domingo, 7 de junho de 2020

Tsohom-Dyapa

Toy Art Tsohom Diapa
#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
200Tsohom-DyapaTucano, Tukano, Tukún Djapá, Tukano Djapá, Txunhuân Djapá, Tsunhuam Djapa,Katukina
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
AM38CTI 2016


Os Tsohom-dyapa vivem na região entre os rios Jutaí e Jandiatuba na Terra Indígena do Vale do Javari. Apesar de se saber muito pouco sobre eles, é certo que falam uma língua da família Katukina, muito parecida com as línguas dos Kanamari e dos Katukina do rio Biá. O nome Tsohom-dyapa pode ser traduzido como “povo-tucano” e é uma autodesignação típica dos subgrupos kanamari. Tudo leva a crer que os Tsohom-dyapa são um dos subgrupos que se manteve mais afastado, habitando uma região entre duas concentrações dos Kanamari, no alto curso dos rios Jutaí e Itaqui, com os quais mantém contatos intermitentes.

Apesar dos Tsohom-dyapa serem considerados isolados pela Funai, parte deles tem mantido contato com os Kanamari e, esporadicamente, com vizinhos regionais.

 Nome

O nome Tsohom-dyapa significa “povo-tucano” na língua kanamari. Tsohom designa “tucano” e -dyapa, uma coletividade geralmente constituída por um grupo de famílias extensas. A palavra para “tucano” em Kanamari varia de acordo com o dialeto do falante. Assim, por exemplo, os Kanamari do alto Itaquaí referem-se a este povo tanto por Tsohom-dyapa, bem como, e mais frequentemente, por Tsohonwak-dyapa, ambos querendo dizer “povo-tucano”. Os Kanamari que falam Português referem-se aos Tsohom-dyapa simplesmente por Tucano, e é dessa forma que estes são conhecidos pelos não-indígenas da região.
Pitura facial Tsohom-Dyapa
Além das duas variantes acima, existem ainda outras grafias possíveis, que talvez correspondam a diferenças entre os dialetos das línguas katukina e/ou a diferentes maneiras de escrever as palavras “tucano” e “gente”. Assim, os linguistas Francisco Queixalós e Zoraide dos Anjos (2007) preferem grafar Tyohon dyapa, baseando-se, muito provavelmente, na pronúncia dos Katukina do rio Biá. Algumas outras variações frequentemente encontradas na literatura incluem: Txunhuân djapá (Melatti, 1981); Tukún Djapá ou Tukano Djapá (Metraux, 1948).

Tsohom-dyapa é um nome tipicamente kanamari. Os Kanamari chamam todos os falantes de línguas katukina – incluindo os Tsohom-dyapa – de tukuna, termo que significa “gente”. No entanto, os Kanamari se dividem em um sem-número de subgrupos, que recebem sempre o nome de um animal seguido pela palavra –dyapa (as vezes grafada djapa, djapá, dyapá, diapa, com ou sem hífen). Estendem essa classificação para outros povos de língua katukina (e às vezes para falantes de outras línguas), como os Katukina do rio Biá, que os Kanamari chamam de Pidah-dyapa, “povo-jaguar”. Estas coletividades são geralmente chamadas de “subgrupos” (Reesink, 1993), embora já tenham sido chamadas de “clãs” (Tastevin, s/d.), e representam grupos de famílias extensas que residem em um mesmo local. A maior parte destes subgrupos mantém algum contato entre si, o que no passado poderia se caracterizar por reuniões rituais e hoje está marcado por relações de matrimônio. Assim, para os Kanamari, Tsohom-dyapa seria apenas mais um destes subgrupos.

