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domingo, 4 de fevereiro de 2024

Fermentação de Frutas Indígenas e As Guerras do Cajú

 
Todos os anos, nos meses de agosto a janeiro, os Aimorés, Tremembés e Goitacás e outros indígenas da etnia Jê, invadiam  as terras litorâneas, de onde foram expulsos no passado, para entrar em conflito com os Caetes, Tupinaba e outras etnias do tronco Tupi-Guarani - motivo ? - O Caju!

As Guerra e os Caju - Dois Prazeres Ancestrais

Segundo Lawrence H. Keeleyem seu livro War Before Civilization, relata que entre os povos indígenas das Américas, somente 13% não se envolvia em guerras com os vizinhos pelo menos uma vez ao ano. 

As chamadas "guerras do caju" eram uma das guerras cíclicas, como a Guerra do milho (guerra do avati) ou a época da desova de algum peixe, como a tainha (guerra da piracema). que foram ricamente documentadas, evidenciando uma ligação entre a natureza e os conflitos étnicos. 

A relação dos indígenas com o caju transcende o aspecto alimentar, ao contrário do cauim, o caju não precisava de processo de fermentação nem de ritual de preparo - o calor e a umidade permitiram que esse fruto fermentasse ainda na árvore, como um rico presente dos Deuses, transformando-se em símbolo estratégico em contextos de guerras frequentes entre aldeias de etnias do grupo étnico Tupi-Guarani que ocuparam a força todo o litoral, contra so do grupo Jê que foram expulsos para o interior. 

Nos mêses de agosto a janeiro, período que é marcado pela safra deste fruto, marcava o tempo propício para empreender batalhas, a mobilização militar indígena envolvia assembléias compostas por homens adultos, decidindo questões bélicas. 

A logística incluía a construção de canoas, preparação de flechas, cozimento de farinha e consulta ao pajé, que interpretava sonhos. As mulheres desempenhavam papel vital, carregando alimentos, cuidando da logística e acompanhando os guerreiros, enquanto os guerreiros, liderados pelos "roncadores," marchavam em fila indiana, sendo instigados pelo som da inúbia. 

Uma descrição de Thevet revela um pouco da divisão de tarefas:

Seguem as esposas a seus maridos na guerra, não porque vão combater, a exemplo das amazonas, mas porque precisam carregar os alimentos e deles cuidar, assim como transportar outras munições necessárias à guerra (pois, algumas vezes, empreendem viagens, que duram de cinco a seis meses). E, quando partem para essas longas guerras, os selvagens lançam fogo às suas palhoças, ocultando, na terra, os bens de maior valor, que só tornam a buscar quando regressam da empresa.

Na ato da partida (também em todas as ocasiões em que levantam acampamento), os “roncadores” fazem soar a inúbia, espécie de oboé destinado a alvoroçar e a incentivar os guerreiros. Cada guerreiro transporta suas armas, a rede e sua porção de farinha. Os líderes são acompanhados pelas mulheres. Marcham em fila indiana, os mais valentes na dianteira. No mar, não se afastam muito da costa. Assim que se atingem terras alheias, o espia trata de abrir o caminho ao exército.

Com relação à capacidade de mobilização, para a guerra de cerco, André Thevet relata expedições militares que duram até um semestre. Hans Staden testemunha um cerco de quase um mês. José de Anchieta testemunha operações militares dos tamoios envolvendo quarenta e oito canoas, o que na média significava uma tropa de quase quinhentos guerreiros.

O uso de plumas e adornos destacava-se como parte integrante do aparato militar. As expedições militares, muitas durando meses, testemunhavam a resistência e mobilização significativas das tribos, revelando uma complexa estrutura social e militar entre os povos indígenas.

Durante a safra de caju os indígenas macro-jês do interior realizavam incursões ao litoral dominado pelos tupis para colher a fruta. A resistência tupi levava à expulsão de muitas etnias macro-jês para o interior do Brasil.


No entanto, algumas aldeias macro-jês, como os tremembés, aimorés e goitacás, conseguiram resistir e permanecer na costa brasileira. Os goitacás, por exemplo, foram derrotados somente em 1631, dispersando-se pelo interior dos atuais estados brasileiros de Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais, passando a ser conhecidos como puris, coroados e coropós.

