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quarta-feira, 24 de abril de 2019

Warekena

Toy Art Warekena
#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
217WarekenaWarekena BaréAruak
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
AM887Funasa 2010
Venezuela513INE 2001


Os índios Baré e Werekena (ou Warekena) vivem principalmente ao longo do Rio Xié e alto curso do Rio Negro, para onde grande parte deles migrou compulsoriamente em razão do contato com os não-índios, cuja história foi marcada pela violência e a exploração do trabalho extrativista. Oriundos da família lingüística aruak, hoje falam uma língua franca, o nheengatu, difundida pelos carmelitas no período colonial. Integram a área cultural conhecida como Noroeste Amazônico.

Localização

A área formada pelo Rio Xié e alto curso do Rio Negro, acima da foz do Uaupés, é ocupada principalmente pelos índios Baré e Werekena, sendo que mais de 60% dos índios do Xié se identifica como Werekena. São aproximadamente 140 sítios e povoados, onde residem cerca de 3.200 pessoas. A maioria da população vive em “comunidades”, como são chamados esses povoados na região, que geralmente compõe-se de um conjunto de casas de pau-a-pique construídas em torno de um amplo espaço de areia limpa; uma capela (católica ou protestante); uma escolinha; e, eventualmente, um posto médico. Há, porém, comunidades que não possuem nada além das casas de moradia. Os principais povoados são Cucuí, Vila Nova e Cué-Cué.
Crianças Warekenas

No Rio Xié existem hoje nove comunidades: Vila Nova, Campinas, Yoco, Nazaré, Cumati, Tunu, Umarituba, Tucano e Anamuim. As comunidades situadas à montante da cachoeira de Cumati são: Tunu, Umarituba, Tucano e Anamuim. No caso de Tunu, localizada numa ilha, sua população vive majoritariamente em sítios pequenos, tais como Macuxixiri ou Cuati, indo para a comunidade apenas na época das festas de santo, em junho.

Acima de Cucuí, o Rio Negro deixa o Brasil, passando a ser o limite entre Venezuela e Colômbia. À montante do canal do Casiquiari, que liga ao Orinoco, na Venezuela, o Rio Negro é denominado de Guaínia. O curso do Rio Negro entre a foz do Uaupés até a cidade de Santa Isabel é a área que atualmente concentra o maior contingente populacional de todo o noroeste amazônico. As cidades de Santa Isabel e, sobretudo, São Gabriel da Cachoeira atuam como pólos de atração de populações que antes viviam mais no interior, nas margens dos formadores do Rio Negro. O fluxo populacional das comunidades do interior do município em direção à cidade de São Gabriel se caracteriza pela busca de complementação do estudo escolar, trabalho remunerado, serviço militar e proximidade do comércio com preços mais acessíveis que os praticados pelos regatões e barcos de comerciantes que se deslocam pelos rios.

 Línguas

Os Baré e os Werekena falavam línguas da família Aruak. Mas com o contato com missionários e a colonização adotaram a Língua Geral ou nheengatu e, atualmente, esta língua representa uma marca de sua identidade cultural. Ainda assim, algumas comunidades do Alto Xié falam Werekena, utilizando-a situacionalmente.

O nheengatu é uma forma simplificada do Tupi antigo, falado em grande parte do Brasil nos primeiros séculos da colonização portuguesa, e que foi adaptado e amplamente difundido pelos missionários jesuítas. Com o tempo e o predomínio do português como língua nacional, o nheengatu foi perdendo terreno. Porém, continua vivo e muito usado na calha do Rio Negro, em seu curso médio e alto, inclusive em São Gabriel, e em alguns de seus afluentes, como no Baixo Içana e no Rio Xié.

 Histórico do contato

Os Werekena entraram em contato com o “homem branco ” provavelmente no início do século XVIII, havendo várias referências a este povo em relatos e documentos desse século. Em 1753, o Padre Jesuíta Ignácio Szentmatonyi (ver Wright 1981:603-608) noticiava que os “Verikenas” habitavam o Rio “Issié” (Xié), falando sua própria língua, muito parecida com a dos Mallivenas. Indicava também que o chefe deles havia sido “convidado” dois anos antes para “descer” o rio e adotar o cristianismo. Outras fontes (Caulin 1841: 70-75; Cuervo 1893, t. III: 244, 322-323, 325, 327; Arellano Moreno 1964:389) indicam a presença de aldeias Werekena em 1758-60 nos rios Guainía (acima da foz do Cassiquiari), Tiriquin, Itiniwini (atual São Miguel e seus afluentes Ichani, Ikeven ou Equeguani e Mee), Atacavi, Alto Atabapo e Caflo Maruapo (afluente do Cassiquiari), região onde ainda hoje vivem os Werekena, na Venezuela. Estas mesmas fontes indicam a presença desses índios, em 1767, na confluência do Cassiquiari com o Guainía e na boca deste canal com o Orinoco, trazidos pelos colonizadores do Itiniwini e do Caño Muruapo.

O Padre José Monteiro de Noronha ([1768] 1856: 79-80), indica a presença dos “Uerequena” em 1768, no Rio Xié, convivendo com outros povos: “Baniba” (Baniwa), Lhapueno (?), Mendó (?) e outros. Viveriam também no Rio Içana, juntamente com os Baniba, Tumayari (?), Turimari (?), Deçana, Puetana (?) e outros. Para este padre, os Uerequena “chamados comumente, por corrupção do vocábulo, Ariquena, tem por distintivo hum furo mui largo entre a cartilagem, e a extremidade inferior das orelhas em que metem molhos de palha. Entre eles se acharam muitos, que antecedentemente a comunicação e conhecimento dos brancos, tinham nomes hebraicos, huns puros e outros com pouca corrupção, como: Joab, Jacob, Yacobi, Thome, Thomequi, Davidu, Joanau e Marianau”. Estas informações sobre os Werekena serão repetidas ao longo do século XVIII, com algumas modificações e acréscimos, pelos viajantes da região.

Nos anos de 1774-1775, grupos de “Uariquena” estariam morando em Barcelos, provavelmente “descidos” em anos anteriores pelos colonos portugueses, conforme o relato de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio (1825: 104-114). Este militar português também fez referência à presença de “Uerequena” no Rio Içana, enquanto que no Xié informou que viviam os “Assauinaui” (provavelmente trata-se de uma fratria Baniwa, os Dzauinai). Dos “Uerequena”, afirmou novamente que são “célebres pela comunicação, que antecedentemente tiveram com os brancos, e usarem os nomes hebraicos, como são: Joab, Jacobi, Thome, Thomequi, Davidu, Joanau, e Marianau. He esta nação antropófoga é célebre por usar de escrita de cordões, na forma dos quipos dos antigos peruvianos, com o que transmitem os seus pensamentos a pessoas distantes, que entendem, e sabem decifrar aqueles nós, e cordões, que também lhe servem para uso aritmético”.

No ano de 1784, Manoel da Gama Lobo d’Almada, militar português, não aponta ter avistado qualquer indígena nas margens do Rio Xié, mas dá sinais de que havia muitos – embora não os nomeie – entre as cabeceiras deste rio e o Tomo, afluente da margem direita do Guainia:
Território Warekena

“entrei pelo rio Xié e naveguei por ele aguas acima até a um braço oriental dele, chamado Uheuaupuiy [provavelmente igarapé Teuapuri], pelo qual subi até dar em um torrão de terra baixa aonde achei por entre matos a trilha de um caminho estreito e fundo mas bem seguido. (...) hera preciza toda a boa ordem na marcha porque havia muita gentilidade, a quem estávamos ouvindo todas as madrugadas tocarem os seus trocanos, espécie de tambores. Duas vezes nos saíram espias deles armados de Curabis que são umas pequenas flechas ervadas com que nos atiravam; mas com alguns tiros de vanguarda os fizemos retirar e seguimos pacificamente a nossa marcha”.

Alexandre Rodrigues Ferreira ([1885-88] 1983:253-254) viajou pelos rios Xié e Içana em 1785, informando-nos que foi advertido no Xié pelo índio piloto de que o “gentio Uerequena as tinha [sentinelas] sempre avançadas neste passo [cachoeira], para ser informado das canoas que chegavam, e segundo as forças que nelas reconheciam, e de que davam parte às espias, assim se resolviam a abalroá-las ou não”. Interessante observar que o naturalista, chegado à cachoeira de Cumati, anota no seu diário que “d’ella para cima ha bastante piassaba”, anunciando desde já o interesse econômico pelos mananciais desse rio.

No Rio Içana, Alexandre Rodrigues Ferreira indica também a presença dos “Uerequena”, juntamente com os Banibas, Termaisaris, Turimaris, Duanaes, Puitenas e outros. Dos Uerequena, apesar de não tê-los visto pessoalmente, repete as afirmações de Monteiro de Noronha sobre a comunicação por cordões e seus nomes hebraicos, e diz fazerem um largo furo entre a cartilagem e a extremidade inferior das orelhas para nele introduzirem molhos de palha” (ibid: 249). Numa memória escrita posteriormente, em 1787 (1974: 69-73), o naturalista revela uma série de características dos Uerequena, certamente advindas de informações fornecidas por terceiros, tais como os que acompanharam a “tropa” chefiada por Miguel de Sequeira Chaves realizada em 1757, para reprimir um “ataque” de índios rebelados (provavelmente no Baixo Rio Negro), na qual havia alguns “Warekena domesticados”. Dentre essas características, pode-se destacar, além do furo na orelha, o fato de que eram “antropófagos”, de que costumavam praticar a eutanásia com velhos e enfermos irremediáveis e de que possuíam “currais” de prisioneiros.

No início do século XIX, o cônego André Fernandes de Souza ([c.1822] 1848: 411ss.) repetia as informações sobre os Werekena advindas de Monteiro de Noronha e Alexandre Rodrigues Ferreira: “os índios da nação Uerequena são antropófagos e tem o distintivo de trazerem as orelhas furadas nas cartilagens inferiores, em que metem pedaços roliços de pau, de modo que alguns já lhe chegam as orelhas aos ombros a força do uso dos paus”. Habitantes do Rio Içana, os Uerequena conviveriam com os Baniu, Tumayari, Turimari, Deçana e Puetana. Não nos fornece nenhuma referência aos habitantes do Rio Xié. Refere-se também a Marcelino Cordeiro, o qual teria feito incursões contra os índios, capturando-os à força como prisioneiros, tendo havido reações por parte dos índios.