Embora esta seja a visão dos Kanamari, não há como afirmar com certeza se é este o caso. Tampouco se pode saber ao certo se os Tsohom-dyapa se identificam de alguma forma com essa denominação, ou se representa somente uma classificação kanamari para uma pequena constelação de povos que falam uma língua parecida com a deles. É possível, por exemplo, que o povo conhecido como Tsohom-dyapa se reconheça como sendo de um outro subgrupo -dyapa, ou, ainda, que se divida em mais de um subgrupo deste tipo. Por outro lado, também é possível que, devido ao isolamento, os nomes -dyapa tenham caído em desuso entre eles e que poderiam se reconhecer apenas como tukuna, “gente”. Isso parece ter acontecido com os Katukina do rio Biá, povo que se mantém mais ou menos afastado dos Kanamari e para quem os nomes acrescidos por –dyapa parecem existir sobretudo como marcadores de diferenças no passado, sendo mais uma lembrança de um sistema social antigo do que uma forma de traçar relações entre coletividades no presente (Deturche, 2007).
Homens Tsohom-Dyapa

Assim, o sistema social dos povos kanamari e katukina representa uma gama de possibilidades – de variações sobre certos temas recorrentes. O que é certo é que Tsohom-dyapa é um nome dado pelos Kanamari, e que diz respeito à maneira como os Kanamari nomeiam as divisões internas à categoria de “gente” (tukuna), que também abrange os chamado Tsohom-dyapa.

 Língua

Os Tsohom-dyapa e os Kanamari são os únicos povos na Terra Indígena Vale do Javari que falam línguas da família katukina (Rivet, 1920). Os demais povos desta região, incluindo, provavelmente, aqueles considerados isolados ou autônomos, falam línguas da família pano.

Para tratar da língua dos Tsohom-dyapa, é necessário situá-la em relação às demais línguas katukina sobre as quais há alguma informação e alguns estudos lingüísticos.

Estudos recentes sugerem que todas as línguas da família katukina ainda existentes, incluindo as variações de kanamari e o katukina do rio Biá, são dialetos de uma mesma língua, que tem sido chamada simplesmente de “Katukina”, ou então de “Kanamari-Katukina” (Queixalós e dos Anjos, 2007). Estas línguas seriam hoje as únicas representantes da família katukina, que outrora se espalhou por toda a calha do rio Juruá.

Os Kanamari afirmam que esta é a única língua falada pelos Tsohom-dyapa, pois eles, ao contrário da maioria dos Kanamari, não têm conhecimento do Português.

 População e localização

Em 1981, a população dos Tsohom-dyapa era estimada em 100 pessoas. Vivem exclusivamente na Terra Indígena Vale do Javari, área situada no extremo oeste do estado do Amazonas e habitada por diversos povos indígenas, dentre os quais estão os Kanamari, os Marubo, os Matis, os Matsés (também chamados de Mayoruna), os Kulina-Pano e os Korubo. Há ainda um grande número de povos considerados isolados pela Funai e os Tsohom-dyapa estão incluídos nesse caso, mesmo que hoje eles (ou parte dessa etnia) mantenham um contato regular com os Kanamari, habitantes do rio Jutaí, no leste da TI Vale do Javari.
Território Indígena Tsohom-Dyapa

 Histórico do contato

O ponto de dispersão dos povos katukina é, sem dúvida, o vale do rio Juruá principalmente o seu médio curso (Metraux, 1948; Rivet & Tastevin, 1921). A bacia do Juruá fica ao sul da bacia do Javari, e os afluentes das duas estão separados por um interflúvio de terra firme que, atualmente, fica na divisa das Terras Indígenas Vale do Javari e Mawetek, esta última também habitada pelos Kanamari. Os povos de língua katukina que hoje vivem no vale do Javari certamente migraram para esta região no início do século 20. No entanto, seus antepassados que viviam na margem esquerda do médio Juruá conheciam os altos cursos de rios como o Itaquaí, o São Vicente (vale do Javari), o Jutaí e o Jandiatuba (que deságuam no Solimões), onde caçavam e, às vezes, habitavam durante o período de seca. Há três blocos de Kanamari na Terra Indígena Vale do Javari: um no alto Jutaí, composto por pessoas que lá estão desde tempos imemoriais (Carvalho, 2002); outro no Itaquaí, formado por pessoas que migraram, em sua maioria, do Juruá na década de 1930 (Costa, 2007); e um bloco bastante ao norte, no médio rio Javari, constituído por pessoas que migraram, a partir do Itaquaí, na década de 1950.

