-Território Federal de Roraima (Processo Funai 2504/79).

Entre 95 e 96, o governo de Roraima veio ainda transformar a Vila de Pacaraima em município, aumentando sua infra-estrutura e para lá atraindo novas famílias com a distribuição de lotes urbanos. Nesse período, o Governador de Roraima, Ottomar de Souza Pinto, empenhou-se em legitimar a permanência dos invasores propondo o acordo espúrio de liberar um dos lados da rodovia aos posseiros e o outro para as aldeias indígenas, arranjo este que terminou por ser aceito e perdura até hoje.

O linhão de Guri e a desintrusão da TI
É nesse contexto que se iniciaram as conversas com a Eletronorte (Centrais Elétricas do Norte do Brasil) para a passagem da linha de transmissão de energia de Guri. Em abril de 1997, a Eletronorte foi autorizada pelo governo federal a implantar uma linha de transmissão de energia ligando Boa Vista ao complexo hidrelétrico de Guri, na Venezuela.

Ao iniciar os estudos para a elaboração do projeto básico da linha de transmissão, a Eletronorte constatou a incidência da obra sobre as Terras Indígenas São Marcos e Ponta da Serra, verificando que o traçado mais apropriado seria acompanhar o eixo da rodovia BR-174. Paralelamente aos encaminhamentos relacionados ao licenciamento ambiental da obra, a Eletronorte, através de sua assessoria indigenista, iniciou procedimentos para viabilizar o início do processo de consulta e negociação com as aldeias indígenas.

As negociações para a passagem do linhão iniciaram-se em 1997, e não tardou para que a proposta de indenização das fazendas e desintrusão da TI em troca da autorização para a implantação do empreendimento passassem a ocupar um lugar preponderante na pauta de negociações.

Mesmo apreensivos quanto às conseqüências advindas da construção de uma linha de energia tão próxima de suas aldeias, o pragmatismo demonstrado pelos índios ao aceitar o acordo deve-se à situação em que se encontrava São Marcos: o crescimento demográfico nas aldeias e a permanente chegada de famílias de outras áreas indígenas do lavrado foram apontados como fatores que poderiam acarretar problemas sérios de espaço caso a desintrusão não se efetivasse, com agravante de que a principal perspectiva de desenvolvimento em voga entre as aldeias é o crescimento de seu rebanho de gado.

Fios de alta tensão e torres metálicas de transmissão de energia passaram a fazer parte da paisagem dessas terras, o que não ocorreu sem grandes conflitos e negociações entre os índios atingidos, órgãos federais e poderes locais dos dois países.

A Eletronorte ficou responsável pelo financiamento das indenizações das benfeitorias feitas nas fazendas e por um sistema de vigilância que garantisse a saída dos cerca de 110 posseiros. Os índios ainda conseguiram garantir a recuperação das áreas degradadas pela construção das torres de energia e a indenização por aquelas que não poderiam ser recuperadas dada sua proximidade com a linha; além disso, alguns foram individualmente indenizados por danos a bens particulares.

A desintrusão foi efetivada depois de muitos conflitos judiciais com os posseiros, agravados pelo pouco dinamismo da Funai e pelo sistema judiciário local, que tentou fazer inúmeros acordos com os invasores. Com as negociações iniciadas em 97, o último fazendeiro só deixou a área em abril de 2002.

No território venezuelano, os conflitos em torno da construção da linha foram muito maiores e atrasaram a conclusão da obra em mais de um ano. As torres de transmissão percorrem 80 Km do Parque Nacional de Gran Sabana e da selva de Imataca, no estado de Bolívar, ao sul da Venezuela, onde moram mais de 50 comunidades indígenas. Índios das etnias Pemon, Akawayo, Arawako e Kariña protestaram contra o empreendimento e em diversas ocasiões paralisaram as obras, derrubaram torres, interditaram rodovias e fizeram manifestação na embaixada do Brasil em Caracas. Ao cabo de muitas negociações, em janeiro de 2001 foi firmado um acordo entre a Fibe (Federação Indígena do Estado de Bolívar) e o presidente Hugo Chavez. Foi instituída uma comissão paritária composta por representantes indígenas e do governo para demarcar as áreas indígenas e fazer um levantamento das comunidades prejudicadas pela exploração mineral, florestal e turística na região. O governo venezuelano também se comprometeu a não deixar que projetos industriais públicos e privados sejam instalados nas comunidades sem consultar as lideranças de cada etnia e a criar um fundo permanente de desenvolvimento integral e sustentável para apoiar projetos das comunidades indígenas. Alguns meses depois, em agosto de 2001, o linhão de Guri foi finalmente inaugurado, com a presença dos presidentes do Brasil e da Venezuela.