Todos esses relatos, apesar de serem algo duvidosos quanto à precisão da descrição física e cultural dos Werekena, pois revelam que são majoritariamente informações de terceiros sobre esse povo, parecem deixar claro, porém, que tinham uma população razoavelmente grande, apesar dos descimentos e epidemias terem provocado baixas e intensas migrações.
Warekenas tocando o Cariço

Os relatos também apontam que deviam ocupar um território entre o Içana, o Xié e o Guainía, mantendo estreitas relações (inclusive guerras) com seus vizinhos, pelo menos até meados do século XIX, período em que as informações históricas são muito precárias sobre aquela região. A partir deste período voltam a surgir algumas referências a respeito dos Werekena em textos de natureza diversa, que apontam para uma diminuição populacional do grupo, na medida em que os brancos aumentam sua presença na região.

A longa história de contato entre comerciantes de produtos extrativos e os índios do Rio Negro também foi iniciada no século XIX. Comprova-no um ofício enviado pelo Presidente da Província do Pará ao Ouvidor do Rio Negro em 1821, a respeito da “civilização e aldeamento dos índios”, no qual invoca-lhe “punir severamente os comandantes e autoridades que maltratarem os gentios, e aqueles mercadores que os enganarem em suas permutações, desacreditando assim a moral que se lhes pretende insinuar”. Ou seja, o chefe de Estado procurava, já em 1821, coibir os excessos contra os índios feitos pelos “mercadores” e também pelas autoridades civis e militares. Muitas vezes na história daquela região ficaria difícil distinguir comerciantes de autoridades, pois todos constituíam as duas faces da mesma moeda, que era a exploração violenta e abusiva do trabalho indígena.

Tanto do lado brasileiro como venezuelano, a partir do início do século XIX, muitos índios foram envolvidos na exploração extrativa do cacau, da salsaparilha, da piaçaba, do puxuri, da balata e depois da borracha, entre outros produtos, sendo submetidos a trabalhos compulsórios pelos comerciantes. Isto deu início a migrações forçadas e fugas de vários índios que foram transportados pelos comerciantes para trabalharem nos diversos mananciais de produtos extrativos (Cf. Wright, 1992:263-266).

Viajando pelo Rio Negro em 1848-50, o naturalista inglês Alfred Russel Wallace fornece outras indicações. Em seu relato de viagem ([1853] 1979:149; 308), informa que os “Ariquenas” estariam estabelecidos no Rio Içana, juntamente com os Baniua, Bauatanas, Ciuci, Quatis, Juruparis, Ipecas, Papunauas, que correspondem a fratrias baniwa. Quanto ao Rio Xié, afirma que “os indígenas que habitam suas margens são pouco conhecidos e selvagens” e “desenvolve-se nele um incipiente comércio”. Entretanto, nenhuma observação sobre quem e como seriam esses “indígenas selvagens” do Xié, e qual seria esse comércio incipiente, que poderia ser de piaçava, cuja produção era já significativa nessa época e encontrada nas páginas de seu relato. Aos “Ariquena” habitantes do Içana, reporta apenas que “do mesmo modo que os cobeuas, atacam as outras tribos para capturarem prisioneiros. Seus conceitos religiosos e superstições assemelham-se bastante aos dos Uaupés”.

Poucos anos depois de Wallace, entre 1852 e 1854 aproximadamente, o Frei Gregório José Maria de Bene, padre capuchinho, e o Diretor dos Índios Jesuino Cordeiro, comerciante no Alto Rio Negro, segundo os documentos registrados por B. F. Tenreiro Aranha na Revista do Arquivo do Amazonas (1906: 67-68), apontavam os “Uriquena” como habitantes do Rio Içana, juntamente com os Baniua, Piuns, Cadauapuritaua, Murureni, lurupari, Siussi, Quaty, Ipeca, Tapibira, Tatutapia, Caetitu, lujudeni, Uaripareri (todas fratrias baniwa). Segundo Tenreiro Aranha, o citado Diretor dos Índios conhecia também o Xié, mas o historiador amazonense não fornece, à luz dos documentos que apresenta, nenhum dado referente à população que ali residia.

Em 1857, o capitão de artilharia Joaquim Firmino Xavier (apud Avé-Lallement, [1860] 1961: 1 22ss.), vem assumir no Alto Rio Negro a tarefa de “domiciliar índios na fronteira”, ou seja, “colonizar com índios (...) o Rio Içana (...) e o Xié (...)”, índios com quem se encontrou pessoalmente, o que talvez permita inferir quem sejam aqueles “selvagens pouco conhecidos” de Wallace e visitados por Jesuino Cordeiro no Xié. Outra testemunha desse século é o conde italiano Ermano Stradelli, que desceu o Rio Negro, desde Cucuí, em 1881. Segundo ele, o Xié estava quase deserto. É possível que a população indígena estivesse vivendo nas cabeceiras e em pequenos igarapés, justamente para evitar o contato destrutivo com os brancos.

A leitura dessas fontes parece indicar que os Werekena viajariam, ou manteriam uma vida itinerante entre o Içana, Xié e o Gualala, provavelmente pelo Rio Tomo e diversos “varadores”, itinerância ativada ainda mais pelas pressões da penetração dos brancos, tanto do lado venezuelano quanto brasileiro. Tal hipótese talvez possa explicar as referências que se fazem a esse povo, em épocas distintas, no Içana, no Xié e no Guainía. Quanto aos movimentos migratórios referidos neste documento, porém, seriam causados em grande parte – como evidencia não só o relato de Firmino Xavier, mas o do próprio Avé-Lallement – pela repressão que os militares vinham fazendo contra os movimentos messiânicos surgidos naquela época entre os índios do Içana e Xié (a esse respeito ver o item “histórico do contato” da página “Etnias do Içana”), como também pela obrigatoriedade desses índios trabalharem nas obras da fortaleza de Cucuí. Certamente, em anos imediatamente anteriores a 1857, os militares tenham provocado muita violência contra os índios, inclusive aos Werekena, pois nada mais poderia explicar o temor que haviam adquirido em relação aos oficiais, provocando tamanha evasão populacional, que implicou o abandono de casas recém-construídas, roçados e áreas de caça, pesca e coleta, enfim, fatores essenciais a sua existência física e cultural (ver Wright, 1981: 289ss).

Longas migrações foram levadas a cabo pelos índios devido às fugas, certamente relacionadas, entre outros motivos, à superexploração dos comerciantes. O que parece certo é que houve baixas populacionais em todos os grupos do Içana e Xié nesse período, grassando entre os índios, de forma profunda e duradoura, o pavor de avistar qualquer homem branco se aproximando de suas aldeias. Nesse sentido, esses relatos reforçam a hipótese de que violências de ambos os lados da fronteira provocavam a diminuição não só da população indígena, mas sua migração compulsória ora para o Brasil ora para a Venezuela.

Muitos desses aspectos da história no século XIX desdobraram-se no século XX. A presença dos comerciantes intensificou-se e a exploração do trabalho indígena nos seringais, piaçabais e balatais atingiu em cheio os índios do Rio Negro. Um velho Baré, por exemplo, conta que seu pai, nascido em 1888, trabalhou com o comerciante português Antonio Castanheira Fontes, que no início deste século era “o maior comerciante do Baixo Rio Negro”, e “chegou a ver na casa do comerciante português um toco de pau-brasil com correntes para amarrar os fregueses e surrá-los com chicote”.

Outras leituras

Relato do baré Braz de Oliveira França sobre a história do contato com a sociedade não indígena.

A partir do início do século XX, muitas famílias que haviam debandado para a Venezuela retornaram para o lado brasileiro, motivadas não só pelas revoluções que ocorriam lá, mas também pela violência de comerciantes que exploravam a produção extrativa dos índios no Guainia e Casiquiari. Uma vez no Brasil, os índios novamente tiveram que enfrentar a exploração dos comerciantes, em busca de piaçava, de borracha e de sorva, além dos militares de Cucuí.

O sanitarista Oswaldo Cruz, num relatório que escreveu sobre o vale do Amazonas no início do século XX, menciona a migração forçada de índios oriundos do Alto Rio Negro para o “Baixo Rio Negro”, pois afirma que “quando os proprietários de seringais do Rio Negro têm necessidade de novos fregueses vão procurá-los muitas vezes além de S. Gabriel, no Rio Caiairi (Uaupés), muito habitado, e além, nos limites da Venezuela (1913:106). Esta migração, neste período e posteriormente, passou também a ter, em parte, um conteúdo voluntário, pois muitos índios vieram provavelmente ao “Baixo Rio Negro” em busca de seus parentes escravizados ou seus descendentes que permaneceram na área. Muitas famílias também conseguiram fugir dos patrões e retornar às suas regiões, sobretudo as que escaparam das epidemias que grassavam nessas zonas de exploração, como a malária.

Curt Nimuendajú, no seu relatório de viagem pelo Alto Rio Negro feito para o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), em 1927, faz um relato sobre os comerciantes e suas relações com os índios que, com as devidas proporções, poderia ser perfeitamente aplicado à situação atual da região:

“Todos os que negociam com índios sabem perfeitamente que, salvos raras exceções, nenhum deles paga voluntariamente o que deve, mas só debaixo de maior ou menor pressão exercida pelo credor. Em vez porém de lhe negar a vista, o comerciante, pelo contrário, trata de arrumar quanto antes uma dívida nas costas do índio, já calculando de adquirir desta forma o “direito” de cativar o devedor e de obrigá-lo ao pagamento da maneira como o negociante bem entender, ficando o índio assim muitas vezes em condições piores que as do cativeiro, legal, pois não representa para o seu senhor um objeto de valor intrínseco que faz parte de sua fortuna, senão somente o valor da dívida” ([1927] 1982:183).

Na mesma direção, o cientista José Cândido de Melo Carvalho dá esse depoimento em 1949, quando viajou por toda região do Alto Rio Negro: “Todos com quem conversei neste trecho (Médio Rio Negro) são unânimes em afirmar que certos brancos desta região exploram demasiadamente os índios, obrigando-os a levarem uma vida de verdadeira escravidão” (1952:23). A tradição oral indígena não oferece qualquer contestação a essas histórias narradas por viajantes e pesquisadores.