Pouco se sabe sobre a história do estabelecimento dos Tsohom-dyapa nesta região, mas é provável que tenham se deslocado, a partir do Jutaí, por volta de 1912 (Tastevin, s/d.). No imaginário dos Kanamari, a bacia do Jutaí é tradicionalmente a terra de dois subgrupos: os Kotya-dyapa (“povo-lontra”), muitos dos quais ainda vivem lá, e os Tsohom-dyapa, que teriam migrado para o norte e o oeste (Carvalho, 2002).

Os Tsohom-dyapa habitam a região do interflúvio do Jutaí e do Jandiatuba, principalmente no entorno das cabeceiras do rio Curuena.

Segundo Heck (1979), os Tsohom-dyapa moravam em um afluente do Jandiatuba (denominado Ahe Teknin). Em 1920, aproximadamente, houve um conflito interno que vitimou o tuxaua Txiwi e, por causa disso, parte do grupo, sob a liderança do filho de Txiwi, passou a ocupar com maior intensidade as cabeceiras do igarapé Dávi. A outra parte do grupo, sob a liderança de Aro e lakuna, passou a ocupar a região entre os rios Curuena e o Jutaí.

De acordo com Coutinho Junior, foram registradas nos anos de 1950 e 1960 diversas relações dos Tsohom-dyapa com seringueiros ou madeireiros, algumas delas perduraram por alguns anos. Nos relatos que remontam aos anos 50, seringueiros afirmaram que um dos indígenas, talvez o tuxaua, falava razoavelmente bem o Português, língua compreendida em menor grau por outras pessoas do grupo. Alguns moradores não-indígenas contaram a membros da Opan (Operação Amazônia Nativa), no final dos anos 70 e começo dos 80, como muitos desses encontros eram amistosos. Os índios pediam sal, negociavam carne de caça por ferramentas de metal ou comiam tracajás e ovos na casa de alguns ribeirinhos, os quais eram visitados duas vezes por ano. Os índios não roubavam nada quando os ribeirinhos estavam ausentes, mas às vezes ameaçavam para que estes não adentrassem sozinhos na floresta. Dois indígenas, entre eles o “tuxaua”, teriam contraído gripe em uma dessas ocasiões e morrido. O grupo teria então se retraído, por medo de feitiço, mudado para o igarapé Dávi e circulado também na região das cabeceiras do igarapé Maloca, afluente esquerdo do alto rio Jutaí (Coutinho Junior, 1998).

Houve também mortes violentas. Um senhor se lembra de quando indígenas mataram três seringueiros, subordinados a um patrão no Jutaí; este, por sua vez, contratou quatro ribeirinhos e um Kanamari para uma emboscada. À noite os homens teriam assaltado e matado cerca de 120 indígenas. Esse Kanamari teria sido morto mais tarde por indígenas identificados como “Tucanos” (idem).

Um padre que viajou pelo Jutaí em 1977, afirma ter encontrado índios próximos ao igarapé São Francisco. Era um grupo de “Tucanos” do rio Dávi, formado por cerca de 10 famílias, que não utilizava espingarda, apenas arco e flecha, e viajava para conhecer os vizinhos e, talvez no caso dos solteiros, encontrar uma esposa (Coutinho Junior, 1998).

Coutinho Junior (1998) aponta em seu relatório, que em 1979, a população tukano da maloca Tracoá, localizada nas cabeceiras do Dávi foi estimada em 10 famílias, totalizando 32 pessoas. Estes índios ocupavam o alto curso do igarapé Dávi e seu afluente esquerdo, o igarapé Branco. Em 1985, Funai e Cimi sobrevoaram a região e localizaram três malocas “tukano”, uma estava ocupada, outra abandonada e a última queimada, além disso identificaram um acampamento provisório e dois roçados. A população foi estimada em 40 pessoas.