 Migrações e pregações
Nas primeiras décadas do século XX os Taurepang migraram em grande número em direção à fronteira venezuelana. Embora os funcionários do SPI atribuíssem a evasão dos índios do rio Branco à invasão de suas terras pela pecuária a partir de 1914 [como tratado no item “História”], nota-se, por meio dos relatos dos naturalistas ingleses, que esse movimento foi iniciado já no final do século XIX, quando se tem notícia da emergência de movimentos proféticos entre os povos Karib da área, influenciando a formação de grandes aldeias no lado venezuelano do monte Roraima. Os viajantes que percorreram a região comentam a ocorrência de danças que se prolongavam por toda a noite e a sacralização de papéis impressos (recortes de jornais ingleses) distribuídos pelos profetas e seus seguidores.

Assim, por volta de 1880, algumas aldeias Arekuna, Akawaio, Macuxi e Patamona inflavam-se com novos grupos que afluíam para estes lugares em função das novidades que vinham sendo pregadas por homens cujo prestígio, graças a seu conhecimento adquirido nas missões inglesas, era alardeado por grandes distâncias, alcançando certamente as aldeias taurepang do rio Branco. A multiplicação desses cultos marca emergência de um movimento religioso que passaria a ser conhecido como Aleluia, ou Hallelujah, que, nascido em fins do século XIX entre os Macuxi do rio Rupununi, na Guiana Inglesa, rapidamente se expande entre os Akawaio, Patamona e Taurepang.

Butt (1960) indica que os Taurepang teriam recebido a nova doutrina diretamente dos Macuxi, pela rota que liga os campos do alto rio Branco ao monte Roraima. Ocorre que, neste processo, os caminhos de expansão do Aleluia entre os Taurepang encontram-se com as trajetórias dos primeiros missionários adventistas que atingem as aldeias taurepang do monte Roraima, em território venezuelano, no início do século XX.

Mais precisamente, os adventistas realizaram incursões pela savana venezuelana a fim de evangelizar os Taurepang desde 1911. Neste ano, o pastor O. E. Davis esteve pregando na aldeia de Kawarianaremong (ou Kauarianá), próxima ao monte Roraima; de 1926 a 1931, o pastor A. W. Cott, acompanhado por sua mulher, esteve nas aldeias de Arapobo e Akurimã, onde levantou igrejas e começou a ensinar o idioma inglês aos índios. Ambos chegaram ao território venezuelano vindos da Guiana Inglesa.

O líder Jeremiah e o pastor Davi Pacing

A aldeia de Kauarianá se constituiu durante os últimos anos do século XIX e tinha como líder Jeremiah, que era adepto do Aleluia mas também seguidor dos ensinamentos do pastor O. E. Davis (conhecido pelos índios como Davi Pacing). Figura até hoje marcante na memória de muitos grupos taurepang, a permanência do pastor no monte Roraima foi curta, pois logo veio a falecer. A morte de Davi Pacing ganhou muitas versões. Contam os Taurepang que ele fora vítima de feitiçaria ingarikó (termo atualmente utilizado para os Akawaio, mas empregado pelos Taurepang, de uma maneira geral, para grupos que habitam regiões de mata fechada). Os tais Ingarikó recusavam-se a abandonar a poligamia, opondo-se, assim, aos conselhos do pastor e matando-o com feitiçaria.

As pregações do pastor Davis não tiveram a mesma acolhida em Teuonok, aldeia vizinha a Kauarianá. Em contrapartida, o grupo taurepang de Teuonok foi bastante receptivo à missão católica empreendida pelo padre Cary Elwes. Segundo Koch-Grunberg, a relação entre as duas aldeias caracterizava-se por uma “inimizade aberta”. A rivalidade entre Teuonok e Kauarianá se traduz, assim, por meio das diferentes opções de seus líderes: se em Kauarianá Jeremiah esforçava-se por manter vivos os ensinamentos do pastor adventista, os moradores de Teuonok e seu líder Skurumatá (corruptela de “schoolmaster”, segundos diversos viajantes), davam boas-vindas ao padre católico.

Ambas aldeias eram adeptas da doutrina do Aleluia antes da chegada dos missionários, mas apenas os habitantes de Kauarianá continuaram a praticá-lo depois. Diferentemente dos que adotaram o catolicismo, ao que parece, o Aleluia e os ensinamentos de O. E. Davis, tal como concebidos pelos Taurepang, constituíam doutrinas passíveis de serem conciliadas. Assim, as palavras do pastor teriam sido incorporadas a partir de um ideário milenarista presente na região desde as últimas décadas do século XIX, que veio a conformar o Aleluia.

O pastor Cott e a consolidação do adventismo

Após a morte de O. E. Davis, os Taurepang ficariam aguardando a chegada de um novo pastor, conforme ele havia anunciado. A. W. Cott, no entanto, chegaria de Georgetown ao monte Roraima somente na segunda metade da década de 20, permanecendo até 1931 na aldeia de Akurimã, seu principal centro de ação.