Ocorreu também que muitos comerciantes brancos, como Germano Garrido, casavam na região com mulheres indígenas, muitas do povo Baré, provocando grande miscigenação na área do Rio Negro, e criando vínculos de parentesco e compadrio entre os comerciantes brancos e os índios, abrindo assim espaço para alguns “cunhados” indígenas que atuavam com pequenos intermediários entre eles e os fregueses.

 Vida religiosa

As comunidades localizadas à jusante da cachoeira de Cumati – Nazaré, Yoco, Campinas e Vila Nova – têm uma população majoritariamente protestante, sob a influência da Missão Novas Tribos do Brasil, que possui uma sede próxima à Vila Nova, quase na desembocadura do Rio Xié, com um contingente de quatro missionários permanentes.Esta sede instalou-se no Xié no início dos anos 1980, mas o trabalho missionário já era coordenado desde antes pela Missão localizada na foz do Rio Içana. Nestas comunidades, ao menos publicamente, não se bebe nem fuma, o que significa dizer que não fazem mais “festas de caxiri” nem dabucuris, nas quais a bebida e o tabaco são essenciais. Ali se realizam “Conferências”, que são as reuniões dos “crentes”. Entretanto, a maioria de seus habitantes, quando doentes, costuma procurar os pajés e benzedores das comunidades católicas, que ainda utilizam os recursos tradicionais como o tabaco, o paricá e as “rezas” (cantos), proibidos pelos missionários, para as atividades de cura.

As comunidades situadas à montante da cachoeira de Cumati – Tunu, Umarituba, Tucano e Anamuim – são católicas. Nas festas de santo, em junho, há grande abundância de bebida, comida, dança e rezas, por vários dias seguidos. As ladainhas são cantadas em latim, mantidas pela tradição oral desde os séculos XVIII ou XIX. Mas essa população também resguardou as tradições anteriores ao contato com os católicos, tais como a mitologia e os conhecimentos dos pajés.

A Igreja Católica nunca construiu uma Missão no Rio Xié, tal como existe em Assunção (Içana) e Taracuá, Iauaretê e Pari Cachoeira (Uaupés). Entretanto, os salesianos fazem sucessivas “visitas” ao Xié. Em 1992, quando perguntado ao morador mais idoso do rio, senhor Viriato Cândido, 97, qual teria sido o primeiro padre que ele avistou nesse rio, ele respondeu: “padre Lourenço”, ou seja, Lourenço Giordano, um dos que implantou a Missão Salesiana no Rio Negro em 1914; mas é bastante provável que a presença do catolicismo na região seja anterior.

A divisão religiosa do rio em duas partes coincide também com uma divisão geográfica representada pela cachoeira de Cumati. No entanto, há casamentos entre pessoas “de cima” e “de baixo” da cachoeira e as relações sociais são geralmente amistosas.

 Atividades econômicas

A população indígena do Rio Xié costuma trabalhar na extração da fibra da piaçabeira. Normalmente, a partir do mês de outubro até fevereiro do ano seguinte, os índios iniciam um período preparatório, que se confunde com a época do ano em que as famílias permanecem nas comunidades ou sítios, dedicando a maior parte do tempo de trabalho às atividades agrícolas, de caça, pesca e coleta.

Em seguida, há o deslocamento para as barracas de piaçava, situadas a montante, período que pode durar até dois meses, dependendo da distância entre a comunidade e o ponto da barraca. Nos meses da cheia, de maio a setembro, há o corte e o processamento da piaçava, posteriormente entregue ao patrão como pagamento de dívidas contraídas anteriormente. Trata-se, portanto, de um ciclo anual, em que a atividade extrativa não está dissociada das demais atividades cotidianas da vida Werekena e Baré, tais como as tarefas domésticas, a caça, a pesca, a coleta, o trabalho na agricultura e a confecção de objetos de trabalho. Desse modo, a atividade extrativa não está isolada, mas “encaixada” em um sistema maior de produção da vida econômica e social da população local.

Uma rede de pequenos, médios e grandes comerciantes foi responsável em grande parte pelo deslocamento compulsório de populações indígenas de suas regiões de origem para as áreas de exploração extrativista. Entretanto, quando do final do “fabrico” ou após a crise de certo produto, como foi o caso da borracha e da balata no século XIX, muitas famílias ou indivíduos retornavam a suas regiões. É nesse sentido que a exploração do trabalho extrativo pelos comerciantes é um dos componentes fundamentais para se compreender, hoje, as sociedades indígenas do Alto Rio Negro.

Do ponto de vista econômico e político, tal atividade mantêm-se com destaque entre os índios do Rio Xié, na medida em que a piaçava representa, juntamente com o cipó, o principal recurso natural cuja comercialização permite o acesso daquela população a alguns itens industrializados de que necessitam, estes adquiridos de comerciantes intermediários. Este é um fator que leva à continuidade dessa atividade na região e que lhe confere uma relevância social.

Desde a década de 70, principalmente devido ao decréscimo da atividade extrativa na região, provocada sobretudo por fatores externos, a categoria do “grande comerciante” deixou de existir na região, mantendo-se apenas, com poder reduzido, o “pequeno” e o “médio”, sendo o último responsável pela conexão com outros mercados. A maioria dos pequenos comerciantes é indígena e negocia com seus “patrões” mestiços ou brancos. Há porém muitos médios comerciantes, como os que atuam no Rio Xié, que mantém seu vínculo diretamente com os fregueses, sem o intermédio do pequeno comerciante. A tendência atual deste é ser independente, ou seja, vender o produto direto em São Gabriel da Cachoeira.

 Fontes de informação

FREIRE, José Ribamar Bessa.  Barés, Manaos e Turumãs.  Amazônia em Cadernos, Manaus : Museu Amazônico, v. 2, n. 2/3, p. 159-78, 1994.


MEIRA, Márcio.  Laudo antropológico Área Indígena Baixo Rio Negro.  Belém : MPEG, 1991.  183 p.
.  O tempo dos patrões : extrativismo da piaçava entre os índios do rio Xié (Alto Rio Negro).  Campinas : Unicamp, 1993.  128 p.  (Dissertação de Mestrado)
.  O tempo dos patrões : extrativismo, comerciantes e história indígena no noroeste da Amazônia.  Belém : MPEG, 1994.  27 p.  (Cadernos Ciências Humanas, 2)
OLIVEIRA, Ana Gita de.  O mundo transformado : um estudo da "cultura de fronteira" no Alto Rio Negro.  Brasília : UnB-ICH, 1992.  286 p.  (Tese de Doutorado)
Esta tese foi publicada no final de 1995 pelo MPEG de Belém dentro da Coleção Eduardo Galvão.

OLIVEIRA, Christiane Cunha de.  Uma descrição do baré (arawak) : aspectos fonológicos e gramaticais.  Florianópolis : UFSC, 1993.  104 p.  (Dissertação de Mestrado)
.  Dupla negação em Bare : uma explicação diacrônica.  Rev. do Museu Antropológico, Goiânia : UFGO, v. 3/4, n. 1, p. 105-20, jan./dez.99/00.
OLIVEIRA, Lúcia Alberta Andrade de.  Os Baré e as práticas ocidentais de saúde.  Manaus : UFAM, 2001.  96 p.  (Monografia)


SANTOS, Antônio Maria de Souza.  Etnia e urbanização no Alto Rio Negro : São Gabriel da Cachoeira-AM.  Porto Alegre : UFRS, 1983.  154 p.  (Dissertação de Mestrado)


VIDAL, Silvia M.  Al chamanismo de los Arawakos de Rio Negro : su influencia en la política local y regional en le Amazonas de Venezuela.  Brasília : UnB, 2002.  20 p.  (Série Antropologia, 313)
.  Liderazgo y confederaciones multietnicas amerindias en la Amazonía luso-hispana del siglo XVIII.  Antropológica, Caracas : Fundación La Salle, n. 87, p. 19-45, 1997.
.  Reconstrucción de los processos de etnogenesis y reproducción social entre los Baré del Rio Negro (Siglos XVI-XVII).  Caracas : CEA-IVIC, 1993.  (Tese de Doutorado)

Karitiana

Toy Art Karitana

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
97Karitiana
Caritiana, Yjxa
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
RO3202005



Os Karitiana constituem um dos muitos grupos do estado de Rondônia ainda pouco estudados pela Antropologia. Nos últimos anos, suas principais batalhas em nome de sua reprodução física e sócio-cultural têm sido a reivindicação do reestudo dos limites de sua Terra Indígena e o investimento na educação escolar, como forma de reforçar o ensino da língua karitiana – a única remanescente da família lingüística Arikém –, bem como de valorização dos costumes e histórias que os particularizam como povo.

 Denominação e população

Não se conhece a origem ou a etimologia da palavra Karitiana, que os próprios índios afirmam ter-lhes sido atribuída por seringueiros que penetraram seu território no final do século XIX e início do século XX. Os Karitiana denominam-se simplesmente Yjxa,  pronome da primeira pessoa do plural inclusivo – “nós”, também traduzido como “gente” –, em oposição aos Opok, os “não-índios” em geral, e aos opok pita, os “outros índios”.

A população Karitiana atual é de cerca de 320 pessoas (comunicação pessoal, Nelson Karitiana). Em agosto de 2003, Felipe Ferreira Vander Velden realizou um recenseamento que registrou 270 pessoas, das quais cerca de 230 residiam na aldeia Karitiana, ao passo que os outros 40 estavam distribuídos nas cidades de Porto Velho e Cacoal.

A depressão demográfica do passado [ver item Histórico do contato] foi revertida com sucesso e, nos últimos trinta anos a população Karitiana vem crescendo de forma espetacular. Os dados comprovam:

PopulaçãoAnoFonte
64 1970Monteiro 1984
651973D.Landin & R.Landin 1973
781976D.Landin 1988
1091983Leonel & Junqueira 1983
1681994Lúcio 1996
1851997Storto 1997
2201999ISA 2000
2702003Vander Velden 2004
3202005Nelson Karitiana (com. pessoal)
 Ou seja, somente na última década (até o censo de Vander Velden) a população Karitiana cresceu em 60%! Uma rápida visita à aldeia surpreende pelo elevado número de recém-nascidos e crianças, bem como de mulheres grávidas. Os Karitiana observam com alegria e contentamento a superação das antigas perspectivas de extermínio, apontando para um posicionamento ativo do grupo que, mesmo conhecendo técnicas anti-concepcionais, as teriam abolido como forma de fazer crescer novamente a população.