O indigenista Sebastião Amâncio da Costa teria registrado encontros violentos desse grupo tsohom-dyapá com outros povos autônomos, provavelmente do alto Jutaí, os quais resultaram em mortes dos dois lados. Esses episódios teriam provocado certo retraimento geográfico de ribeirinhos e também dos Kanamari, Kulina e “Tukano” (Coutinho Junior, 1998). Um morador do Curuena afirma ter ido, em 1993, em companhia dos Kanamari da aldeia Queimado, encontrar os “Tukano”, que seriam cerca de 80 pessoas. Dois anos depois, outro morador identificou diversos tapiris entre os igarapés Urucubaca e Jacundá e um varadouro aberto pelos “Tukano” entre o alto Curuena e o Lobo.

Os Kanamari contam que os “Tukano” consideram o alto Dávi como seu território exclusivo e que também frequentam as cabeceiras do Curuena em busca de taquara ou taboca para suas flechas. Durante suas periódicas visitas à aldeia Queimado para participar de festas ou buscar bens industrializados, os “Tukano do Dávi” batem em sapupemas de árvores como forma de anunciar a sua presença. Ficam pequenos períodos e depois se vão novamente (Coutinho Junior, 1998).

É, no entanto, difícil precisar se esses seriam os mesmos que agora identificamos como Tsohom-Dyapa.

 História do isolamento

Os Tsohom-dyapa são considerados “isolados” pela Funai e “autônomos” pelo movimento indígena local. Isso significa que hoje eles não mantêm contato regular com o órgão indigenista, situando-se mais ou menos à margem de regiões próximas, como o alto Jutaí e alto Itaquaí, onde a Funai se faz presente. No entanto, isso não significa que eles sempre se mantiveram isolados. É certo que eles participavam da rede de relações que existia entre os povos de língua katukina até os primeiros anos do século 20 e que, com evidentes transformações, ainda existe.

Pouco se sabe de sua história. Há, porém, pistas fornecidas por dados etnográficos coletados por Constant Tastevin entre 1910 e 1920. Estas pistas complementadas com dados coletados entre os Kanamari nos últimos quinze anos podem iluminar um pouco da história dos Tsohom-dyapa e compreender, talvez, as razões de seu isolamento tanto em relação aos seringueiros e madeireiros quanto no que diz respeito aos demais povos de língua katukina.

A análise de vários documentos permite dizer que os Tsohom-dyapa passaram não só por um, mas por pelo menos dois “isolamentos”: o primeiro, por volta de 1912, os afastou dos (demais) Kanamari, mas não isolou-os por completo de uma parcela dos Kanamari que viviam (e vivem) no Jutaí; e o segundo, mais recente, que provavelmente ocorreu na década de 1970. Este último “isolamento” cindiu os Tsohom-dyapa em dois grupos: um deles se isolou por completo dos não-índios e dos Kanamari; e outro, aproximou-se ainda mais dos Kanamari do Jutaí e, através deles, dos não-indígenas.

Em um texto manuscrito, inédito e sem data (provavelmente do final da década de 1920), Tastevin fala de um povo cujo nome é grafado Tiõwök dyapá e que “chama-se também de Tukano dyapá, quando se traduz para o português ou tupi o seu nome totêmico, que é o do tucano”. Este autor situa este povo na bacia do Jutaí, notando ainda que eles se estabelecem “mais ao oeste e sem dúvida também ao sul, nas águas do Itewahy [Itaquaí?], afluente do Jawary [Javari], e do Yandiatuba [Jandiatuba], afluente do Amazonas [Solimões]”.