Mesclando-se à mensagem transmitida pelos profetas, os ensinamentos dos missionários foram cativando a atenção de cada vez mais Taurepang. Sob a liderança do tuxaua André, a aldeia de Akurimã chegou a atrair 900 indivíduos. Lá, os índios recusavam-se a trabalhar para as expedições que chegavam para explorar a região, dedicando-se quase que exclusivamente a seguir André nos inúmeros cultos que promovia segundo a orientação do pastor A. W. Cott (Holdridge, 1931).

Nesse período, precisamente no ano de 1927, a Comissão de Inspeção de Fronteiras, comandada pelo General Rondon, chega ao rio Branco. Para realizar o reconhecimento da região, a Comissão é dividida em cinco turmas, encarregadas de percorrer diferentes rios e fronteiras até então pouco conhecidos. Além da turma chefiada pelo próprio Rondon – que atingiu o monte Roraima e buscou, sem sucesso, atrair os Taurepang para terras brasileiras –, uma outra turma, chefiada pelo Tenente Tales Facó, ao cumprir outro itinerário e chegar na aldeia Taurepang de Arabopo, localizada à base do lado venezuelano do monte Roraima, se deparou com uma grande concentração de grupos taurepang provenientes do lado brasileiro. Para surpresa do tenente, encontrava-se estabelecido nesta aldeia o missionário A. W. Cott, figura em torno da qual os índios ali se reuniam. Facó comenta que mais de 200 índios preparavam então a abertura de uma grande roça, com a finalidade expressa de prepararem-se para a iminente chegada de Cristo: esperavam os índios serem guiados a um paraíso celeste preparado por este salvador.

Em 1931, Cott foi expulso pelo governo da Venezuela e a catequese dos índios da “Gran Sabana” ficou a cargo da ordem franciscana, que viria a fundar missões católicas em vários pontos desse território (Salazar, 1978).

Os Taurepang que estiveram ao lado de Cott, segundo vários informantes, apresentaram forte resistência em aceitar a catequese dos franciscanos, de maneira que a aldeia de Akurimã, logo após sua chegada, se desintegrou. A prática de cultos adventistas foi mantida por vários grupos que haviam tido contato com Cott, na tradição oral lembrado como Papacá.

É possível supor, portanto, que as migrações taurepang para a Venezuela constituem um processo que se justifica parcialmente pela ocupação pecuarista do rio Branco, sendo preciso também levar em consideração a emergência de um conjunto articulado de movimentos proféticos entre os povos karib dessa região a partir do final do século XIX, que teria atraído a atenção dos que estavam em lado brasileiro.

 Morfologia social

Entre os Taurepang – assim como entre seus vizinhos Macuxi e Wapixana – observa-se um padrão de estabelecimento altamente disperso, com as aldeias geralmente ocupando as margens dos cursos d'água secundários. Entre elas, o deslocamento dos grupos é intenso e o conhecimento relativo ao território é altamente sofisticado, não havendo qualquer acidente geográfico que não receba um nome, entre igarapés e formações rochosas.

Para além dos sítios ocupados pelas aldeias, há uma verdadeira legião de seres sobrenaturais que preenchem os espaços adjacentes. Este aglomerado, composto por diversas classes de espíritos, em sua grande maioria malfeitores, conforma um conjunto de acidentes que afeta diretamente a mobilidade dos grupos e, nesse sentido, a formação e desintegração das aldeias.

Nessas sociedades, não se verifica a ocorrência de grupos corporados e a organização social é baseada na parentela bilateral; a regra de casamento preferencial é entre primos cruzados (filhos de irmãos de sexos opostos) e a terminologia de parentesco é do tipo dravidiano. O grupo doméstico (as famílias nucleares ou extensas) e o grupo local (as aldeias) seriam os dois níveis básicos e operativos no padrão de estabelecimento. Grupos locais vizinhos formam ainda conjuntos por estarem ligados por laços de parentesco e manterem contatos freqüentes. No entanto, tais níveis organizacionais não implicam uma estrutura política hierarquizada. Ao contrário, as aldeias caracterizam-se, sobretudo, por uma marcante autonomia política.

Há nessas sociedades uma tendência à uxorilocalidade, regra de residência segundo a qual após o casamento o marido transfere-se para a casa do sogro. Esse modelo de composição do grupo local tem por nexo principal as relações de aliança entre um líder-sogro cercado por homens casados com suas filhas. A estabilidade política do grupo local dependerá do tipo de relação que une o sogro a seus genros. Com o nascimento dos primeiros netos, inicia-se a fase de declínio da aldeia, que culmina com o retorno paulatino dos genros a suas parentelas de origem, ou mesmo a formação de novos núcleos. Nesse sentido, o casamento de primos cruzados bilaterais confere uma maior estabilidade ao grupo local, na medida em que a fissão dificilmente ocorrerá entre afins aparentados.