 Histórico do contato

Muito pouco se sabe da história dos Karitiana antes do despontar do século XX. A primeira referência a esse grupo na literatura data de 1909, pelo capitão Manoel Teophilo da Costa Pinheiro, um dos membros da Comissão Rondon; em 1910 o próprio Marechal Rondon menciona os Karitiana, então nas imediações do médio rio Jaci-Paraná: estes são os dados anotados por Curt Nimuendajú no seu Mapa Etno-histórico. Entretanto, ao que parece, os primeiros contatos com os brancos teriam ocorrido ainda no final do século XVIII, e intensificados com a chegada maciça de seringueiros e caucheiros em fins do século XIX. Todavia, os Karitiana permaneceram arredios ao contato sistemático até os anos 50, e a presença dos brancos tornou-se permanente apenas a partir de meados desta década, com a intervenção do SPI e de missionários salesianos.

O grupo parece ter apresentado notável mobilidade no transcorrer do século XX, possivelmente pressionado pelas frentes de penetração da sociedade envolvente. Se a referência do capitão Manoel da Costa Pinheiro indica a presença dos Karitiana no Jaci-Paraná em 1909, um mapa esboçado por J.Barboza em 1927 localiza os Karitiana na margem esquerda do médio e baixo Candeias, entre este rio e o Jaci-Paraná; a área compreendida entre os rios Candeias e Jamari, importantes afluentes da margem direita do rio Madeira, é declarada território dos Arikém (Ariquême). Nesta mesma área, em 1948 os registros da 9a. Inspetoria Regional do SPI situam os Karitiana ligeiramente mais para o leste. Entre 1950 e 53 eles são localizados no médio rio Candeias, no que parecia ser uma nova movimentação rumo ao ocidente; provavelmente nas proximidades deste local o grupo recebeu a visita de três padres salesianos em 1958. Ainda mais ao poente, em 1967-69 o Posto Indígena Karitiana foi instalado, no alto rio das Garças. Aparentemente, alguns anos depois o grupo dirigiu-se um pouco mais para o oeste, vindo a ocupar o sítio atual, às margens do igarapé Sapoti.

De acordo com suas narrativas históricas, os Karitiana experimentaram um brutal declínio demográfico após o contato com os brancos; Darcy Ribeiro considerou-os extintos em 1957. Tal situação levou o grupo a medidas extremas para evitar sua completa extinção. Primeiro, um antigo líder, Antônio Morais, teria desposado várias mulheres Karitiana (7 ou 10, de acordo com diferentes versões), inclusive algumas em princípio interditas pelas regras matrimoniais. Este evento acabou por gerar uma população densamente relacionada do ponto de vista genealógico e também genético: um estudo da Universidade Federal do Pará, de 1991, demonstrou que o coeficiente de consangüinidade médio – que mede o grau de parentesco genético de uma população – dos Karitiana é de 0,142 (entre primos de primeiro grau este valor é de 0,125). Todos os Karitiana menores de 16 anos, ainda segundo a pesquisa, descendem do chefe Morais, muitas vezes por diferentes vias genealógicas.

O grupo liderado pelo chefe Morais mantinha-se no médio Candeias, trabalhando para um seringueiro em troca de bens industrializados. Em algum momento, possivelmente por volta dos anos 1930 ou 40, este grupo deixou a região, repudiando o contato com os brancos. Dirigiram-se para o oeste, encontrando um outro grupo – chamado Capivari ou Joari, segundo versões diversas – dos quais provavelmente se separaram nos momentos iniciais do contato, no começo do século XX (os Karitiana, ao narrarem o episódio do encontro, sublinham a possibilidade de comunicação, uma vez que os dois grupos falariam a mesma língua). Os dois grupos reuniram-se na área atualmente ocupada pelos Karitiana, que eles reconhecem, hoje, como o antigo território Capivari\Joari. Nesta região retomaram o contato com os brancos, no final da década de 50. Suas tradições históricas sublinham a vital importância do encontro entre os dois grupos: com as populações de ambos os grupos muito reduzidas, os casais formados após a união mostraram-se fundamentais para a posterior recuperação demográfica e cultural do povo.
Abjatyna da aldeia indigena Kyowã - acima - assembleia Karitiana para dirimir sobre educação indígena.

Desconhece-se a razão pela qual o grupo formado a partir da reunião de Karitiana e Capivari\Joari preservou a denominação dos primeiros, mas é provável, a crer nas memórias atuais, que Antônio Morais tenha se tornado um doador pródigo de mulheres – pois os Karitiana contam que Morais buscara entre os Capivari\Joari homens que desposassem suas muitas filhas – e seu prestígio tenha crescido enormemente em função dos muitos genros que trouxe para sua órbita; ao mesmo tempo, Morais já era um líder conhecido na região à época dos primeiros contatos permanentes com os brancos, peça-chave na mediação entre estes e os Karitiana: em 1957 foi levado a Porto Velho com seu filho José Pereira, e os dois teriam sido os primeiros Karitiana batizados, conforme o registro existente na Catedral da capital rondoniense.

 A terra indígena e a aldeia

A Terra Indígena Karitiana apresenta-se como um quadrilátero localizado inteiramente no município de Porto Velho, estado de Rondônia. Uma porção considerável do leste do território homologado incide sobre a Floresta Nacional do Bom Futuro.

A área apresenta cobertura vegetal do tipo floresta ombrófila aberta, com alguns trechos de floresta ombrófila fechada. Cortado por inúmeros igarapés afluentes do rio Candeias, o terreno eleva-se na direção leste, onde está a Serra Morais, local de importância histórica e simbólica para os Karitiana. Esta área foi deixada de fora da terra demarcada, assim como todo o território que se estende dos limites da área indígena até o rio Candeias, e entre este e o rio Jamari, que os Karitiana apontam como território tradicional do grupo e almejam, algum dia, recuperar. A recente tentativa (2003) de reocupar a área a partir da instalação de uma aldeia às margens do Candeias – fora, portanto, da demarcação atual – e da criação de um GT da Funai para estudar a ampliação do território foi violentamente frustrada por fazendeiros locais que atearam fogo à maloca, destruindo-a (em setembro de 2003).

No momento, a Terra Indígena Karitiana apresenta-se livre de invasões. Num passado recente, foi alvo da exploração madeireira e mineradora (cassiterita). Fazendas de gado cercam os limites setentrionais da área, mas o perímetro restante é integralmente ocupado pela mata.

Distante aproximadamente 100 km de Porto Velho, o acesso à única aldeia Karitiana é feito pelo asfalto da BR-364. Na altura do quilômetro 50 da rodovia inicia-se uma estrada de terra de cerca de 45 km que leva, pelo meio da floresta, à aldeia.

A aldeia atual – Kyõwã, literalmente “boca [sorriso] de criança”, “pois a aldeia é bonitinha como sorriso de criança” –, é dividida ao meio pelo igarapé Sapoti, afluente do rio Candeias. Na margem esquerda do igarapé, onde desemboca a estrada de acesso à aldeia, localizam-se a sede administrativa e as estruturas instaladas pela Funai, além das residências de parte das famílias. Na margem direita do igarapé, está situada a maior parte das residências familiares.

As casas karitiana atuais seguem o modelo regional, de duas águas, mas a matéria de sua construção varia: há moradias de madeira, de taipa e mesmo algumas construções de alvenaria. As construções antigas, erguidas com troncos, cipó e palha de babaçu– ambi atyna, “casa redonda” – foram abandonadas há algumas décadas, mas os Karitiana orgulham-se de recordar sua construção: há duas delas na aldeia, na extremidade meridional de cada uma das margens do igarapé; a da margem direita é bem maior e representa, aos olhos dos índios, modelo fiel das casas de antigamente, aquele ensinado aos índios por Botyj a divindade criadora.

Construídas com esforço demorado de alguns mais velhos, essas imponentes construções funcionam, hoje, não mais como moradias, mas como “igrejas” (o termo é dos Karitiana): reinterpretadas à luz da oposição religiosa que cinde os Karitiana atualmente, as ambi atyna são, hoje, literalmente, “casas de Deus”. No passado, dizem, abrigavam uma família extensa organizada em torno de um homem de prestígio – “chefe” –, que com sua família ocupava a porção mais distante da porta; os homens casados situavam-se na parte central, e os jovens solteiros junto à entrada. As residências atuais abrigam, em sua maioria, uma família conjugal.

A proximidade com Porto Velho resulta em intensa mobilidade dos índios, que visitam freqüentemente a cidade em busca, sobretudo, da Funai e dos serviços de saúde. O órgão indigenista mantém alojamentos anexos ao seu prédio principal – a Casa do Índio – quase sempre ocupada por uma ou mais famílias karitiana de passagem por Porto Velho. O transporte é facilitado pelas viaturas da Funasa, da Cunpir (Coordenação das Organizações Indígenas de Rondônia e Oeste do Mato Grosso, entidade que integra as numerosas associações indígenas na região), do Cimi-RO e da própria Funai que, ao menos uma vez na semana, cumprem o trajeto entre a aldeia e a capital.

Por esta razão, os Karitiana contam com um sistema de atendimento à saúde razoavelmente eficaz. O posto médico possui material e medicamentos básicos para atendimento local, e – isso é importante reter – é administrado por uma auxiliar de enfermagem e dois agentes de saúde, todos Karitiana. Alguns jovens resolveram dedicar-se ao aprendizado de conceitos básicos de enfermagem, com o objetivo de que a comunidade se tornasse independente de enfermeiros brancos. A enfermaria local fica por vários meses nas mãos dos membros da comunidade, que sabem administrar remédios para as principais doenças e a diagnosticar os casos de malária de forma mais exata, através da leitura de lâminas de sangue. Os casos mais complicados são encaminhados para Porto Velho. No entanto, muito resta por ser feito. A ocorrência de malária, por exemplo, ainda é bastante elevada: como se sabe, Rondônia registra uma das taxas mais altas de incidência da doença no Brasil.