Embora não o diga explicitamente, Tastevin não parece ter tido contato direto com esses “Tukano dyapá”. Toda a informação que obteve parece ter vindo dos Kanamari que viviam na bacia do Jutaí que eram, em sua maioria, do subgrupo kotya-dyapa (“povo-lontra”). Tastevin esteve entre os Kotya-dyapa por volta de 1920 e portanto pode-se supor que as informações obtidas sobre os “Tukano dyapá” datam, mais ou menos, deste período. Dos Kotya-dyapa, o autor ouviu que os “Tukano dyapá” têm a reputação de serem excelentes e intrépidos caçadores.

A região em que os “Tukano dyapá” viviam situava-se um pouco a oeste da bacia do Jutaí e ficava distante do núcleo de outros subgrupos kanamari (mesmo dos Kotya-dyapa). Segundo Tastevin, este isolamento deve-se a sua fama de exímios caçadores:

Em 1912, os Kuniba [provavelmente um grupo de língua Arúak] do alto Jutaí haviam massacrado seu [dos Kuniba] patrão e sua mulher e raptado ainda quatro meninas brancas na floresta para serem suas esposas. Pouco mais de seis meses depois, eles [os Kuniba] ainda se esquivavam de todas as procuras da polícia brasileira e dos próprios seringueiros. O cunhado do defunto teve a idéia de pedir aos Tukano dyapá para seguir suas pistas. Efetivamente, eles [os Tukano dyapá] chegaram a um lugar onde, dois dias antes, os Kuniba haviam sido mortos em uma emboscada que lhes foi preparada pelos Wadyo Paranim-dyapa [povo-macaco cairara], a pedido dos civilizados. Eles [os Tukano dyapá] seguiram a caça pelo odor e ao menor indício [que a caça deixava] sobre os ramos das árvores ou sobre a terra úmida. Seus vizinhos imediatos ao norte devem, antigamente, ter sido os Tikuna, tribo de língua muito diferente, apesar de seu nome lembrar aquele dos Tokona [tukuna, ‘gente’ na língua Kanamari-Katukina], e que vive hoje na margem esquerda do Amazonas abaixo do Javari, e na direita acima [do Javari]" (Tastevin, s.d..).
Esta parece ser a única referência que Tastevin faz a um povo que tem o mesmo nome dos Tsohom-dyapa atuais e que habita uma área praticamente idêntica. De fato, tudo leva a crer que estes “Tukano dyapá” são os antepassados diretos dos atuais Tsohom-dyapa. Apesar de o pertencimento ao subgrupo ser um dado mais maleável do que Tastevin supunha, e de ser possível as pessoas mudarem de subgrupo ao longo de suas vidas, todos os etnógrafos dos Kanamari já notaram a impressionante semelhança entre os dados coletados por Tastevin acerca dos nomes e da localização dos subgrupos no início do século 20 e a lembrança dos próprios Kanamari de onde e com quem eles viviam na mesma época. O que fica evidente nessa comparação é a associação consistente entre um território e um nome ao longo de quase cem anos, mesmo que a história tenha rompido relações, instaurado outras e diluído a endogamia dos subgrupos.

Ademais, a história relatada por Tastevin, provavelmente parafraseada de um relato dos Kotya-dyapa, apresenta alguns dados interessantes. Em primeiro lugar, ela permite estabelecer que, antes de 1912, os Tsohom-dyapa mantinham relações com os Kanamari, algumas provavelmente mais intensas (com os Kotya-dyapa) e outras mais esporádicas (com os Wadyo Paranim-dyapa) e também com os seringueiros que viviam no Jutaí. Isso indica, em segundo lugar, que os Tsohom-dyapa já estavam estabelecidos na bacia do Jutaí no início do século 20. De fato, eles são considerados pelos Kanamari como sendo um povo oriundo da bacia do Jutaí, o que sugere que viviam ali há muito mais tempo (Carvalho, 2002). Em terceiro lugar, a citação deixa claro que, apesar das relações entre os Tsohom-dyapa e alguns seringueiros serem aparentemente amigáveis, algumas relações entre índios e seringueiros na região eram violentas. Em quarto lugar, o texto estabelece uma data altamente relevante para o início do isolamento dos Tsohom-dyapa: o ano de 1912, final do período áureo do boom da borracha nesta região (idem). Estes dados são pistas preciosas para se entender a história dos Tsohom-dyapa, pois inserem a questão do isolamento dos Tsohom-dyapa em um contexto muito mais complexo do que a singela história de Tastevin, sobre um grupo de índios que foi caçar e nunca mais voltou, permite entrever.