De todo modo, a aldeia não é uma entidade que se perpetua pelo tempo independentemente dos que a povoam em um determinado momento. Ao contrário, os grupo locais apresentam um ciclo de existência relativamente curto, de modo que a formação permanente de novas aldeias seria um traço fundamental da estrutura social desses povos. Deslocamentos, fissões e reconstituições fazem das aldeias desses povos verdadeiros “episódios históricos", sobre os quais se articula a memória social. A história é contada segundo um registro espacial, privilegiando-se a transferência para novos lugares ou o retorno para antigos sítios anteriormente habitados (Rivière, 1984).

 Cosmologia
No elenco dos gêneros orais taurepang, as narrativas pessoais, assim como os mitos que tematizam as façanhas do herói criador Makunaíma, recebem o qualificativo de pandon, termo traduzido pelos Taurepang como “histórias”.

Os acontecimentos narrados nos mitos ocorrem em um tempo que os Taurepang chamam de Pia daktai, um “tempo de origem”, quando a terra, os homens e os animais assumem a forma que até hoje possuem, ao passo que as narrativas de cada um a respeito da sua vida e de seus pais teria acontecido “agora”, sereware, indicando tratar-se de acontecimentos muito mais recentes do que o ocorrido no Pia daktai.

A passagem de um tipo de relato a outro não obedece qualquer regra formal: nada impede que um informante passe do relato a respeito das peripécias de Makunaíma pela região do monte Roraima a um outro a respeito de uma aldeia situada na mesma área no tempo de sua juventude. Temos assim uma espécie de compressão do tempo à medida que a narrativa se aproxima do presente, um período mais repleto de detalhes e lembranças.

Makunaíma

O ciclo mais importante da mitologia taurepang versa sobre a saga do herói cultural Makunaíma, ora referido como uma só personagem, ora como um grupo de irmãos, como no relato colhido pelo padre C. de Armellada (1964:32ss). No “tempo da origem”, homens e animais possuíam a forma humana, pemon-pe. Compartilhando com os demais seres da terra uma existência pré-social, os irmãos Makunaíma – nascidos da união do sol, Wei, com uma mulher feita de barro – perambulavam à procura do pai, que havia sido raptado pelos Mawari, espíritos malfeitores que habitam o interior das serras. É na região do monte Roraima que encontram novamente o pai cativo, que, uma vez livre de seus raptores, sobe ao céu, abandonando seus filhos na terra.

Os irmãos Makunaíma permanecem na região do monte Roraima a vagar, seguindo alguns animais – entre os quais a cotia, akuri – a procura de comida. São esses animais que indicam ao herói a “árvore do mundo”, o wadaka, de onde retiravam todos os frutos comestíveis. Extasiado com a abundância dessa árvore, Makunaíma, em um ato de avidez desmedida, a derruba. Do que restou do tronco jorrou muita água, o que veio a provocar uma grande inundação; ao dilúvio, sucede-se um grande incêndio, que destrói os homens e os animais. Após este cataclisma, Makunaíma faz novos homens e novos animais com barro, dando-lhes vida (Koch-Grunberg, 1924/1981, II:43; Armellada, 1964:60). O monte Roraima, contam os Taurepang, seria a raiz desta árvore que permaneceu após a grande inundação, apontando para sua forma, apesar das grandes proporções, semelhante a um tronco partido.
Diferente  de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, que permeia a mente de muitos brasileiros. O Makunaíma com “K” . Em Roraima é uma lenda que existem várias versões de Makunaíma, mas diferente de Mário de Andrade. Makunaíma é o pajé que nos trouxe o peixe e a farinha, tristezas e alegrias, uma terra linda e um universo cheio de significados. É o guerreiro que vive no topo do Monte Roraima com suas armas, vigiando o mundo e o universo celeste, e protegendo os povos que ele conhece.


Este é o episódio mais comumente apontado entre as façanhas de Makunaíma. Em diversas outras, o herói transforma os vários seres com que se depara em rochas. Ao final, Makunaíma parte em direção a leste, para o outro lado do monte Roraima, deixando para trás um mundo onde permanecem cristalizadas, principalmente nas formações rochosas do território taurepang, diversos de seus feitos. Depois disso Makunaíma não mais intervém entre os homens, deixando-lhes, porém, uma triste herança: o mundo a que ficam relegados já não possui a mesma natureza daquele em que se vivia antes do corte da grande árvore; os seres de “agora”, sereware, perderam a identidade que outrora possuíam, já não são todos Pemon. A alteridade é, assim, introduzida no mundo.

Se antes todas as coisas eram gente, pemon-pe to ichipue, após a grande inundação os vários personagens que aparecem nos pandon distanciar-se-ão dos homens, localizando-se em domínios específicos e engendrando novas relações com os seres humanos, as quais estarão revestidas de um antagonismo explícito.