 Atividades econômicas

Os Karitiana são, ainda hoje, agricultores, caçadores e pescadores. A agricultura de coivara – sobretudo macaxeira, milho, arroz, feijão e café – é realizada nas terras ao redor da aldeia, pelas unidades familiares, o que não exclui a troca de trabalho entre famílias. Nos roçados, algumas famílias mantêm casas – chamadas “sítios” – para onde se transferem por vários dias na ocasião da intensificação das atividades agrícolas. Da agricultura ocupam-se homens e mulheres, ainda que a derrubada e a queima dos terrenos caiba exclusivamente aos homens (um mito, recolhido por Rachel Landin, destaca o grande perigo associado a esta atividade). Ao redor das residências cada família mantém o que denominam de “quintais”, onde são plantadas sobretudo fruteiras, cuja diversidade é bastante grande.

A caça é uma atividade eminentemente masculina. Os homens em geral caçam sozinhos, ou em grupos de dois ou três; utilizam armas de fogo, ainda que alguns mais velhos afirmem ainda utilizar arco e flechas. Armadilhas diversas também são utilizadas. Os Karitiana dizem que a carne de macaco é a “carne primeira dos índios”, a mais apreciada. Macaco-preto, macaco-prego, queixada, caititu, paca, cutia, veado (roxo e capoeira) e diversas aves (especialmente mutum, tucano, jacu e diferentes espécies de nambu) são os principais animais caçados.

A pesca é, em geral, uma atividade coletiva, que envolve também crianças. É realizada com redes, anzol e arco e flechas. Nos meses de seca aguda – agosto e setembro –, em que o volume dos igarapés reduz-se drasticamente, organizam-se pescas com timbó. Nesta época a abundância de pescado possibilita a realização de um dos principais rituais karitiana, a festa da jatuarana, um peixe muito apreciado.

É preciso destacar que a intenção dos Karitiana de recuperar ao menos parte de seu território tradicional, com a ampliação da Terra Indígena, além da importância histórica e simbólica, remete também a uma preocupação de ordem prática. Todos na aldeia são unânimes em destacar o esgotamento das reservas de caça e pesca no interior da área: as expedições têm chegado cada vez mais longe, muitas vezes extrapolando os limites demarcados; e os resultados têm sido mais e mais desapontadores. De todo modo, a ampliação do território garantiria aos Karitiana uma reserva inestimável de recursos, necessária ao bem-estar do grupo.

A dependência de gêneros alimentícios e bens industrializados leva os Karitiana a comercializarem parte dos produtos de suas atividades na cidade. Milho, café e feijão – além de algumas frutas como a laranja e o açaí – são os principais gêneros que, em Porto Velho, encontram fácil comprador. O artesanato – bastante diversificado e produzido por todas as famílias da aldeia – é comercializado nas dependências da Associação do Povo Karitiana (Akot Pytim’adnipa), com sede própria, ou em feiras permanentes e esporádicas de artesanato na capital de Rondônia e outras cidades da região. O volume de vendas, contudo, é pequeno, em função, principalmente, do reduzido fluxo de turistas que visitam Porto Velho. Por esta razão, os Karitiana vêm buscando alternativas para expandir as praças de comercialização de sua cultura material.
Liderança karitiana. Felpe Ferreira Vander Velden, 2003.

O modelo de apropriação dos lucros obtidos na cidade espelha aquele das atividades produtivas: cabe a cada produtor e sua família o resultado monetário da venda dos gêneros agrícolas: isso porque o artesanato é uma atividade da qual se ocupam homens, mulheres e crianças. O mesmo pode ser dito do comércio do produto – as etiquetas de identificação e preço das peças em exposição trazem sempre o nome do artesão –, ainda que uma pequena parcela do valor seja retido pela Associação, que assim mantém-se em funcionamento.

Esta prerrogativa da Associação aponta, ainda, para uma tentativa, entre os Karitiana, de administrarem coletivamente os problemas que se apresentam hoje. No entanto, se a iniciativa de assembléias gerais do povo – realizadas na aldeia, com a presença de praticamente todos os adultos – cabe aos jovens dirigentes da Associação, durante as reuniões a estrutura política vigente na aldeia é desvelada na crucial importância dos discursos dos homens mais velhos – especialmente do pajé e do chefe tradicional, byj – e na participação ativa das mulheres no processo decisório

 Biopirataria e coleta irregular de material biomédico

Os Karitiana, assim como os Suruí, foram arrebatados na corrida pela diversidade e riqueza genética que varreu a Amazônia desde o final dos anos 1980. Tiveram amostras de seus corpos coletadas em duas ocasiões, eventos que, ainda hoje, têm implicações significativas para a história e a concepção karitiana dos seus relacionamentos com o mundo dos brancos.

A notícia de que dez amostras de DNA e linhagens celulares karitiana, e também suruí, estavam sendo comercializadas na internet pela Coriell Cell Repositories (CCR) explodiu em 1996, após a denúncia feita por Ricardo Ventura Santos e Carlos Coimbra Jr., que visitaram o stand da instituição na feira paralela ao congresso da Associação Norte-Americana de Antropólogos Físicos ocorrido em abril daquele mesmo ano. Material genético de 15 populações procedentes de várias partes do globo encontrava-se – e ainda encontra-se – disponível para venda na página da '''Coriell''' na internet , os preços variando entre US$ 85 (para cultura de células) e US$ 55 (para amostras de DNA). O material permanece estocado na sede da empresa sob a rubrica “Human Variation Collection” ou “Human Diversity Collection”, e procede das amostras coletadas no âmbito do Projeto Diversidade do Genoma Humano (HGDP) que, no rastro do Projeto do Genoma Humano (HGP), propôs um grande banco de dados sobre a variedade das estruturas genéticas das mais diversas populações indígenas do planeta. A notícia logo ganhou destaque em numerosos jornais brasileiros, e foi seguida por um amplo debate que envolveu a Funai, o Congresso Nacional e diferentes entidades de defesa dos direitos indígenas, bem como os próprios índios. No entanto, muitas das informações veiculadas na imprensa eram desencontradas, e ainda hoje restam algumas dúvidas sobre a trajetória das amostras de sangue das aldeias amazônicas até seu processamento e comercialização na internet.

Ao que tudo indica, as cinco amostras de sangue karitiana e outras cinco de sangue suruí estocadas e vendidas pela CCR foram extraídas em 1987 pelo geneticista Francis Black, um dos autores de um artigo de 1991, em que a coleta das amostras de sangue dos dois grupos é a ele creditada. Este material teria sido estocado em laboratórios das universidades de Stanford e Yale nos Estados Unidos, e estariam aos cuidados do Dr. Kenneth Kidd, de Yale (Folha de São Paulo, 01/06/97).

Entre 03 e 13 de julho de 1996 ocorreu a segunda coleta de sangue. Nesta ocasião, uma equipe de televisão britânica, acompanha de três brasileiros, solicitou autorização da Funai para ingresso na Terra Indígena Karitiana com o propósito de produzir um documentário sobre a “importância cultural” do mapinguari, lendária criatura monstruosa presente na cosmologia de muitos grupos indígenas na Amazônia. Em 19 de setembro do mesmo ano, os Karitiana endereçaram carta ao Procurador da República no Estado de Rondônia denunciando que a equipe de brasileiros coletou amostras de sangue de todos os índios – tanto na aldeia quanto na Casa do Índio em Porto Velho – “para exames de anemia, vermes e malária”.

O fato da coleta irregular de sangue por parte desta equipe ter ocorrido na mesma época da denúncia da comercialização das amostras genéticas pela internet levou a uma ampla confusão entre os dois casos. Levantou-se, imediatamente, a hipótese de que o sangue coletado pelos médicos brasileiros em 1996 fora vendido para a Coriell Cell Repositories. Logo após as denúncias pipocarem na imprensa, o Ministério das Relações Exteriores, através da Embaixada do Brasil nos EUA, solicitou à empresa norte-americana informações sobre o material comercializado. O Dr. Richard Mullivor, então diretor da CCR, informou que as amostras dos dois grupos indígenas brasileiros foram doadas pelo pesquisador Kenneth Kidd, então titular do Departamento de Genética da Universidade de Yale, e que teriam sido coletadas em campo há “vários anos por antropólogos” que teriam observado as regras do “consentimento informado” por parte dos “doadores” (os termos são assim citados no relatório da Comissão da Biopirataria na Amazônia, em que a Câmara dos Deputados apresenta os resultados das investigações sobre casos de pirataria de recursos biológicos e genéticos amazônicos). Mullivor afirmou, ainda, que as amostras não eram comercializadas pela CCR, uma vez que esta seria instituição sem fins lucrativos: os valores cobrados pelo material na página virtual da Coriell fariam referência, apenas, aos custos de sua embalagem e envio a pesquisadores do mundo todo. Em um comunicado à imprensa, datado de 11 de junho de 1997, o médico brasileiro que acompanhou os cinegrafistas britânicos defendeu-se das acusações denunciadas pelos jornais, afirmando que a coleta de sangue deveu-se a uma preocupação com o precário estado de saúde dos Karitiana e uma vontade de trazer melhorias para o grupo, a partir de exames sobre o material recolhido.

O médico informou, ainda na mesma carta, que todo o material que coletou permanecia depositado em laboratório na Universidade Federal do Pará, não tendo qualquer conexão com as amostras comercializadas pela Coriell; estas teriam sido coletadas, diz o médico, “na década de 70 [sic] por pesquisadores Norte-Americanos [sic], com o consentimento da Funai”. E, mais ainda, que os exames prometidos aos Karitiana não foram devolvidos em função das precárias condições de transporte e armazenamento do material, que sofrera rápida deterioração e não pudera ser analisado.

Não obstante, o Ministério Público Federal abriu Ação Civil Pública contra dois dos brasileiros que acompanharam os ingleses, estipulando uma indenização em favor da comunidade Karitiana. A ação requer, ainda, o completo impedimento da alienação do material coletado entre os índios por parte dos pesquisadores.

Há de se perguntar, entretanto, como os Karitiana experimentaram estes dois eventos, e de que modo construíram uma interpretação particular sobre eles.

