Toy art etnia Kaxuyana |
# | Nomes | Outros nomes ou grafias | Família linguística | Informações demográficas | |||||||||
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107 | Kaxuyana | Caxuiana, Katxuyana | Karib |
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Depoimento de Benedito Kaxuyana (setembro de 2008).
Festividades Kaxuyana |
Os Kaxuyana chamam a si mesmos de Purehno, mas se tornaram mais conhecidos, principalmente após a década de 1960, pelo nome Kaxuyana. Em sua origem, este nome diz respeito estritamente aos habitantes do Rio Cachorro. Tal como o próprio termo diz, “Kaxuyana” refere-se a: yana (gente) habitante do rio Kaxuru (Cachorro), afluente do rio Trombetas. Hoje esse nome recobre uma população de origem diferenciada, mas histórica e geograficamente relacionada aos Kaxuyana. Tais como os Kahuyana (gente do Kahu), Yaskuriyana (gente do Yaskuri), e outros, em sua maioria, antigos habitantes de afluentes do rio Trombetas, no Pará.
Língua
A língua kaxuyana pertence à família linguística karíb e ainda é falada pelo grupo. Porém, nos anos 60 com a baixa populacional sofrida em decorrência de doenças advindas do contato com frentes extrativistas em sua região, tornaram-se menos de 100 os falantes dessa língua. Além disso, com a sua transferência, em 1968 para a TI Parque do Tumucumaque/PA, a língua kaxuyana passou por um período de desvalorização, pois precisavam aprender a falar com os com Tiriyó na língua deles. Assim, desde os anos 70 as crianças kaxuyana cresceram sendo alfabetizadas em Tiriyó, e falando predominantemente este idioma. Os chefes de família kaxuyana vêm se empenhando para que a língua kaxuyana retome seu vigor e volte a ser majoritariamente falada entre os membros do grupo.
Mulheres Kaxuyana |
Além da própria língua e do tiriyó, os Kaxuyana sempre conviveram com outras línguas e/ou dialetos de grupos vizinhos, como Waiwai, Hixkariyana, Tunayana e vários outros. Também falam o português que aprenderam com os negros que avançaram pela região há longa data.
População
As informações que existem sobre os números da população kaxuyana são esparsas e de difícil acompanhamento. Os primeiros dados populacionais disponíveis foram fornecidos por Protásio Frikel (1970a), estudioso do grupo que conseguiu chegar a algumas estimativas para a década de 1920, com base nas informações obtidas com alguns moradores de Óbidos e Oriximiná que, na época, mantinham ligações com os negros e índios do médio Trombetas, por conta do comércio de compra de castanha que praticavam com eles. Segundo Frikel, estes informantes referiam-se aos índios do médio Trombetas como ‘Kaxuyana’ em geral, sem diferenciar os demais que, embora mantivessem relações estreitas com os Kaxuyana propriamente ditos, se reconheciam sob outros nomes e possuíam diferenças dialetais. As indicações desses informantes para os anos de 1920 a 1925 variavam de 300 a 500 indivíduos.
Porém, exatamente nesse intervalo entre 1923 e 1925, uma onda de mortandade assolou essa população em decorrência de uma epidemia de sarampo introduzida pelos castanheiros. Conforme Frikel (1970a: 44): “Os índios enfermos, com febre alta, procuraram refrescar o sangue, tomando banho na água fria. Em conseqüência disso pegaram, as mais das vezes, pneumonia e com isso a morte certa. A mortandade foi enorme. Os índios entraram em pânico. Foi uma tragédia!”. Ao fim dessa epidemia, os próprios sobreviventes contaram a Protásio Frikel, que restaram de 80 a 90 pessoas entre homens, mulheres e algumas poucas crianças. E que apenas sobreviveram por volta de 6 a 8 pessoas com mais de 30 anos.
Com efeito, em 1948, por ocasião de sua primeira visita aos índios da região, Frikel (1970) encontrou não mais de 60 indivíduos no total. Embora todos esses fossem considerados pelos regionais como índios Kaxuyana e, embora, de fato, estes existissem em maior número, Frikel, identificou dentre eles, famílias que se diziam Kahuyana (gente do Kahu/rio Trombetas), também Warikyana (gente do Wariki/ igarapé Ambrósio) e Kahyana (gente do rio Kuha/afluente do Trombetas). Segundo Frikel, ambos Kahuyana e Warikyana teriam se extinguido enquanto grupos, restando alguns indivíduos isolados que se integraram aos Kaxuyana, por meio de casamentos.