Segundo Carvalho (2002), já em 1907, muitos dos Kanamari do Jutaí estavam concentrados no seringal Restauração. Este seringal se estendia do igarapé Maloca (Mawetek, em Kanamari), afluente da margem esquerda do Juruá, até o rio Juruazinho, um afluente do Jutaí. Grande parte da mão de obra indígena deste seringal era composta pelos Kotya-dyapa, acompanhados de alguns indivíduos Wadyo Paranim-dyapa e Tsohom-dyapa (idem). Se, num primeiro período, a convivência no seringal é lembrada como sendo positiva, pois viviam com um patrão que os protegia e os supria de mercadorias, estas lembranças não excluem os atritos que advinham desta nova relação, que eram de dois tipos. Primeiro, a exploração da borracha na região e a forte presença dos seringueiros nos rios ocupados pelos Kanamari, evidentemente, causaram tensões entre índios e invasores, principalmente quando esta presença implicava modificações no estilo de vida kanamari e, sobretudo, na dinâmica dos subgrupos. O caso do povo chamado de “Kuniba” na história de Tastevin é um exemplo desses fenômenos violentos que também surgem em relatos kanamari sobre o período.

O segundo tipo de atrito se refere ao período em que os indígenas trabalhavam na extração da seringa.  Foi um processo progressivo de deterioramento das relações com os seringueiros e também com outros grupos kanamari. De fato, os Kanamari tendem a explicar toda essa tensão como sendo consequência da intensificação das relações entre os diversos subgrupos e do enfraquecimento das relações que vigoravam antes da chegada dos seringueiros. Foi durante este período que os subgrupos, que antes viviam em bacias fluviais separadas, começaram a conviver nos seringais, a se casar uns com os outros e a se fragmentar e se dispersar. O resultado disso tudo foi que pessoas que antes só se encontravam em rituais (nos Hori) começaram a co-residir. Assim, uma estrutura que exigia a manutenção de grupos de parentes localizados e diferenciados começou a se transformar em uma rede de relações multi-locais, na qual já não se sabia mais quem era parente e com quem se deveria viver.

O resultado dessas relações ambivalentes foi uma proliferação de acusações de feitiçaria: pessoas que antes se julgavam parceiros rituais (-tawari) se acusavam mutuamente e, mesmo aqueles que, pouco tempo antes, se consideravam parentes, também se distanciavam por causa da feitiçaria. Dessa forma, o período que começa mais ou menos em 1912 levou diversos Kanamari a se estabelecerem em regiões limítrofes do médio Juruá. O caso mais extremo dessa tendência foi o de um grupo que chegou a trabalhar no seringal Restauração e que, julgando-se vítima de feitiço, desceu o Juruá até a sua foz, atravessou o Solimões e hoje vive no rio Japurá, que deságua na margem esquerda do Solimões (TIs Paraná do Paricá e Marãa/Urubaxi; Neves, 1996). Os Kanamari do Itaquaí, que foram vítimas mais tardias do boom da borracha, também chegaram ali fugindo de conflitos semelhantes, de ataques xamânicos que, desde meados da década de 1930, não cessavam.