Upatá e Taren

Entre os Taurepang, há uma particular ênfase na noção de Upatá, que pode ser representado pelo lugar de nascimento ou residência. Essa noção, glosada aqui como “meu lugar”, em uma acepção mínima, corresponde à aldeia, denotando não apenas o espaço físico, mas um espaço eminentemente social. Enquanto patasek é “casa”, upatá seria, mais apropriadamente, “lar”.

No território taurepang há lugares de doença, os enek-patá, e bons lugares para o estabelecimento das aldeias, os wakipe-patá, e é entre esses extremos, dos primeiros em direção aos últimos, que os grupos se movem.

Embora sabendo estar cercado por um conjunto altamente diversificado de entidades ocultas, nem sempre um Taurepang é capaz de fornecer uma lista completa de todas elas. Um conhecimento mais aprimorado dessa matéria está associado ao xamanismo, mas também a um vasto repertório de invocações mágicas denominadas Taren. Tais invocações prestam-se, em seu uso cotidiano, para curar doenças mais simples, nas quais a intervenção do xamã pode ser dispensada, tais como picadas de cobra, pequenas feridas, diarréias etc.

Os taren parecem derivar dos incidentes ocorridos no Pia daktai: operam no sentido inverso aos males que são introduzidos no mundo neste período inicial por ação dos heróis culturais. Nesse sentido, os Taren são sempre introduzidos por um relato mítico que versa sobre a origem do mal que se deseja anular. Em seguida, articula-se a partir de um conjunto de frases repetitivas, nas quais “nomeia-se” um agente possuidor de um caráter inverso ao distúrbio que o Taren objetiva reverter.

 Religiosidade e adventismo

Os Taurepang se auto-proclamam fiéis à religião adventista do 7º dia. A vida ritual de suas aldeias é, com efeito, visivelmente marcada pelas atividades da igreja. Além do grande culto dos sábados, há outro ao longo da semana, nas noites de domingo, quartas e sextas-feiras. Nestes cultos há sempre uma pregação proferida por algum dos membros adultos das aldeias, não havendo um papel cerimonial fixo ocupado por alguém além de certos “cargos”, tais como “Ancião da Igreja”, “Diácono”, “Diretor do coral” e outros, ocupados aleatoriamente pelas pessoas para o desenvolvimento dos trabalhos da igreja. As mulheres mais velhas parecem dedicar-se especialmente à limpeza e à decoração da igreja, divisão de papéis que, aliás, corresponde a um modelo comum para todas as igrejas adventistas.

As funções na igreja, porém, não parecem ser aquilo que os Taurepang mais valorizam, mas sobretudo os sermões, proferidos na própria língua taurepang por determinados homens, os ekamanin (“pregadores”). A religiosidade taurepang parece assim enfatizar a freqüência aos cultos e a atenção com que ouvem seus pregadores. Apesar de quase todos os membros das duas aldeias possuírem hoje uma bíblia e um livro de cantos e serem em sua maioria letrados, a leitura não é parte importante de seu ritual religioso.

Quanto aos cantos, a participação da comunidade é muito mais ativa. Nos cultos, todos cantam com empenho, a plenos pulmões, acompanhados por dois ou três que tocam violão. Outro instrumento que exerce grande fascínio entre os Taurepang é o acordeon, que, muito mais caro que o violão, existe apenas um em cada aldeia. Além dos horários dos cultos, é muito comum ouvir-se nas aldeias taurepang, ao longo da tarde, grupos de crianças ensaiando para o coral da igreja.

Assim, a prática do adventismo imprime à vida social um ritmo próprio: jamais, por exemplo, encontrar-se-á, aos sábados, um Taurepang transitando pela estrada ou pela cidade de Pacairama, pois, sem margem de dúvida, estarão todos reunidos nas igrejas que construíram ao centro de suas aldeias. O sábado é integralmente dedicado à realização de longos cultos (compostos por sermões, orações e cantos) dos quais não se admite ausência.

Alumbramento

A religião adventista surgida em fins do século XIX sintetiza um conjunto de profecias a partir da interpretação dos livros bíblicos de Daniel, Apocalipse e do evangelho do apóstolo João, estabelecendo um calendário profético onde estão previstos eventos tais como a volta de Jesus Cristo, o fim do mundo e a subida dos homens “bons” para o céu. Um de seus princípios básicos encontra-se no capítulo III do evangelho de João, onde Jesus promete aos homens que subirá aos céus para preparar um “lugar”, retornando, em um tempo indefinido, a fim de conduzi-los para lá.