De tal modo que, em 1968, ano em que os Kaxuyana encararam o fato de que, se continuassem sem apoio naquela região, corriam um alto risco de extinção, estima-se que eram em número de 56 pessoas. Destas, 7 foram para o Nhamundá/Mapuera e 49 para a Missão Tiriyó, aldeia-base dos missionários franciscanos que passaram a atuar entre os Tiriyó do alto rio Paru de Oeste, no extremo norte do estado do Pará, em 1961.
Seguem algumas estimativas populacionais para os Kaxuyana, a partir de 1968:
Ano | Nhamundá/Mapuera | Paru de Oeste | Fonte |
1970 | 07 | 68 | Protásio Frikel |
1979 | - | 83 | Frei A. Mielert |
1981 | 24 | 110 | Almeida/ Dominique Gallois |
1997 | - | 271 | Denise Fajardo Grupioni |
Em recenseamento realizado no ano de 1997 junto à população tiriyó e kaxuyana, habitante do rio Paru de Oeste, nos foi possível constatar que, na época, havia 512 Tiriyó, enquanto apenas 70 pessoas se identificavam como filhos de pai e mãe kaxuyana e, portanto como Kaxuyana “puros”. E 201 pessoas diziam-se “misturados”, por serem filhos de pai kaxuyana e mãe tiriyó ou vice-versa.
Atualmente, essa tarefa tornou-se ainda mais difícil. Segundo dados da Funai, a população tiriyó e kaxuyana do Paru de Oeste totalizava 1.090 pessoas em 2008. Apesar de não dispormos, nem de dados referentes à evolução da população kaxuyana no Nhamundá/Mapuera, nem de seu número atual nessa região, sabemos que boa parte dos Kaxuyana que haviam migrado para lá já retornaram para sua terra de origem no rio Cachorro/Trombetas, assim como uma leva de famílias kaxuyana do rio Paru de Oeste também retornou a partir do ano 2000.
Apesar de todas essas dificuldades, os Kaxuyana possuem seu próprio cômputo populacional e estimam que sua população total, somando os habitantes das três áreas habitadas, encontra-se em torno de 350 pessoas. Se pensarmos que, em 1970 eles estavam reduzidos a 55 pessoas e em 2010 somam 350, notamos que sua população aumentou seis vezes de tamanho em relação ao que era há quatro décadas atrás.
Localização
Os Kaxuyana encontram-se em três áreas distintas. Em sua terra de origem, às margens do Rio Cachorro, afluente que deságua no curso médio do rio Trombetas, ao noroeste do estado do Pará; na região dos rios Nhamundá e Mapuera, juntamente com os Waiwai e Hixkariyana, no extremo oeste do estado do Pará e na Terra Indígena Parque do Tumucumaque, juntamente com os Tiriyó, no extremo norte do estado do Pará.
Território Indígena Kaxuyana |
Após 30 anos de exílio de sua terra de origem, os Kaxuyana regressaram, e atualmente encontram-se de volta ao rio ‘Kaxuru’, lugar que deu origem ao próprio nome ‘Kaxuyana’ - que quer dizer ‘gente do rio Cachorro’ -, afluente do médio rio Trombetas, situado no oeste do estado do Pará. Os atuais Kaxuyana se consideram descendentes não apenas dos antigos Kaxuyana, mas também de vários outros grupos aparentados. Estes possuíam outras denominações que variavam de acordo com os nomes dos cursos d’água em que habitavam por toda região do médio Trombetas, no estado do Pará. Porém, em decorrência de graves epidemias sofridas em meados do século 20, cerca de 48 sobreviventes desses grupos se reuniram e concordaram em serem transferidos, com ajuda da FAB (Força Aérea Brasileira), em 1968, para a Missão Tiriyó, na Terra Indígena Parque do Tumucumaque/PA.