As relações com os seringueiros e com outros grupos kanamari tendiam para conflitos xamânicos e guerra armada e, portanto, a cisão de alguns subgrupos e o isolamento de outros tornaram-se opções não só viáveis, mas às vezes desejáveis. Nesse sentido, os Kanamari teriam razão ao dizer que os Tsohom-dyapa seriam um subgrupo kanamari, que participava da mesma rede de relações que eles e que se isolou dos demais Kanamari à medida que houve a dissolução e reformulação destas redes.

Resta perguntar, no entanto, até que ponto os Tsohom-dyapa se mantiveram, de fato, isolados dos outros Kanamari e, principalmente, dos Kotya-dyapa – povo com o qual partilham uma origem comum na bacia do Jutaí.

Antropólogos que trabalharam com os Kanamari do Jutaí, por outro lado, enfatizam sistematicamente contatos entre os Tsohom-dyapa e os Kotya-dyapa ao longo de quase todo o século 20. Neves (1996), por exemplo, fala do “ciclo nômade” dos Tsohom-dyapa, que os levou, quase que anualmente, “aos ‘seus parentes’ kanamari no alto Jutaí”. Reesink (1993), por sua vez, fala de uma visita que os Tsohom-dyapa fizeram à aldeia Caraná dos Kanamari do Jutaí em 1984, em que construíram um grande “tapiri”. E, no mesmo período, Carvalho (2002) faz referência à ida de alguns Tsohom-dyapa para a mesma aldeia para se tratarem de tuberculose.

Ao que tudo indica, o contato entre os Tsohom-dyapa e os Kanamari do Jutaí sempre ocorreu, porém a dinâmica deste contato foi completamente alterada durante a segunda metade do século 20. Se todos os Tsohom-dyapa se afastaram, em maior ou menor grau, dos Kanamari e dos não-índios em 1912, um rixa interna aos Tsohom-dyapa resultou em uma cisão do grupo. Esta separação fez com que uma parcela da população mantivesse contatos ainda mais intensos com os Kanamari do Jutaí e a outra cessasse de vez os contatos esporádicos que estabeleciam até então, rompendo, assim, quaisquer relações com os Kanamari e os não-indígenas.

Segundo Reesink (1993), os Tsohom-dyapa se dividiram em dois grupos. Não se sabe a data desta cisão, mas o resultado foi o deslocamento de uma parcela da população para o sul e o leste, junto dos Kanamari do Jutaí, e o isolamento gradual do restante dos Tsohom-dyapa, que se manteve no mesmo lugar ou se deslocou em direção ao norte e ao oeste. O primeiro grupo hoje vive nas cabeceiras do igarapé Branco, um afluente do igarapé Dávi que, por sua vez, é um tributário do rio Jutaí. Já o outro grupo se manteve na região das cabeceiras do Jandiatuba ou, então, isolou-se mais ainda no rio Curuena, afluente do Jandiatuba (Carvalho, 2002). Isso não significou o surgimento de uma nova unidade –dyapa, já que os dois grupos constituem “(…) uma única unidade conceitual quase que exclusivamente endogâmica” (Reesink, 1993).

É impossível saber até que ponto essa cisão poderia ter tido uma reviravolta, levando a novas animosidades ou terminado com a reconciliação destas duas facções. Isto porque, no início da década de 1980, uma nova leva de não-índios veio afastar os Tsohom-dyapa do Curuena-Jandiatuba daqueles do Igarapé Branco e dos Kanamari do Jutaí. Desta feita, foi a Petrobrás – através da Companhia Brasileira de Geologia (CBG) e da LASA Engenharia e Prospecções S.A. – que se instalou na região a procura de petróleo, realizou constantes sobrevôos de helicópteros e incursões às áreas dos Tsohom-dyapa, que fez com que estes se afastassem ainda mais de suas áreas tradicionais de caça e coleta (Neves, 1996; Labiak & Neves, 1985).