O caso na perspectiva dos Karitiana

Uma das versões do mito de Byjyty, neto de Botyj, o Deus “maior, chefão” – coletada em português, com dois informantes, em junho de 2003 –, reconta uma história de perdas diante do contato com os brancos, ainda que coloque os Karitiana como os principais responsáveis pelo seu infortúnio. No “tempo antigamente” – forma Karitiana de, em português, estabelecer a fratura entre o tempo atual e o tempo mítico ou a história antiga –, Byjyty vivia entre os Karitiana. Certo dia avisou aos índios que morreria e pouco depois voltaria na forma de uma grande ave que os Karitiana não deveriam matar; morreu e foi enterrado dentro da maloca. Seu espírito retornou – como alertara, na forma de um jaburu –, e pousou em cima da maloca. Entretanto, os índios esqueceram-se do aviso de Byjyty e mataram o pássaro. Foram, então, punidos pelo seu “pecado”: Byjyty se foi para sempre, e nasceu de novo entre os brancos. Fora Byjyty que tirara, tempos antes, os brancos de dentro da “água grande”, dos domínios de Ora, “chefão das águas” e irmão de seu avô. Para os brancos Byjyty transmitiu toda a sua sabedoria. Caso não tivessem “errado” ao matarem o pássaro, Byjyty teria nascido de novo entre os índios, e hoje eles teriam todos os cobiçados bens de que dispõem os brancos.

O comentário Karitiana acerca deste mito sugere o sofrimento experimentado pelos Karitiana ao longo de décadas de convivência com os homens brancos. Em paralelo, alinha-se uma coleção de narrativas que detalham a abundância do “tempo antigamente” e a trajetória de declínio inaugurada com o contato, sobretudo no que tange à radical depressão demográfica que sofreram e ao surgimento de doenças desconhecidas e muito mais agressivas. Os dois eventos de coleta de sangue entre os Karitiana devem ser vistos da perspectiva destas narrativas.

A etnografia Karitiana faz referência anterior a pouca profundidade da memória nesta sociedade. Com efeito, os Karitiana não se recordam com precisão do evento de 1987 que, para eles, parece estar na categoria temporal estabelecida pelas expressões “tempo” ou “era tempo”, que aparentemente compreende o período entre o presente e passado imediato e o passado remoto, mítico e histórico. Há algumas informações fragmentadas, oferecidas por algumas pessoas, sobre a visita, “faz muitos anos”, de dois “americanos magros, de barriga funda, barriga de sapo”. Nesta época a escola da aldeia ainda nem estava completa, “era pequena ainda”. Os “americanos” vieram em dois aviões e coletaram o sangue na enfermaria. Isto teria ocorrido em 1984 ou 1985, de acordo com alguns Karitiana, e as referências à idade que tinham na época do evento – marco temporal comum – apontam também para a segunda metade da década de 80.

Do evento de 1996 muitos Karitiana recordam-se com precisão, mesmo porque já se fez acompanhar de uma manifestação positiva do grupo frente ao que consideraram lesivo aos seus interesses, e este posicionamento encontrou reverberação nas preocupações da Funai, do Ministério Público, de outros pesquisadores e da sociedade em geral quanto à biopirataria e ao acesso de pesquisadores mal-intencionados a áreas indígenas. Os índios contam que o médico brasileiro e uma equipe de “americanos” vieram até a aldeia e disseram que coletariam sangue para fazer exames, e que depois disso enviariam, todo mês, remédios para a comunidade. Durante dois dias todos os moradores da aldeia, até mesmo crianças, compareceram ao posto de saúde local, onde cada um teve duas ampolas de vidro de “sangue puro” retiradas, o suficiente para encher duas caixas grandes de isopor, que depois foram levadas. Na ocasião os médicos teriam distribuído bombons às crianças e chocolates aos adultos, o que deve ter conferido ao episódio ares de festa. Os Karitiana relembram a relutância de alguns em ceder o sangue, posteriormente convencidos diante da sedutora proposta de ter seu acesso aos serviços de saúde ampliados. No entanto, as promessas feitas pelos pesquisadores jamais foram cumpridas, de acordo com os Karitiana, e esse é o maior motivo de revolta: após saírem da área, os médicos nunca retornaram, e nem chegaram até a aldeia os tão esperados medicamentos.

Há, na cosmologia Karitiana, uma série de elementos que permitem caracterizar a problemática imposta pela retirada do sangue e a estocagem de amostras do material, sobretudo no tocante aos perigos associados ao sangue fora do corpo, especialmente na situação deste sangue que, no caso de pessoas já falecidas, resta insepulto. Os aspectos poluentes do sangue são enfatizados, aparentemente, na inutilidade da simples devolução do material: este seria o caminho lógico aos olhos dos Karitiana, que não entendem os motivos que acompanham a coleta de material biológico humano e o potencial científico e mercadológico nela envolvidos. Mas, ao mesmo tempo, é evidente a impossibilidade de ele ser reutilizado, recolocado nos corpos: o sangue retirado está “frio”, é sangue morto e, além disso, há o temor de que seu sangue tenha sido misturado com o sangue de outras pessoas e com sangue de animais – “cachorro, boi e burro”, animais introduzidos pelos brancos e tratados com certa ambigüidade pelos índios – e que, por isso, esteja “sujo”, ao contrário do sangue que circula nos corpos vivos, “puro” e “limpo”.

Por esta razão, os Karitiana falam em indenização pelo sangue “roubado” (o termo é deles): eles querem dinheiro. Tendo percebido que o sangue, signo em seu código cosmológico, foi mercantilizado, os Karitiana conceberam a contrapartida em mercadoria como tradução mais adequada para tornar mutuamente inteligíveis o confronto entre sua cosmologia e uma “cosmologia do capitalismo”.

A coleta irregular de seu sangue terá sido, portanto, uma afronta às concepções simbólicas Karitiana acerca do corpo e de seu funcionamento regular. Entretanto, mais do que isso, tratou-se de uma ofensa moral grave: os Karitiana falam sobre os tasoty literalmente “homens grandes”, não apenas no tamanho físico, mas, sobretudo, na sabedoria, no pensamento e no trabalho: o “homem grande” é aquele que não tem o “pensamento num só caminho”, mas o “espalha em todas as direções”, homem que tem sabedoria e responsabilidade. Em suma, o modelo de personalidade social adequada e respeitada: o homem que “fala bem com as pessoas”, recebe-as com presteza em sua casa, não “conta mentiras ou pensa e faz mal” a outrem, e respeita as regras da reciprocidade, tão importantes para o grupo.

Muitos brancos estão nesta categoria, pois a eles são creditados longos anos de estudo e vasto conhecimento. É, pois, com incredulidade e resignação que os Karitiana refletem sobre a traição de que foram vítimas, posto que jamais poderiam esperar conduta tão desviada por parte de tasoty, sobretudo por parte de médicos, cuja confiança é fundamental e foi, possivelmente, alimentada pela razoável eficiência dos serviços de saúde oferecidos aos Karitiana na aldeia e em Porto Velho. Uma quebra da ética da dádiva, fundada no intercâmbio entre o sangue coletado em diferentes contextos e os remédios e a assistência médica – intercâmbio já há muito estabelecido entre os Karitiana – que deixou um forte ressentimento e a necessidade de recuperar, de alguma forma, o que se foi.

 Organização social e cosmologia

É impossível falar da organização social dos Karitiana hoje sem abordar a cisão religiosa que caracteriza o grupo. Entre 1972 e 1978 o casal de missionários David e Rachel Landin, ligados ao Summer Institute of Linguistics, residiu entre os Karitiana, com o objetivo de estudar sua língua para, em seguida, efetuar a tradução do Novo Testamento. O trabalho de conversão, entretanto, teve resultados apenas parciais, o que pode ser aferido atualmente: com efeito, a comunidade é dividida em dois grupos distintos – correspondendo, cada um, a aproximadamente metade da população da aldeia –, que identificaremos como “povo do pajé (xamã)” e “povo do pastor” ou “crentes”. Note-se que há, atualmente, um único xamã (que eles denominam “pajé”) entre os Karitiana; os pastores são três – embora possam ser substituídos por outros indivíduos treinados –, e cada um deles “possui” uma das três “igrejas” existentes na aldeia.

Os Karitiana enfatizam o pouco rendimento sociológico desta oposição, dizendo que “são os ‘espíritos’ – Jesus, entre os “crentes” e Itamama, para os “do pajé” – que não se gostam”, e que na vida cotidiana as pessoas relacionam-se normalmente: casam-se, trabalham, divertem-se. Entretanto, esta oposição, expressa no nível do sobrenatural, se indica uma diferenciação notável no universo simbólico, também não deixa de apontar implicações sociológicas e políticas importantes.

Assim sendo, é forçoso constatar que a cisão religiosa recobre um conflito político significativo, que opõe as principais lideranças Karitiana; ou, em outras palavras, o conflito é expresso na linguagem da religião. Os desdobramentos mais recentes deste confronto podem ser rastreados na tentativa, por parte do xamã, de construir uma nova aldeia (tentativa frustrada, como vimos no item A Terra Indígena e a aldeia). Ainda que muitas famílias manifestassem desejo de visitar ou passar algum tempo neste novo local, apenas aquelas ligadas ao xamã – ou seja, o “povo do pajé” – falava, abertamente, em deixar, permanentemente, a aldeia atual.

A despeito de existir e ser de crucial importância, contudo, o conflito entre os “do pajé” e os “do pastor” permanece bastante velado no cotidiano da aldeia, e jamais expresso em termos políticos claros. A eclosão das diferenças no discurso aparece, recorrentemente, no nível simbólico-religioso ou naquele das práticas intimamente ligadas ao universo sobrenatural. E, neste último caso, não apenas no discurso: o principal locus de materialização da cisão religiosa entre os Karitiana são as chamadas “festas”, rituais destinados a celebrar o contato com o mundo sobrenatural para “pedir saúde e alegria para o povo”, como dizem. Nesses eventos, a comunidade divide-se, e os dois grupos revelam-se com nitidez: ainda que sejam planejadas por todos, e que se façam convites de parte a parte, sempre duas “festas” são realizadas, uma em cada “lado” da aldeia, preparadas e assistidas por cada uma das facções. E neste ponto se concentram os comentários de uma facção a respeito da outra, pois ambas afirmam que sua contraparte faz as festas de modo equivocado, e que esta é a principal razão para as mazelas experimentadas pelos Karitiana. Deste modo, é a própria história do grupo que está em jogo, pois cada uma das facções afirma a ancestralidade – e, por isso, a autenticidade – de seus ritos, e culpa a facção oposta pelas perdas acumuladas pela história em função de procedimentos rituais equivocados. Em termos práticos, é preciso dizer, as festas de cada um dos “lados” guardam poucas diferenças notáveis entre si.