Um grupo menor foi viver com os Hixkariyana na região dos rios Nhamundá/Mapuera, também no estado do Pará, e outros poucos desapareceram pelo interior leste do rio Trombetas, mas até hoje há indícios de que alguns ainda estejam lá vivendo isolados e evitando serem encontrados. Apesar de terem convivido e compartilhado, por mais de três décadas, a mesma terra com os Tiriyó, no Tumucumaque, e com os Hixkariyana, no Nhamundá/Mapuera, os chefes de família kaxuyana nunca deixaram de manifestar o desejo de retornar para sua região de origem no rio Trombetas, empreitada que iniciaram a partir de 2002, com a volta de uma primeira família. Em 2009, eram oito famílias distribuídas em três aldeias: duas no rio Cachorro e uma no rio Trombetas. E se encontram em andamento os estudos para o processo de regularização fundiária de seu território de ocupação tradicional.
Mitologia
A mitologia kaxuyana, em geral, trata dos tempos e feitos primevos, dos heróis criadores dos atuais Kaxuyana e dos seres que estão nas origens, seres de quem os ancestrais dos Kaxuyana tiraram alguns de seus bens culturais, como as pinturas; ou com quem aprenderam cantos e encantamentos. Assim, os Kaxuyana contam hoje que os primeiros motivos de pintura seus antepassados tiraram da cobra Marmarwimë; passado um tempo tiraram novas pinturas da cobra Wes-peme. E, passado mais um tempo ainda, tiraram mais pinturas de outra cobra: Uhrere, uma cobra que morava na mata, e não no fundo do rio, como as outras. Já quem lhes ensinou suas músicas e danças foi um ser chamado Ihutpoimë (cabeça de gente). Com um jacaré dos tempos primevos seus antigos aprenderam como se tornar pajés. E, assim por diante, de ser em ser, encontramos a origem de cada um dos bens culturais dos Kaxuyana.
Em sua mitologia, observamos uma particularidade: as narrativas se referem a lugares específicos ao longo do seu território de ocupação tradicional. Essa não é uma particularidade exclusiva da mitologia kaxuyana, mas também não é algo observável na tradição oral de todo e qualquer povo indígena. Entre os Tiriyó, também de língua karíb, que vivem no extremo norte do Pará, encontramos versões próprias de mitos também narrados pelos Kaxuyana, porém sem estarem associados a lugares específicos. Assim, boa parte de mitologia tiriyó não encontra referente espacial.
Cobra Marmarwimë. Desenho: Adão Makarak'wa, 2005 |
Já a mitologia kaxuyana sim, a começar pelo ciclo de cataclismos primordiais: tunaimo (água grande) e wehotoimo (fogo grande), por exemplo, estão situados na origem dos tempos, precisamente nas cabeceiras do rio Cachorrinho, onde seus demiurgos Pura e Mura viviam. Lugar que os Kaxuyana passaram a chamar de ‘Paraíso’.
Conta-se que no início dos tempos não existia ninguém, apenas Pura, Mura e a velha Mutu com sua família. Pura e Mura viviam sós, protegidos pelo pássaro Cancan; e Mutu era esposa do sapo cururu.
Pura e Mura queriam roubar o fogo de Mutu. Então eles se machucavam de propósito e iam lá pedir para a velha esquentar água só para verem-na fazer fogo. Mas ela os mandava fecharem os olhos. Até que um dia, quando a velha foi preparar a lenha, eles conseguiram ver que ela fazia fogo com o ‘peido’ dela. Pura e Mura mataram o filho de Mutu porque ele riu deles. Mutu então fez a água grande para vingar a morte de seu filho.
Para se salvarem da enchente, Pura e Mura subiram no buriti e ficaram lá até baixar a água. Enquanto a água não abaixava era uma arara que levava comida no bico para eles se alimentarem. E um pombo sempre ia verificar se a água já tinha baixado. Depois que a água abaixou, para se vingar, Mura e Pura fizeram um grande fogo para queimar Mutu. Mas não conseguiram.
Desistiram e começaram a procurar material para fazer gente. E encontraram o pau d’arco. Pura e Mura faziam gente no Paraíso (cabeceira do rio Cachorrinho) e lançavam o pessoal (suas criações) de canoa. Mas o pessoal sumia rio abaixo. Então eles faziam mais pessoas, mas elas não paravam de sumir. Até que na última canoa com uma leva de gente, uma moça se salvou, viu uma cobra grande engolindo as pessoas e pôde ir lá contar para Pura e Mura o que tinha acontecido. O nome dessa mulher era Hehno.