As etnias macro-jês ofereceram grande resistência à colonização portuguesa, sendo responsáveis pela morte de colonos e pelo fracasso de várias capitanias hereditárias. Algumas aldeias jês se aliaram aos neerlandeses durante a invasão do nordeste brasileiro no século XVII, como a nação tarairiu.

Além disso, as aldeias específicas, como os tremembés, eram originalmente nômades e ocupavam extensas regiões litorâneas. Eram pescadores, cultivavam mandioca e algodão, e apreciavam o caju. Os aimorés, por sua vez, resistiram aos colonos portugueses e foram responsáveis pelo fracasso de capitanias como Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo.

Os registros históricos destacam a agressividade dos macro-jês, como os Aimorés (botocudos), considerados pelos colonizadores como muito agressivos. A descrição dos aimorés como inimigos formidáveis, "gente esquisita e agreste", destaca a beligernâcia entre etnias antigas do Brasil.

O caju (Anacardium occidentale) era sem dúvida a fruta mais adorada pelos antigos indígenas, a pontao de guerrearem por ela. No entanto, outras frutas como o Kumbaru, chamado Chañar na Argentina e no Chile (Geoffroea decorticans) e a Algaroba (Prosopis juliflora) também ofereciam bebidas fermentadas naturalmente bastante apreciadas.

Presente dos Deuses

Além do caju, outras frutas tiveram grande impacto nas comunidades indígenas por fermentarem ainda presas às árvores, como o chañar, que é citado como uma fruta que desempenha um papel na culinária indígena. Vamos abordar algumas das frutas citadas:

Kumbaru (Chañar no sul):

Outra fruta que fornecia o tal presente dos Deuses era o Kumbaru (Geoffroea decorticans), chamado pelo argentinos e chilenos de Chañar, que eram esmagados e misturados com água, passando por um processo de fermentação para criar uma variedade de bebida.

É uma árvore típica da região Sul do Brasil, muito apreciada pelos Carijós e Charruas, que amadurecia durante o verão. Esses frutos, de odor forte e farinhentos, semelhante ao cheiro de percevejos na opinião do autor, eram esmagados, misturados com água e deixados ao calor para fermentação (Florian Paucke, 2010, p. 308). 

Ao contrário das outras variedades de bebida, essa não parece ter um preparo ou consumo especial.

Algarroba:

Temos também a bebida realizada a partir do fruto da algarroba, conhecida como amap para indicar a árvore específica. Com coloração amarelada, essa fruta era coletada em fevereiro nos bosques e consumida apenas quando madura. Após ser seca ao sol e esmigalhada usando os pés, era colocada em um couro, similar ao processo de preparação do mel. 

Água era adicionada e, em seguida, a mistura era deixada ao sol para fermentar. Essa bebida exalava um odor tão forte que era possível identificar a casa onde era feita de longe. 

Florian Paucke destaca aspectos positivos dessa variedade, como sua capacidade de alimentar bem, expulsar umidades ruins do corpo, trazer boas forças e encorpar o indivíduo. Essa específica variedade também era chamada de chicha por outros povos, e pelos mocovies, era denominada latoga, sendo o ñapé o couro utilizado no processo de preparo (Florian Paucke, 2010, p. 308).  

Utilizada na preparação de uma bebida específica, essa fruta era colhida nos bosques durante determinada época do ano. A algarroba, após secar ao sol e ser fermentada, resultava em uma bebida com propriedades alimentares e energéticas.
A algarroba era frequentemente adicionada à bebida de milho na preparação de bebidas fermentadas pelos indígenas na região da Bacia do Prata.

Aluá – Abacaxi e outros 

O aluá, fermentado de abacaxi é dos fermentados de frutas no Brasil, uma fascinante fusão de influências culturais, com imigrantes e colonizadores desempenhando papéis significativos nesse desenvolvimento. 


O refinamento desses processos, exemplificado pelo método de enterrar garrafas do aluá para assegurar temperaturas adequadas, destaca não apenas a habilidade técnica, mas também a valorização da fermentação espontânea. Essa forma de fermentação ocorre naturalmente, quando os açúcares presentes nas frutas entram em contato com fungos suspensos no ar e nas cascas das frutas. É interessante notar que alguns grupos indígenas consideravam essa fermentação espontânea como um presente dos deuses, enfatizando a ligação cultural e espiritual com esses processos.