Segundo Neves:

[T]odos os grupos indígenas foram impactados pela presença da Petrobrás no Juruá e regiões limítrofes. […] Violentados, sobretudo, pelas equipes de prospecção sísmica que nos deslocamentos através da mata atingiam aldeias e áreas de ocupação das diferentes etnias, os grupos locais receberam o impacto de um imenso aparato tecnológico que não imaginavam sequer existir e que, ao se instalar em suas áreas, trouxe consigo uma leva enorme de homens […] de todos os níveis funcionais no quadro da empresa” (Neves, 1996).
Ninguém sabe qual foi o impacto da ação da Petrobrás sobre os Tsohom-dyapa que se mantêm isolados; também não se sabe o impacto que teve para eles a demarcação da Terra Indígena Vale do Javari, onde vivem hoje. Como se pode notar, sabe-se muito pouco sobre os Tsohom-dyapa.

 Habitações

Tudo indica que os Tsohom-dyapa, assim como faziam os Kanamari no passado (Costa, 2007; Tastevin, s/d.), constroem abrigos temporários ao redor de malocas, que são habitações mais permanentes. As malocas estariam situadas nas margens dos pequenos igarapés da região por eles habitada. Apesar de construírem malocas, os Tsohom-dyapa, como muitos Kanamari, estão sempre em deslocamento, fato que levou Neves a caracterizar esse padrão de mobilidade a partir de um “ciclo nômade” (Neves, 1996). Segundo Heck (1979), esse povo pode ser considerado praticamente nômade.

Não se pode precisar com certeza o local das malocas tsohom-dyapa, nem saber ao certo se as malocas que foram fotografadas em sobrevoos na região são deles. Há um outro grupo isolado, de língua pano, que vive um pouco mais a oeste da região dos Tsohom-dyapa, no alto curso do igarapé São José e arredores (Melatti, 1981). Não se sabe até que ponto as áreas desses grupos se sobrepõem, nem o tipo de contato que existe entre eles. Assim, não se pode afirmar, com base em sobrevôos e fotografias aéreas, se as malocas desta região são dos Tsohom-dyapa ou destes grupos pano. Há indícios de que os Tsohom-dyapa perambulem por uma área mais ampla do que a região da bacia do Jandiatuba, e alguns já foram vistos pelos Kanamari nas margens do alto curso do rio Itaquaí em tempos recentes (Costa, 2007) e mesmo em tempos mais remotos (Tastevin, s/d.).

Os tapiris dos Tsohom-dyapa são construídos com dois pares de paus fincados a certa distância um do outro, como “V” emborcado, e um outro pau em cima como cumeeira. A cobertura é feita com folhas de paxiubão, palheiro, jarina, jaci ou patauá (Coutinho Junior, 1998).

 Nota sobre as fontes

Não existe nenhum trabalho acadêmico, em nenhuma área de conhecimento, que trate especificamente dos Tsohom-dyapa. Este verbete foi construído a partir de textos que falam majoritariamente sobre os Kanamari, e alguns que falam sobre etnias vizinhas. Os textos utilizados em sua elaboração são citados ao longo do verbete e compõem a bibliografia.

 Fontes de Informação

Carvalho, Maria Rosário. Os Kanamari da Amazônia Ocidental. História, Mitologia, Ritual e Xamanismo. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2002.


Costa, Luiz. “Os outros dos outros. Os Kanamari no Vale do Javari”. In: Beto Ricardo & Fany Ricardo (eds.). Povos Indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.


Costa, Luiz. As Faces do Jaguar. Parentesco, História e Mitologia entre os Kanamari da Amazônia Ocidental. Tese de doutorado, Museu Nacional/UFRJ, 2007.


Deturche, Jeremy. “Katukina do Rio Biá”. In: Enciclopédia dos Povos Indígenas, site do Instituto Socioambiental, 2007.


Erikson, Philippe. “Uma singular pluralidade: a etno-história pano”. In: Manuela Carneiro da Cunha (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.


Erikson, Philippe. La Griffe des Aïeux. Marquage du Corps et Démarquages Ethniques chez les Matis d’Amazonie. Paris: Editions Peeters, 1996.


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