Pura e Mura ficaram muito tristes porque não tinha mais madeira. Resolveram se vingar da cobra grande e então fizeram uma grande navalha. O nome dessa cobra era Marmarwimë, e ela vivia no fundo do rio com sua família. Mas Pura e Mura só atacaram esta cobra, e ninguém mais da sua família, então seu filho Arahua, pensou assim: vou me salvar, mas vou vingar meu pai – Marmarwimë.
Ele se estabeleceu em uma pequena cachoeira para atacar Pura e Mura. Mas estes se salvaram fugindo pelo rio dentro de uma cabaça. E lá de longe ouviam um choro muito triste vindo do fundo do mar, saíram do rio e voltaram pelo ar para o Paraíso. Como o pau d’arco acabou, passaram a tentar fazer mais gente com outros tipos de madeira, com buriti deu porco, anta, cobra e queixada, fizeram vários testes e não dava mais gente. Aí encontraram uma madeira warahari – taxizeiro. Mas era uma madeira fraca e os warahayana (gente feita de taxi – seres humanos) ficaram com vida curta. Mas foram eles que deram origem aos Kaxuyana.
Histórico do contato
Embora haja alguma documentação histórica esparsa sobre os Kaxuyana, tanto em arquivos nacionais, quanto em outros países, principalmente sobretudo em Portugal, a principal fonte de informação não apenas sobre os atuais Kaxuyana, mas sobre seus grupos originários encontra-se nos escritos de Protásio Frikel. Além de pesquisar documentos de cronistas dos século 17 e 18, Frikel também realizou, entre os anos 1948-55 pesquisa de campo entre os Kaxuyana do rio Cachorro e entre os demais grupos vizinhos, linguística e culturalmente aparentados. Com base nessas pesquisas, produziu um estudo intitulado Os Kaxuyana – notas etno-históricas (1970a), no qual sistematizou uma série de dados sobre a origem, migração e o que chama de “mesclagem” histórica dessa população.
Frikel situa a partir do século 16 a chegada dos grupos originários dos Kaxuyana à região do Kaxuru (Cachorro) e Itxuruahu (Cachorrinho), dois rios que se encontram e deságuam no médio rio Trombetas. Este seria o início de uma série de migrações rumo àquela região que teria se tornado uma área de refúgio de grupos amazônicos em decorrência da expansão da colonização portuguesa ao longo do rio Amazonas. Com base no conhecimento que obteve da mitologia kaxuyana, Frikel deduziu que o período que vai do século 16 ao 17, corresponderia aos mitos kaxuyana que falam de dois cataclismos: um dilúvio tunaimó (água grande) e um “grande fogo” (wehotoimó), além do ataque de uma grande cobra de nome marmaruimó e da morte dessa cobra pelos gêmeos Pura e Mura, heróis culturais, considerados os criadores do povo Kaxuyana. Assim, notamos que os povos originários dos atuais Kaxuyana seriam os sucessivos sobreviventes das catástrofes que ocorreram na região em tempos primevos, conforme a mitologia kaxuyana; e, entre os séculos 16 e 17, conforme a interpretação de Frikel.
As primeiras menções aos Kaxuyana em documentos históricos datam da primeira metade do século 18. Esses documentos foram produzidos a partir da viagem de exploração da região feita por Frei São Manços entre os anos de 1725 e 1728. Nos relatos sobre essa viagem consta menção aos Kaxuyana, sob o nome “Caxorena”. Depois disso, segundo Frikel, esta área de ocupação dos índios que tomaram o nome de rio Cachorro como parte de seu próprio nome, continuaria totalmente isolada, praticamente desconhecida e ausente nas fontes históricas até meados do século 19. Somente por ocasião - e em decorrência - da Cabanagem, é que, após 1836, alguns quilombolas encontraram refúgio nessa região e fizeram os primeiros contatos com os Kaxuyana e grupos vizinhos inter-relacionados (Warikyana, Kahyana e Ingarüne).