A preparação do Aluá de abacaxi envolve fermentação, resultando em uma bebida refrescante e gaseificada. Aqui está uma receita básica:

Ingredientes:

Casca de abacaxi (pode incluir a polpa, mas geralmente é focado na casca para evitar que a bebida fique muito doce)
Açúcar ou rapadura para adoçar
Gengibre para sabor e picância
Água potável
Milho, que é o agente fermentador

Instruções:

Limpe bem a casca do abacaxi.

Corte a casca em pedaços pequenos.

Em um recipiente grande, adicione a casca de abacaxi, gengibre ralado, açúcar ou rapadura a gosto e milho.

Cubra os ingredientes com água potável.

Deixe a mistura descansar em local fresco e escuro por alguns dias. O tempo de fermentação pode variar, geralmente de 2 a 5 dias, dependendo da temperatura ambiente.

Mexa a mistura ocasionalmente para garantir uma fermentação uniforme.
Coe a mistura para remover os sólidos, resultando no líquido fermentado.
Engarrafe o líquido e deixe descansar por mais alguns dias para desenvolver gás natural.

Mantenha refrigerado e sirva frio.

Outras frutas podem ser adicionadas para experimentar diferentes sabores, como maçã, pêssego ou morango. O Aluá é uma bebida bastante versátil, permitindo variações conforme as preferências regionais e pessoais.

Enterra da Garrafa

A prática de enterrar garrafas está associada a métodos tradicionais de fermentação e maturação de bebidas, como o Aluá. Enterrar as garrafas serve a diversos propósitos no processo de produção.

Isolamento Térmico e Controle Ambiental: Ao enterrar as garrafas, cria-se um ambiente mais estável termicamente, protegendo a bebida de variações de temperatura. Isso contribui para o desenvolvimento de sabores e aromas característicos.

Proteção contra Luz: A ausência de luz no subsolo evita reações químicas indesejadas causadas pela exposição à luz, mantendo a integridade dos compostos presentes na bebida.

Pressão Controlada: A fermentação pode gerar dióxido de carbono, resultando em uma bebida gaseificada. Enterrando as garrafas, é possível controlar a pressão gerada durante esse processo.

Simbolismo Cultural: Além dos benefícios técnicos, o ato de enterrar as garrafas pode ter significados simbólicos ligados a práticas culturais e rituais locais, tornando-se uma parte integrante da tradição.

Essa prática ancestral não apenas influencia as características organolépticas da bebida, mas também destaca a riqueza cultural e a ligação com as práticas tradicionais de comunidades específicas.

Preservação e Maturação: Enterrar as garrafas proporciona condições ambientais consistentes, mantendo uma temperatura mais estável e protegendo a bebida contra variações climáticas. Isso contribui para uma fermentação mais controlada e maturação adequada, resultando em um Aluá com sabores aprimorados.

Microflora do Solo: O contato com o solo acrescenta uma dimensão única à fermentação. Os microrganismos presentes no solo podem influenciar a composição e o sabor do Aluá, criando características terrosas distintas. Essa prática não apenas conserva, mas também enriquece a bebida com elementos do ambiente local.

Rituais e Celebrações: Além dos benefícios práticos, enterrar as garrafas assume um significado ritualístico. Desenterrar a bebida em momentos específicos, como festividades ou rituais, simboliza a transformação e renovação. É uma maneira de conectar a bebida à vida comunitária e destacar seu papel em eventos significativos.

Transmissão Cultural: A decisão de enterrar as garrafas foi transmitida ao longo das gerações como parte do conhecimento cultural indígena. A prática reflete a sabedoria acumulada sobre a fermentação, respeitando a natureza e incorporando elementos do ambiente ao processo.


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Web:

Dialetico – "Tapuias"
Jornal A União – "A origem siberiana dos Tarairus."
Olimpiadas Nacionales de Contenidos Educativos en Internet – "La cultura Guaraní: ¿Un Paraíso Terrenal?"
Villarrica, seção Folklore – "Los Guaraníes"
Povos Indígenas no Brasil – "Tupiniquim," "Potiguara," "Tremembé"
Blog Família Naves – "Cidade de São Paulo (458 anos), Berço da família Naves no Brasil"
IBGE, Brasil 500 – "Os números da população indígena."

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