“Lados”, porque a cisão também toma forma, nas referências dos próprios índios, de uma oposição geográfica: os “de cá” contra os “do lado de lá”. As famílias “do pajé” residem, sobretudo, na porção mais central da margem direita do igarapé: as casas formam um núcleo integrado em torno da moradia do xamã. As famílias do “pastor” distribuem-se, em sua maioria, na margem esquerda e nas extremidades da direita. Digno de nota é o fato de que, na margem esquerda, avizinham-se das estruturas instaladas pelos brancos; ali, também, está o pátio das reuniões comunitárias. As três “igrejas” – “casas de Deus” –, do mesmo modo, situam-se nas extremidades da aldeia: duas na margem direita e uma na esquerda. Tem-se, portanto, um núcleo “central”, ocupado pelo xamã, circundado pelas áreas periféricas onde estão os pastores.

A filiação a uma ou outra facção parece dar-se em torno dos homens mais velhos da aldeia e suas famílias; os homens, ao se casarem, são integrados à facção do sogro: mesmo que seus pais pertençam a uma facção, nas “festas” estarão do lado do seu sogro. Aparentemente, a oposição faccional não tem papel significativo nas alianças matrimoniais, pois os casamentos entre pessoas de distintas facções são comuns – e isso é enfatizado pelos Karitiana quando discorrem sobre a pouca operacionalidade da cisão religiosa entre eles.
Indio Karitiana do Rio Jamary com deformação artificial, do cranio foto de Carlos Chagas 1912

Os parágrafos anteriores sintetizam os mecanismos de oposição entre “crentes” e “não-crentes” e o modo como aparecem nos ritos e no discurso sobre eles e o universo sobrenatural com o qual procuram relacionar-se. Resta, portanto, compreender como se dá, exatamente, a oposição no nível cosmológico. Por “povo do pajé”, deve-se entender as famílias que se mantêm fiéis, como dizem eles próprios, ao modo de vida e às crenças tradicionais dos Karitiana, aquele anterior ao contato: por isso mesmo, o pajé salienta que, na nova aldeia, tudo deverá voltar a ser “como antigamente”. Não obstante, as famílias “crentes”, aquelas ligadas aos pastores, também enfatizam o caráter original de seu conhecimento: para estes, suas concepões religiosas são as verdadeiras, aquelas ensinadas por Botyj e observadas pelos Karitiana desde os tempos antigos. Assim sendo, as distintas ancestralidades evocadas por cada uma das facções acabam por constituir corpos diferenciados de mito e história, que informam as práticas correntes e são por elas informados.

Estes conjuntos diferenciados, contudo, apresentam certa coerência que torna possível, ao que parece, desvelar alguns dos efeitos do discurso religioso cristão sobre a cosmologia karitiana e, em especial, sobre suas noções escatológicas. Com efeito, aparentemente, a intrusão de elementos cristãos provocou uma espécie de desdobramento da escatologia Karitiana, a partir da introdução do conceito de culpa – ou pecado – , caro ao pensamento judaico-cristão. Nesse sentido, a noção de que a “alma” – ou uma delas, já que os Karitiana afirmam que a pessoa possui quatro “almas” – que deixa o corpo após a morte sobe ao céu para a companhia de Deus e para uma vida de fartura é alargada, de modo a conter a possibilidade do “inferno” àqueles cuja conduta em vida fugiu aos preceitos corretos. Note-se que a crença em quatro “almas” com destinos diferenciados após a morte do indivíduo permanece: a mudança verifica-se quanto ao rumo tomado por uma das “almas” – aquela que retém o sangue e retoma, no além, as relações com parentes já falecidos – que pode, dependendo das ações da pessoa em vida, seguir o rumo de Deus ou do “Cão”.

A noção de “culpa/pecado” promoveu, da mesma forma, uma reconfiguração no corpus mítico que versa sobre a origem dos Karitiana, dos outros índios e dos brancos. Como ocorre em muitas outras cosmologias indígenas sul-americanas, a relação assimétrica entre índios e brancos é vista, pelos Karitiana, como resultado de uma má ação (um “pecado”) realizada por eles próprios na origem dos tempos. De modo significativo, os Karitiana também “mataram o Deus”: carregam a culpa pela morte de Byjyty, neto da divindade, transformado em um enorme pássaro, no “tempo antigamente”, e morto pela ignorância dos índios. Renascido entre os brancos, como Jesus, Byjyty deu a estes últimos todos os maravilhosos bens industriais e conhecimentos que, hoje, os Karitiana cobiçam: automóveis, máquinas, armas de fogo e a escrita (ver um resumo do mito no item Biopirataria e coleta de irregular de material biomédico).

A oposição entre “os do pajé” e os do “pastor” também é operativa, da perspectiva karitiana, no campo das práticas terapêuticas, ainda que, aqui, novamente, ela deva ser matizada. Tal constatação é importante uma vez que as atividades rituais do grupo estão voltadas para uma busca incessante pela “saúde” e o afastamento das doenças que cercam, ameaçadoramente, a aldeia. Aqueles ligados ao xamã o são porque acreditam no seu poder de contatar o universo dos espíritos e, desta forma, curar enfermidades. De sua parte, os “crentes” preferem apelar, diretamente, para a divindade, seja nos “cultos” – realizados às quartas e sextas, e nos finais de semana; todo o ritual é oficiado na língua nativa, incluindo “hinos” traduzidos do português ou compostos diretamente em Karitiana –, seja nas “festas”. Como vimos, entretanto, as festas de ambas facções são em quase tudo semelhantes: na festa da caça, por exemplo, o ponto alto consiste no banho com uma infusão feita de folhas recolhidas no mato, chamadas de “remédios” (gopatoma) pelos Karitiana. Acredita-se que, com este banho, os indivíduos mantêm as doenças afastadas. Este conhecimento prático de “remédios” e práticas médicas tradicionais é, portanto, domínio da maior parte dos adultos Karitiana.

Parentesco
Quanto ao sistema de parentesco Karitiana, os dados mais completos são fornecidos pelo estudo de Rachel Landin. Para a família nuclear os termos são "pai" (syp para o Ego feminino e 'it para o Ego masculino), "mãe" (ti, para ambos os sexos) e "filhos" (o Ego masculino se refere a seus filhos fazendo uso do termo 'it, e o Ego feminino usa 'et). Note que o termo para "pai" e "filho" são os mesmos ('it). Assim, é como se o filho de Ego chamasse seu pai de "filho", uma vez que o neto e o avô se identificam no sistema.

A categoria "irmãos" é dividida por sexo de Ego e do alter; irmãos do mesmo sexo são divididos por sexo do alter: para o alter mais velho, o termo usado é haj, e para o alter mais novo o termo é ket se o Ego é masculino, e kypet se o Ego é feminino. Irmãos do sexo oposto ao Ego estão divididos por sexo de Ego: irmãos do sexo oposto de Ego masculino são chamados pan'in e irmãos do sexo oposto ao Ego feminino são chamados de syky.

Estendem-se as categorias "pai" para os "irmãos do pai" de Ego, e "mãe" para as "irmãs da mãe" de Ego. Os "irmãos" de indivíduos nesta categoria são considerados "tios" de Ego. Os "tios" paternos de Ego são divididos pelo sexo do alter: sokit é o nome dado à tia paterna, e os termos para tios paternos são divididos de acordo com idade do alter; os mais velhos são chamados de sypyty, e os mais jovens são divididos pelo sexo de Ego (sypy'et para Ego masculino e sypysin para Ego feminino). Tios maternos são divididos pelo sexo de Ego: Ego masculino usa o termo ta 'it, e Ego feminino usa o termo syky'et. Tias maternas são divididas pela idade do alter: uma tia mais velha será chamade de tiity, e uma tia mais jovem será chamada de ti'et. A categoria "sobrinhos" é dividida pela relação com o Ego (linha materna ou paterna) e pelo sexo do Ego: o sobrinho paterno de um Ego masculino será chamado de 'it ongot e sua sobrinha paterna será chamada de ti ongot. Todos os outros sobrinhos de um Ego masculino serão chamados de saka'et. A sobrinha materna de um Ego feminino será chamada de ti ogot e todos os outros sobrinhos serão divididos pela idade relativa da irmã do Ego que é mãe dos sobrinhos: os filhos da irmã mais velha do Ego serão chamados haja'et e os filhos da irmã mais nova serão chamados de koroj'et.

Nos sistemas dravidianos o primo cruzado da mãe de Ego costuma ser o pai de Ego e a prima cruzada do pai do Ego costuma ser a mãe de Ego. Isto decorre do fato de que, nestes grupos, o casamento preferencial é com os primos cruzados.

No sistema de parentesco Karitiana, Ego se identifica com seu avô ou avó paternos (dependendo do sexo de Ego). Este fato pode ser observado também no sistema de nominação. No entanto, como nomes pessoais têm uso restrito entre os Karitiana, utilizam-se os termos de parentesco para referência. O termo usado por um menino para se referir ao seu avô paterno ou por uma menina para se referir a sua avó paterna, é ombyj, em que se pode reconhecer a raiz byj "chefe". Esta criança vai receber o mesmo nome de seu ombyj, ou se o nome já tiver sido concedido a um de seus irmãos, a criança receberá o nome de um irmão/irmã de seu ombyj. Aqueles avós que não são chamados de ombyj por Ego, recebem os termos de parentesco owoj (masculino) e timoj (feminino). A categoria "netos" é dividida primeiramente pela relação com Ego e depois pelo sexo de Ego: ongot é o termo usado por Ego para um neto do mesmo sexo na linha paterna, a quem ele dá nome. Para os outros tipos de netos, os termos usados são sokite'et para Ego masculino e ete'et para Ego feminino.

Rachel Landin diz que não há termo de parentesco para primos cruzados em Karitiana porque esta categoria é constituída daqueles indivíduos que são os esposos preferenciais de Ego. Assim, tradicionalmente, os termos usados para designar tais indivíduos podem ter sido "marido" (man), e "esposa" (sooj).