Nesse intervalo entre o tempo em que seres primevos povoam os mitos de origem kaxuyana e o período em que a terra kaxuyana é alcançada pelos negros refugiados, a região do médio trombetas adentro foi palco de uma outra história. Uma história de alianças e guerras entre os diferentes yana (gente) e, portanto, entre as diferentes “gentes” de fala karíb que para aquela região migraram ou que lá mesmo se originaram e se constituíram enquanto povos diferenciados entre si, perpetuando-se ou extinguindo-se ao longo do tempo.
Destes, restaram notícias recuperadas por Frikel durante suas pesquisas e contatos com os Kaxuyana nas décadas de 1950/60, ou guardadas na memória dos mais velhos dentre os atuais Kaxuyana. Tal como essas informações que obtive em 1994 com Cecílio Txuruwata Kaxuyana 1, e que seguem abaixo.
Os grupos Kaxuyana se dividem em dois:
os dos afluentes dos Trombetas
e os das margens do Trombetas, chamados “Trombeteiros”
Nomes dos diferentes grupos que deram origem aos atuais Kaxuyana:
Kaxuyana: habitantes do Rio Katxuru (Cachorro).
Iaskuriyana: do Igarapé Iaskuri, afluente do alto rio Trombetas.
Txuruayana: do Igarapé Juruahu, afluente do Rio Cachorro.
Kahuyana: habitantes das margens do Trombetas, são outro grupo diferente dos Kaxuyana, Iaskuriyana e Juruayana e falavam uma língua um pouco diferente.
Yaromarï: habitantes do Kaxpakuru, braço do Trombetas.
Ingarunë: grupo trombeteiro.
Txikiyana: grupo trombeteiro do Igarapé Kaxpakuru. Falam uma língua próxima do Kaxuyana, porém falada mais rapidamente.
Porém, apesar dessas diferenciações muito significativas para seus representantes, o que a história do contato destes com os não-índios revela é que tais diferenciações foram pouco compreendidas, senão passaram totalmente despercebidas, e o que aconteceu nesse processo histórico é que os sobreviventes dos distintos -yana ou povos mencionados por Cecílio, tornaram-se genericamente conhecidos como Kaxuyana.
Século 19
Esse processo de “unificação” dos diferentes povos em torno no nome Kaxuyana se deu, após a Cabanagem, a partir da segunda metade do século 19, com o estabelecimento de comunidades quilombolas do médio ao alto Trombetas, e também do rio Cachorro até o rio Mapuera, a oeste. Dessa época remontam alguns confrontos sangrentos e a chegada de doenças levadas pelos negros. Por outro lado, nem tudo nesse convívio mais próximo era conflito, assim como havia disputa em relação à extração de castanha, havia alianças comerciais entre índios e negros que se transformaram em relações mais estreitas, inclusive de casamento. De tal modo que, com o tempo, os resultados dessas trocas passaram a se refletir na cor da pele, nas feições e no cabelo encaracolado de muitos índios da região, principalmente no caso dos chamados índios “Trombeteiros”.
Essa distinção entre os chamados Trombeteiros e os índios que permaneciam mais isolados das margens do Trombetas, em pontos mais distantes de seus afluentes se delineou mais a partir da virada do século 19 para o século 20, com o aumento da atividade castanheira intermediada pelos negros que faziam a ligação entre as cidades do baixo Amazonas (Óbidos e Oriximiná) e as aldeias indígenas, levando mercadorias em troca da castanha extraída pelos índios.
Século 20
A partir de então, até a década de 1950, a população indígena kaxuyana e grupos vizinhos em geral sofreram sucessivos abalos demográficos, nem sempre apenas em decorrência de doenças estrangeiras. Como relata Frikel, um outro agravante dessas perdas populacionais eram as guerras entre os próprios grupos. Enquanto que outros grupos surgiam a partir de cisões com o grupo de origem, como é o caso citado por Frikel (1970), dos Kahuyana (gente do rio Kahu/Trombetas), surgidos de uma dissidência com os Kaxuyana do rio Cachorro, por volta de 1930, época em que os dissidentes mudaram para as margens do Trombetas.