No caso taurepang, é interessante destacar que o lugar a ser conquistado apresenta duas características essenciais: um lugar de luz, iluminado pelo sol constantemente, e, inversamente à concepção taurepang da condição de sociedade, onde não haverá Enek-pe, doentes, pessoas “estragadas” (imatanesak), pois não haverá agentes agressores. Com efeito, a oposição claro/escuro presta-se a marcar uma nítida fronteira entre os domínios terrestre e celeste. Nas palavras do informante Bento:

Esse [o céu] aqui nosso lugar bom com Jesus, ninguém fica triste, ninguém vai cansar trabalhando, lá lugar bom e sol ta alumbrando tudo... mas que sol, nosso lugar. Aqui nós estamos no escuro, lá não escurece, tudo alumbrado, esse não se acaba... o livro conta tudo” (1988).
A “escuridão da terra” encontra seu sentido à medida que o patamar terrestre esconde, sob diversas formas, em seus diversos acidentes, várias classes de seres sobrenaturais somente visíveis aos xamãs. Manifestam-se aos homens justamente nas sessões xamanísticas, quando tudo é escuridão, quando nada se vê. Potencialmente agressivos e canibais, estes seres mantêm com os humanos uma relação de mútua predação. Desse modo, em oposição a uma terra de perigos ocultos, encontra-se um mundo onde tudo é visibilidade, tudo é luz.

Purificação

O batismo é um item de fundamental importância atualmente para os Taurepang. Nesse ritual, “lava-se o corpo”, segundo os Taurepang, tirando Makoi do corpo e deixando-o com Rato, uma serpente aquática, sob as águas. Ao sair do rio, aquele que é batizado é um novo homem e poderá atravessar o caminho do céu após a morte.

Sujeita ao patamar terrestre, a condição social obriga os homens a uma permanente interação com os seres da mata e dos rios, domínios de onde retiram alimentos. Mas a caça e a pesca constituem uma espécie de “roubo” dos filhos dos pais de cada espécie, ou, no caso dos peixes, dos filhos de Rato. Do mesmo modo, as doenças que afetam os homens são, na maioria dos casos, roubos da alma da vítima praticados por esses seres. Nestes casos é necessária a intervenção do xamã, responsável pela restituição da saúde do doente, ou de um equilíbrio incessantemente afetado na relação que os homens mantêm com o mundo que envolve a aldeia. Seria essa situação que torna os homens imatanesak: o consumo da caça e a conseqüente necessidade de tratamento xamanístico, que coloca os homens em contato com os espíritos dos mortos e com os Mawari.

O batismo seria capaz de remover esta situação, uma vez que ele vem acompanhado de um conjunto de proibições alimentares, sobretudo o consumo da carne de animais de grande porte e do caxiri. Assim, se a cura xamanística consiste em um embate com espíritos agressores, o batismo teria caráter preventivo.

Desse modo, vê-se, através do batismo, que o profetismo surge como um contraponto a um mundo dado, ao qual, até então, só o xamã poderia interferir. Os profetas viriam propor uma nova relação com este mundo, operando com elementos similares àqueles dos xamãs: palavras. Palavras que encerram um conhecimento relativo a um domínio que representa a superação da condição presente.

De Makunaíma a Jechikrai

A adoção do adventismo pelos Taurepang pode ser compreendida não como mera imposição catequética, mas, uma vez interpretados seus conteúdos, como uma doutrina que teria encontrado inteligibilidade no código taurepang. Nesse sentido, o profetismo apresenta-se não como uma resposta a uma solução adversa derivada do contato, mas como uma solução a um dilema interno à sociedade, qual seja: a impossibilidade de localizar um “bom lugar”, um upatá, por entre os diversos domínios do plano terrestre.

Assim como o conhecimento relativo aos seres sobrenaturais era restrito aos xamãs e aos detentores das encantações mágicas (os Taren), o conhecimento sobre o paraíso celeste seria um monopólio dos profetas, portadores de novas palavras que, ao contrário dos nomes pronunciados nos Taren que se associam ao passado (ao Pia daktai), evocam um tempo futuro. Analogamente, ao passo que a fabulação xamanística focaliza sobretudo o patamar terrestre, a fabulação profética concentra-se no patamar celeste. Ainda assim, não se trata de uma oposição radical entre profetas e xamãs, pois as visões dos profetas se davam segundo os mecanismos básicos dos transes xamanísticos, das viagens das almas.

É importante salientar que o upatá celeste é um lugar preparado. A Jechikrai (versão taurepang de Jesus Cristo) é confiada essa tarefa; seus atributos, com efeito, são simetricamente opostos àqueles reputados a Makunaíma. Este último, ao final de sua perambulação pela terra, parte em direção leste (ou seja, desloca-se horizontalmente), legando aos homens um mundo hostil. Além disso, sua conduta social é incorreta e excessiva. Contrariamente, aquele que os Taurepang chamam Jechikrai chegará do alto (ou seja, desloca-se verticalmente), pronto para conduzir os homens a um lugar de plena segurança. A ele associam-se ainda bons ensinamentos para o convívio social, bem como uma ética comedida, da qual os tabus alimentares são o melhor exemplo. Em suma, assim como o paraíso celeste veio a ser concebido em oposição à terra em que os Taurepang encontram-se relegados, este novo personagem só pôde ser compreendido à medida em que negava os atributos do herói cultural Makunaíma.