 Língua e educação escolar

O Karitiana é a única língua sobrevivente da família Arikém, que por sua vez é uma das dez representantes do tronco lingüístico Tupi. Essa família em si é especial no que diz respeito à história das línguas Tupi, por ter sido a única família em que se identificou uma mudança completa do padrão vocálico a partir da língua mãe. No entanto, o interesse teórico do Karitiana não se limita à diacronia. Do ponto de vista sincrônico, fenômenos como caso ergativo, ordem variável de constituintes, interação previsível entre tom e acento, espalhamento de nasalidade e pré e pós oralização de consoantes nasais são alguns dos assuntos de interesse que a língua apresenta.

O estudo da língua Karitiana pode contribuir bastante para o conhecimento das populações indígenas no Brasil antes do contato. Luciana Storto apresentou, em co-autoria com Philip Baldi, um artigo no encontro anual da Linguistic Society of America, em janeiro de 1994, onde foi estabelecida a existência de uma mudança regular em cadeia no sistema vocálico da família Arikém a partir do Proto-Tupi. Neste trabalho foram considerados itens lexicais da língua Arikém (língua até o que se sabe extinta, também pertencente à família Arikém) obtidos em duas listas da década de 1920 e comparadas com dados originais de Karitiana conseguidos em trabalho de campo. O processo foi descrito como uma mudança histórica em cadeia no sistema de cinco vogais em movimento anti-horário, onde Proto-Tupi (PT) *a se torna Proto-Arikém (PA) *o, PT *o se torna PA *i, PT *i > PA *e, e PT *e > PA *a (a vogal *i do Proto-Tupi continuou *i em Proto-Arikém). Sawada & Storto (2004) confirmaram as mudanças apresentadas por Storto & Baldi com um grande número de cognatos de todas as famílias do tronco.

O entendimento de processos como a mudança vocálica acima descrita é fundamental para a reconstrução do Proto-Tupi, um projeto do qual Luciana Storto atualmente participa em associação com pesquisadores de várias instituições coordenados por Denny Moore, do Museu Emílio Goeldi. Este tipo de reconstrução permite acesso a uma riqueza de informações sobre a pré-história dos povos em questão (que viveram aproximadamente 4.500 anos atrás) que é única, porque revela aspectos sociais e culturais daquela população que não se poderia conhecer de outra forma. Por exemplo, através da reconstrução em PT de palavras para roça, mandioca e pau de plantar, pode-se saber que os Proto-Tupi eram agricultores.

O estudo lingüístico pode também contribuir para o conhecimento do povoamento pré-histórico do Brasil, pois são passíveis de serem identificadas em uma língua certas características cuja origem não é genética, mas resultante de contato com outros povos. O Karitiana é neste aspecto especialmente interessante, pois há evidências culturais que indicam um período de contato em que eles tiveram convívio com um povo não Tupi. Por exemplo, eles não têm como prática a produção de farinha de mandioca, que é uma característica típica Tupi. Ao invés de farinha de mandioca, processam o milho. O instrumento usado para processar o milho em mingau é um pilão horizontal e uma pedra retangular. Até algumas gerações atrás, possuíam uma prática de deformação craniana ritual através do uso de um aparato feito de madeira e algodão que, quando usado desde cedo na cabeça de crianças, produzia um achatamento da porção frontal do crânio. Este tipo de pilão e deformação craniana, ao que se sabe, não são característicos dos povos Tupi. Assim, assume-se que estes aparatos devem ter sido adquiridos via contato. É possível que este suposto contato tenha dado origem também á mudança vocálica apresentada acima, que atinge apenas a família Arikém dentre as dez famílias lingüísticas do tronco Tupi.
A prática Karitiana de deformação craniana usava um aparato de madeira e algodão para produzir o achatamento da porção frontal do crânio.

Alfabetização

O projeto de alfabetização em grande escala foi iniciado em 1994. A escola da aldeia, que contava com uma professora branca da Funai em 1991, e apenas um professor índio em 1992 (Nelson Karitiana), tornou-se majoritariamente indígena em 1995, quando dois professores índios foram contratados pela prefeitura e pelo estado para ministrar aulas na escola. Atualmente (maio de 2005), os professores da escola são Inácio Karitiana, João Karitiana, Luiz Karitiana, Nelson Karitiana e Marcelo Karitiana, que dão aulas na escola bilingüe da aldeia.

Em janeiro de 1996, financiado pelo projeto, Nelson Karitiana passou 20 dias em Belém a fim de conhecer o Museu Goeldi, aprender a utilizar o computador (especificamente, o editor de texto Word), e contribuir para a elaboração duma nova versão do Livro de Apoio ao Aprendizado da Ortografia. Nelson voltou para a aldeia com 80 cópias do guia, que entregou a Luiz Carlos Karitiana, que havia sido nomeado chefe da Casa da Língua pela associação.

No período entre fevereiro e dezembro de 1996, ocorreu um grande salto qualitativo e quantitativo na participação dos Karitiana no projeto de alfabetização. Liderados por Luiz Carlos Karitiana, chefe da Casa da Língua, alguns jovens trabalharam na documentação escrita da cultura, e produziram cinco textos, várias gravações, e alguns estudos de itens lexicais já extintos do vocabulário em uso na língua.

Em janeiro de 1997, Luiz Carlos Karitiana contribuiu para a organização do trabalho no dicionário, do qual participaram 15 membros da comunidade. Professores formados nos anos anteriores contribuiram para a alfabetização de 24 estudantes. Três textos (um ritual, um mito e uma narrativa histórica) foram produzidos (transcritos, digitados e traduzidos).

O projeto de alfabetização, que dispunha de financiamento apenas por quatro anos, foi concluído em 1997, tendo recebido avaliação positiva de um parecerista externo. No entanto, apesar do sucesso, não foi possível manter a continuidade do processo educativo sem uma fonte de financiamento permanente para garantir o andamento dos trabalhos.

 Nota sobre as fontes

O material etnográfico a respeito dos Karitiana é bastante escasso como, de resto, para a maior parte das sociedades indígenas em Rondônia e sudoeste da Amazônia brasileira. Nesse sentido, contrasta com a excelência das análises de sua língua, bem como com os estudos genéticos, biomédicos e bioantropológicos realizados entre eles.

Ainda que os materiais produzidos pela Comissão Rondon – depositados no Museu do Índio, no Rio de Janeiro – tragam as primeiras referências sobre os Karitiana, a primeira descrição – absolutamente sumária – de sua cultura está nas memórias do padre Angelo Spadari – que os visitou em 1958 –, publicadas por Vitor Hugo, em italiano, na revista alemã Anthropos (56, de 1961), e depois, em português e com pequenas alterações, no segundo volume de seu monumental Desbravadores.

Depois dele, o casal de missionários David e Rachel Landin – ligados ao Summer Institute of Linguistics, SIL – residiu entre os Karitiana nos anos 70. Ainda que interessados na tradução do Novo Testamento para a língua Karitiana, os missionários deixaram uma coleção de análises lingüísticas, publicadas principalmente na Série Lingüística do SIL, bem como uma dissertação sobre parentesco e nominação (Kinship and naming among the Karitiana) e um curto artigo sobre mitologia (Nature and culture in four Karitiana legends), ambos de Rachel Landin, além de dois manuscritos, sobre tecnologia lítica e economia, por David Landin.
Jovens Karitinas . Aldeia Indígena Kyowã- SEDUC, 2011. 

Carlos Frederico Lúcio produziu a primeira etnografia detalhada do grupo, em sua dissertação de mestrado defendida em 1996 na Unicamp (Sobre algumas formas de classificação social: etnografia sobre os Karitiana de Rondônia) centrada na análise da interseção dos sistemas classificatórios da genealogia, da onomástica e do parentesco. O parentesco Karitiana é também objeto – numa perspectiva comparativa, dentro do universo dos grupos Tupi de outras famílias que não Tupi-Guarani – da dissertação de mestrado de Carolina Araújo, de 2002, na UFRJ (A dança dos possíveis: o fazer de si e o fazer do outro em alguns grupos Tupi). A história do contato dos Karitiana com os brancos, tendo por base as narrativas dos próprios índios, foi tratada por Lilian Moser em sua dissertação de mestrado na UFPE de 1997 (Os Karitiana no processo de desenvolvimento de Rondônia nas décadas de 1950 a 1990). Os casos de coleta irregular de amostras biológicas, bem como as implicações simbólicas e políticas desta intervenção para os Karitiana, são objeto da dissertação de mestrado de Felipe Ferreira Vander Velden, defendida na Unicamp em 2004 (Por onde o sangue circula: os Karitiana e a intervenção biomédica).

A língua Karitiana foi previamente estudada por David e Rachel Landin. A partir do material dos Landin, Daniel Everett publicou 4 artigos. Luciana Storto – que tem trabalhado na descrição e análise da língua Karitiana desde sua primeira visita profissional àquela aldeia em meados de 1992 – fez uma análise detalhada de aspectos fundamentais da gramática do Karitiana, em sua tese de doutorado de 1999, no MIT (Aspects of Karitiana grammar), e publicou vários artigos em periódicos nacionais e estrangeiros.

A fotografia mais antiga de que se tem notícia de um Karitiana – tirada pela Expedição de Carlos Chagas à Amazônia em 1912 – introduz o grupo no campo das pesquisas bioantropológicas e biomédicas. De uma curiosidade inicial em torno da deformação craniana – antigamente praticada pelos Karitiana, mas, hoje, abandonada, embora muitos indivíduos mais velhos ainda apresentem o achatamento artificial do crânio – passou-se a um conjunto de investigações em torno das condições epidemiológicas e sanitárias do grupo e, por fim, a estudos que focam a estrutura genética deste povo. Dos primeiros destacam-se a dissertação de mestrado de José Odair Ferrari, defendida na USP em 1995 (A saúde do índio: um desafio sem endereço, os Karitiana de Rondônia) e vários artigos publicados em periódicos da área de saúde pública e biologia humana. Dos segundos é preciso sublinhar a pesquisa de Gilberto Araújo, publicada em Ciência Hoje (v.13, n.76, de 1991), periódico de divulgação científica de grande circulação, além de um número expressivo de artigos, quase todos em periódicos estrangeiros, que discutem genética e biologia molecular Karitiana. Estes últimos não tratam especificamente dos Karitiana, mas analisam o material coletado entre eles em comparação com amostras recolhidas e estudos efetuados entre outras populações indígenas no Brasil e no mundo.

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