A partir de 1955, Protásio Frikel visitou todas as áreas ocupadas pelos índios da região e isso lhe permitiu fornecer, em seu estudo etnohistórico citado (Frikel, 1970), um quadro mais preciso da população na época. Em relação aos Kaxuyana, informou que somavam aproximadamente 60 pessoas divididas em três aldeias, sendo uma no rio Cachorro, com 40 pessoas. Dentre as outras 20 pessoas, uma parte encontrava-se em uma aldeia no rio Trombetas e a outra no igarapé Ambrósio. Segundo Frikel, os Warikiyana que habitavam no igarapé Ambrósio estavam extintos em decorrência de uma epidemia de febre amarela. Já os Kahyana, após uma cisão, haviam se extinguido por lutas internas. Os Ingarüne haviam se juntado aos Tiriyó-Maraso do rio Panamá e migrado para a Missão Araraparu, de prostestantes norte-americanos, ao sul do Suriname. Além destes, haveria, conforme Frikel, algumas famílias de isolados esparsas pela região: Ingarüne-Kahyana; Rerêyana; Prenoma e Urumamayana.
Nessa época, portanto, os remanescentes dos diversos povos citados por Frikel e Cecílio Txuruwata, eram pouco numerosos e estavam reduzidos a duas áreas apenas: uma nas margens do rio Cachorro e outra nas margens do rio Trombetas. Completamente sem esperanças de sobreviver a mais uma epidemia, dividiram-se entre duas alternativas: um grupo maior, de cerca de 49 pessoas rumou para a Missão Tiriyó, no alto Paru de Oeste; enquanto uma família de 7 pessoas, rumou para uma aldeia Hixkariyana, no rio Nhamundá, junto à uma Missão do SIL (Summer Institute of Linguistics). Alguns anos mais tarde, após a saída dessa Missão, fundaram uma aldeia própria e estreitaram relações com a população regional do baixo Nhamundá, principalmente por conta do comércio da castanha.
Já os Kaxuyana que foram para a Missão Tiriyó, não apenas se estabeleceram na nessa aldeia, como fundaram em torno de 6 aldeias próprias ao longo das quatro décadas que se passaram. Mesmo assim, nunca abandonaram o sonho de voltar para a região do Rio Cachorro, tal como relata João do Valle Kaxuyana abaixo.
História do retorno dos Kaxuyana contada por João do Valle
Nós nunca perdemos o sonho de voltar para a terra onde éramos muitos no tempo dos nossos ancestrais. E estávamos planejando nosso retorno desde o ano de 2000.
Foi um dia triste quando fomos transferidos. Era 20 de fevereiro de 1968. Neste dia a emoção era grande de abandonar nossa terra natal. Então por isso nunca esquecemos e nunca abandonamos o plano de um dia retornar.
No começo de 1998 uma família partiu da Missão já com plano de vir até o rio Cachorro. Esta família se instalou na boca do rio Cachorro, na margem esquerda do Trombetas, numa área de Quilombolas. Depois outra família veio e se instalou no rio Cachorro, numa distância de 3km a partir da boca deste rio.
No ano de 2003, viemos em três famílias da Missão Tiriyó para Macapá e de lá prosseguimos, no dia 24 de julho, em viagem de barco a Santarém, Oriximiná e Cachoeira Porteira. No dia 10 de agosto fomos convocados para uma reunião com a comunidade de remanescentes quilombolas em Cachoeira Porteira. Nessa reunião falamos sobre o motivo do nosso regresso.
No dia 26 de setembro de 2003 iniciamos a primeira reabertura de uma antiga aldeia de nome Waraha hatxa you kuru, que passou a ser chamada Aldeia Santidade. Essa aldeia é já definitiva para o futuro dos povos indígenas Kaxuyana, Iaskuriyana, Kahyana, Txuruayana, Tunayana, Katuweyana, Txikuyana, Ingarïyana. São esses povos que habitam a região que abrange os rios Cachorro, Trombetas, Iaskuri, Kaspakuru e Turuna.
Hoje os Kaxuyana constituem um grupo étnico oficialmente reconhecido, resta-lhes terem reconhecido o direito à sua terra de origem e de ocupação tradicional. Depois de 4 décadas de exílio forçado, tomaram a iniciativa de regressar de onde não teriam saído se não fosse o alto risco de extinção que corriam por conta de não resistirem às doenças levadas pelos não-índios à região.