Uma nova dimensão será atribuída ao conceito de upatá, deslocando-o para uma outra ordem, para o além. Upatá é a noção central, portanto, através da qual os povos Karib da região do lavrado de Roraima incorporaram os ensinamentos missionários, atribuindo-lhes a forma de movimentos proféticos. Lugar de plena segurança, que os Taurepang buscavam adequar, ainda que precariamente, ao lugar onde de fato residiam. As trajetórias erráticas dos homens ao longo da vida, assim como suas dúvidas em cada parada – para onde seguir agora? –, levam a crer que nesses deslocamentos não havia um norte preciso. Abandonados por Makunaíma em um mundo hostil, só lhes restaria acreditar em um novo herói que, vendo seu sofrimento terreno, trataria de preparar-lhes um novo lugar no céu.

 Atividades produtivas

O nexo central do sistema produtivo taurepang, assim como das outras etnias que habitam a TI São Marcos, é uma estratégia sobre a qual se deposita a esperança de combinar satisfatoriamente o modelo de subsistência tradicional com a intensificação da articulação com o mercado.

Em determinadas porções no extremo norte da TI, área de mata, foi apontada uma alta disponibilidade de caça, como paca, anta, cotia, caititu, macacos, veado, queixada, arara, jacu, mutum e inambu. Tais recursos, no entanto, não vem sendo aproveitados, devido ao fato de que as duas aldeias (Bananal e Nova Esperança) mais bem posicionadas para explorá-los alegam motivos religiosos (já que os Taurepang não podem caçar animais de grande porte), falta de armas e o abandono do uso de arco e flecha e zarabatanas. Pelo restante do setor, alega-se que em geral a caça está muito escassa atualmente, ao contrário do passado, quando em certas partes as mulheres chegavam a ter medo de ir às roças devido à quantidade de queixadas.

Quanto à pesca, há que se salientar que por este setor, devido à sua localização próxima às serras da Pacaraima, localizam-se as cabeceiras dos cursos d’água que deságuam nos rios Parimé e Surumu, sendo igualmente a região onde se localizam as nascentes desses rios. Desse modo, a maior parte dos recursos pesqueiros disponíveis são pequenos peixes e piabas. Segundo vários testemunhos, o Rio Parimé já teria representado um importante manancial pesqueiro para essas aldeias, mas atualmente o que se obtém ali é relativamente pouco.

Resulta disso que a proteína animal consumida nessas comunidades é majoritariamente comprada nos açougues da Vila de Pacaraima, onde, segundo os índios, o gado é abatido diariamente.

Os frutos coletados são bacaba, inajá, taperebá, urá, ingá, bacuri, tucumã, açaí, patauá, castanha do mato, buriti e jenipapo. Estes recursos, entretanto, além de serem sazonais e disponíveis em pequenas quantidades, parecem não ser objeto de muita procura.

Um fator que tem contribuído para deprimir as atividades de caça, pesca e coleta é uma orientação crescente das atividades econômicas para o pólo comercial de Pacaraima, o que para os grupos indígenas locais vem significando aumentar o esforço e o tempo de trabalho na produção de excedentes agrícolas que podem ser ali absorvidos.

Roças e criações

A atividade agrícola entre as aldeias do setor norte da TI São Marcos é extremamente diversificada. Nas roças familiares são plantadas as seguintes espécies: mandioca, banana, milho, arroz, feijão, cará, taioba, batata, abóbora, cana, inhame, macaxeira, mamão, melancia e laranja. Já nos quintais, um espaço de tamanho variável em torno das casas aproveitado para o plantio de frutíferas, cultiva-se ingá, manga, caju, limão, tangerina, goiaba, pupunha, azeitona amazônica, coco, graviola, cupuaçu, castanha, jambo, abacate, algodão, mari-mari, urucum, pau d’arco, laranja, fruta pão, abacaxi, jenipapo, ata, lima e fruta do conde. Notemos que esta grande diversidade de espécies plantadas nos quintais refere-se ao conjunto das aldeias do setor (que engloba grupos taurepang, macuxi e wapixana).

Para os roçados, de um modo geral, planta-se mandioca, banana, milho, arroz e feijão, sendo os dois primeiros plantados em quantidades muito maiores e com expectativas comerciais. As roças são sempre individuais e é comum se ouvir que tentativas passadas de colocação de roças coletivas frustaram-se. Normalmente, cada família possui três roças em diferentes estágios: uma em plena produção, uma outra sendo preparada e uma terceira já em vias de ser abandonada. O preparo do terreno para o plantio de uma nova roça inicia-se no mês de janeiro, estendendo-se até março. Nesse período o terreno é capinado, as árvores são derrubadas e finalmente vem a queima; a partir de maio iniciam-se os plantios, que serão colhidos no ano seguinte.