Por outro lado, os Txikiyana, de quem Cecílio Txuruwata faz menção acima, nunca desapareceram, mas até recentemente não eram reconhecidos como um grupo diferenciado dos Kaxuyana. Aos poucos, seus representantes vêm procurando explicitar sua diferença de origem e de ocupação. Enquanto os Kaxuyana ocupavam os rios Cachorrinho e Cachorro, que deságuam na margem direita do rio Trombetas, os Txikiyana ocupavam o igarapé Kaxpakuru, na margem esquerda. Eles também saíram de lá na mesma época que os Kaxuyana pelas mesmas razões. Alguns foram para a Missão Tiriyó, e outros para uma aldeia tiriyó, ao sul do Suriname, junto a uma missão protestante. Passada a época das doenças crônicas e recuperado o crescimento demográfico, desde a década de 1990 estão aos poucos voltando para o Brasil, em direção à sua terra de origem no Kaxpakuru. Os maiores empecilhos para isso são a dificuldade de acesso à região e o isolamento em termos de assistência de saúde, principalmente.
Os chamados Tunayana, históricos habitantes dessa região, também regressaram do Suriname, para onde haviam migrado no início dos anos 60, também em busca da assistência, principalmente, médica, fornecida pela Missão protestante de Araraparu. Conforme Cecílio Kaxuyana, os Tunayana são originários do alto Trombetas e falam uma língua diferente da língua kaxuyana e mais próxima da língua waiwai. Todos estes casos se encontram em processo de estudo para regularização fundiária.
Notas
1. Cecílio, já falecido, reconhecia-se como de origem Iaskuriyana (gente do igarapé Iaskuri), lugar situado logo acima do rio Cachorro. No decorrer de sua vida morou em várias aldeias nessa região até que, no final dos anos 60, encabeçou a mudança dos Kaxuyana para a Missão Tiriyó, onde viveu, se casou e teve filhos.
Modos de Vida
Fora de sua área de ocupação tradicional, os Kaxuyana transformaram bastante seu modo de vida em função de uma série de constrangimentos impostos pela situação de mudança para uma terra outra, em condições totalmente adversas. Contam os mais velhos que em cada aldeia havia apenas duas casas grandes: uma para homens solteiros (mtareka) e outra (tamiriki) onde viviam as mulheres com seus esposos, suas filhas solteiras e filhos menores de 10 anos.
Os meninos ficavam até mais ou menos 10 anos na casa das mulheres. Os homens casados viviam na casa dos homens, mas à noite iam para a casa das mulheres dormir com as esposas. Só o chefe ficava sempre na casa tamiriki, que era, via de regra, uma casa fundada por ele. As mulheres trabalhavam todas juntas na cozinha coletiva, ao lado de sua casa, e levavam a comida até a praça em frente, onde todos comiam juntos, porém os homens se agrupavam de um lado e as mulheres, de outro.
O chefe pataietono organizava todos os trabalhos, inclusive os das festas. Ele mandava uma turma sair para caçar. Quando retornavam, primeiro os caçadores ficavam num ponto próximo à aldeia, se organizando para chegar. Nesse meio tempo, o pessoal da aldeia ia lá, saqueava o que conseguia de suas caças. Aí tinha o dia marcado para o encontro do pessoal da aldeia com os da mata. Primeiro chegavam com suas caças nas costas, deixavam tudo na aldeia e voltavam para o seu acampamento, onde se pintavam e enfeitavam. No dia marcado, chegavam dançando e continuavam a dançar todos juntos. Depois havia uma troca: os que foram caçar ficavam fazendo a casa e os outros iam caçar. A bebida das festas chama-se tarubá. Antes de começar a festa, o dono da aldeia passava cipó de curauá nas crianças e em todo mundo. Isso, conforme dizem os Kaxuyana atuais, era para tirar a preguiça: “era remédio”. Só então começava a festa: depois que todo mundo apanhava com cipó, tomava banho e se pintava.
Formas de manejo e atividades produtivas
Em julho começam a derruba da mata e em setembro a queimam, mas quando chove nesse mês, deixam para outubro. Após a queimada limpam o terreno para plantar. Levam cerca de duas semanas só limpando. Por exemplo: queimam na primeira quinzena de outubro, fazem a limpeza na segunda quinzena desse mês. Quando estiver tudo limpo, nesse exemplo, no início de novembro, começam o plantio de maniva. Os homens cavam e as mulheres plantam.
As mulheres esperam três meses, de novembro a março, para limpar o mato que nasceu em volta do roçado. Elas fazem isso em grupos de mulheres, em esquema de mutirão que os Kaxuyana chamam “puxirum”. Assim como fazem os homens, na época da derruba.
Após mais três meses fazem uma nova limpeza. E por volta de julho começam a colher, primeiro crescem as mandiocas usadas na fabricação da bebida, e é por volta de setembro que os demais tipos estão mais graúdos.
Manejo de caça e pesca
No verão priorizam a pesca e no inverno a caça, que é quando a maioria das caças está gorda depois de consumir muitas frutas do mato no verão. No verão, só se pode matar alguma caça se ela aparecer por acaso e se não se conseguiu pescar naquele dia.
O que se pode matar eventualmente no verão: Ewarho (anta), kehawu (veado), Ahya (porco - queixada) e Kirman (paca). No verão os macacos em geral estão magros, feios cheios de berne. Por isso não se deve matar em hipótese alguma macacos como Ituri (guariba), Wotoimö (cuamba), Meku (macaco prego) e Witxa (cuxiu)
Também no verão não se deve mexer com as tahokemtomu/animais que voam (pawisi/mutum; maratxi/jacu; kuiwi/cujubim; pono/nhambu): “a gente até escuta elas aqui pelos arredores, mas deixamos quieto. No inverno sim, se ouço uma cantando já pego porque é época mesmo” (Mauro Mükaho Kaxuyana).
Nos meses de outubro e novembro é tempo de pegar ovos de tartaruga, mas não costumam matar itxawaru/tartaruga para comer, só se não tiverem outra opção. Do mesmo modo, não costumam consumir ariwe/jacaretinga, só em último caso.
Comércio de produtos nativos (castanha, farinha e banana)
Num ponto tiram de 40 a 50 sacas de castanha. Em outro ponto tiram de 10 a 15 sacas. Em 2009, cada caixa com 10 quilos de castanha custava R$ 15,00 até maio. A partir de maio passou para R$ 25,00 e até o mês de julho valorizou mais ainda, chegando a R$ 75,00 uma caixa de castanha. Produzem farinha para vender junto com a castanha. Em 2009, uma saca de farinha de 60 quilos chegou a custar R$ 80,00. Também vendem banana em qualquer época do ano.
Fontes de informação
FRIKEL, Protásio 1953. “Kamáni: costumes e preceitos dos índios Kachúyana a respeito do curare”. In: Revista do Museu Paulista, Nova série, vol. 7. 1955. “Tradições histórico-lendárias dos Kaxuyana e Kahyana (versão dos Kaxuyana)”. In: Revista do Museu Paulista, Nova série, vol. 9. 1966a. “Os últimos Kahyana”. In: Revista do Inst. de Estudos Brasileiros, São Paulo. USP (1): 7-34. 1970a. Os Kaxuyana: notas etno-históricas. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 82 p., il. (publicações avulsas, 14). 1970b. O Código de civilidade dos Kaxuyana. Salvador, separata de ‘Universitas”, n. 6-7. 1971b. “A mitologia solar e a filosofia de vida dos índios Kaxuyana”. In: Estudos sobre línguas e culturas indígenas. Brasília-DF, Summer Institute of Linguistics.
GALLOIS, Dominique& RICARDO, Carlos Alberto (ed.) 1983. Povos Indígenas no Brasil: Amapá/Norte do Pará. São Paulo, CEDI, volume 3.
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GILDEA, Spike 1998. On Reconstructing Grammar: Comparative Cariban Morphosyntax. New York: Oxford University Press.
GRUPIONI, Denise Fajardo 2009. Arte Visual Tiriyó e Kaxuyana - padrões de uma estética ameríndia. São Paulo: Iepé/Petrobrás Cultural/MinC.
PAULA, Ruth Wallace de Garcia 1980. Língua Kaxuyana: fonologia segmental e afixos de posse. Publicações Avulsas do Museu Nacional n° 63. Lingüística IX, Museu Nacional, Rio de Janeiro. 1970. Notas fonológicas da língua kaxuyana. Museu Paraense Emílio Goeldi (Boletim, ns, Antropologia 43), Belém.
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