Assim como as roças, a criação de galinhas, suínos e carneiros se dá de modo individualizado e é uma atividade generalizada. Apesar da introdução desses itens, a dieta alimentar taurepang mantém-se à base de damorida, caldo de pimenta preparado com a folha de arbusto denominado aurossá, junto do qual a carne é cozida, e do beiju.

O barracão onde a mandioca é processada é freqüentado diariamente pelas famílias que se sucedem ao longo da semana no preparo do beiju e da farinha. Durante as tardes nessas aldeias o que se ouve costumeiramente é o barulho do pequeno motor que gira o ralador da mandioca, entremeado ao canto das crianças que ensaiam para os cultos. Ao final da tarde, mulheres circulam entre as casas com panelas de damorida e maços de beiju a serem consumidos nas freqüentes refeições coletivas em que os Taurepang se reúnem, em conversas animadas e informais, até o momento de se recolher.

Comércio

O comércio de produtos agrícolas e a compra de mercadorias que se verifica atualmente entre as aldeias do setor norte da TI São Marcos ocorre quase que exclusivamente em Pacaraima. Os principais produtos vendidos pelas aldeias são: banana, farinha, beiju, goma e tapioca. A proximidade da estrada e a disponibilidade de transporte definem, em grande medida, a intensidade da atividade comercial desenvolvida por cada aldeia. Às sextas é realizada uma feira em uma das ruas da vila e é nessa ocasião que os índios têm a oportunidade de vender seus produtos.

Em 1998, no setor norte havia atualmente 54 aposentados e pelo menos um professor assalariado em cada aldeia. Para a compra de itens mais caros, como roupas e calçados, é cada vez mais freqüente a busca de pequenos serviços temporários, tais como servente de pedreiro ou diarista nos roçados. A compra desses itens é em geral feita na cidade venezuelana de Santa Elena, onde os preços são mais acessíveis.

Pecuária

Como se ouve em muitas aldeias, se há alguma coisa que os índios do lavrado de Roraima aprenderam com os brancos em mais de dois séculos de contato foi lidar com o gado. Em quase todas as aldeias o rebanho é composto por lotes diferenciados: há um rebanho coletivo e um outro individual, consistindo este último na somas das cabeças pertencentes a cada um dos grupos domésticos que compõem a aldeia.

A formação do rebanho individualizado começa a ocorrer assim que uma aldeia recebe um lote. Imediatamente é escolhido um vaqueiro entre os homens da aldeia, que fica responsável por cuidar do gado e que trabalha em regime de “quarta”, recebendo uma a cada quatro crias que nascem para iniciar seu próprio rebanho. Sendo o papel de vaqueiro assumido por todos os homens de uma aldeia em sistema de rodízio, ocorrerá que após alguns anos todos terão se apropriado de uma parcela do rebanho total.

 Nota sobre as fontes

Para uma etnografia detalhada da sociedade taurepang, remeto o leitor aos trabalhos de D. J. Thomas (1971, 1972, 1973, 1976, 1982 e 1983), antropólogo americano que realizou trabalho de campo entre grupos Taurepang da Venezuela no início da década de 1970. Há ainda a etnografia do alemão T. Koch-Grunberg no ano de 1912, que, além de uma minuciosa descrição da sociedade taurepang, traz seu diário de campo, de indiscutível valor histórico. Do mesmo modo, o diário de viagem do padre jesuíta inglês K. Cary-Elwes, que realiza duas viagens às aldeias Taurepang do Monte Roraima (1912 e 1916), apresenta detalhes importantes a respeito das rivalidades entre diferentes lideranças taurepang na área.

Minha dissertação de mestrado (1993) procurou contribuir para uma melhor compreensão da história desta sociedade, em especial dos grupos estabelecidos em lado brasileiro, na bacia do alto Rio Branco. Para tanto, discuto a ocupação pecuarista dos campos do alto rio Branco e a emergência de diversos movimentos proféticos entre os grupos Macuxi, Akawaio e Taurepang estabelecidos nas proximidades do monte Roraima. Busquei verificar em que medida cada um desses fatores permite explicar os deslocamentos empreendidos pelos Taurepang em direção às terras venezuelanas.

Em 1998 redigi um relatório sobre o histórico e a situação geral da Terra Indígena São Marcos, sob encomenda da Assessoria Indigenista da Eletronorte, no âmbito do projeto Interligação Elétrica Brasil/Venezuela.

Por fim, em 2003 foi defendida na Unicamp a dissertação de mestrado Vozes Inscritas: o movimento de San Miguel entre os Pemon, Venezuela, de Gabriela Copello Levy

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