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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Enawenê-Nawê



Toy Art da Etnia Enawêne-Nawê


#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
48Enawêne-NawêEnauenê nauê, Salumã, Enawenê-nawêAruak
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
MT641Siasi/Sesai 2012


Os Enawenê-nawê falam uma língua da família Aruák e vivem em uma única grande aldeia próxima ao rio Iquê, afluente do Juruena, no noroeste de Mato Grosso. A cada ano iniciam um longo ritual destinado aos seres subterrâneos e celestes iakayreti e enore nawe, respectivamente. Durante este período os Enawene Nawe cantam, dançam e lhes oferecem comida, numa complexa troca de sal, mel e alimentos – sobretudo peixe e mandioca. Dessa forma, organizam o trabalho com o intuito de produzir alimentos para o consumo cotidiano e para serem oferecidos nos rituais.

Desde o início dos anos 2000, contudo, suas formas de produção e reprodução da vida social encontram-se fortemente ameaçadas. O projeto de construção de onze PCHs (pequenas centrais hidrelétricas) nos arredores da TI Enawenê-Nawê, se concretizado, poderá afetar por completo a dinâmica ecológica do seu meio aquático, comprometendo diretamente a realização das cerimônias rituais, que são de suma importância para a vida dos Enawenê-nawê. Aliado a isso, encontram-se cercados por outras ameaças de invasão e de poluição dos rios e de suas terras, proporcionadas pelas atividades agropecuária, mineradora e pelo cultivo de soja no entorno de seu território.

 Nome

Até o início da década de 1980 os Enawenê-nawê eram conhecidos como ‘Salumã’. Em 1983, após algumas experiências de contato, os missionários jesuítas finalmente compreenderam que a autodenominação desses índios era ‘Enawenê-nawê’ e, desde então, este termo passou a ser usado para identificá-los.

 Língua

Os Enawenê-nawê falam uma língua da família Aruák, parecida com aquela falada pelos Paresí. Um recente trabalho sobre fonética e fonologia da língua Enawenê-nawê (Rezende, 2003) indica que ela pertence à família Aruák (Maipure).
Aldeia Enawenê-nawê

Os Enawenê-nawê habitam uma região de transição entre o cerrado e a floresta equatorial. Esta área encontra-se no vale do rio Juruena, formador do rio Tapajós, na porção noroeste do Estado de Mato Grosso. As cidades mais próximas da TI são Brasnorte, Juína, Comodoro e Sapezal, sendo que as três últimas correspondem aos municípios onde a TI está localizada.

A T.I. Enawenê Nawê tem como vizinhos mais próximos os povos Menky, Nambikwara, Rikbaktsa, Iranxe e Cinta Larga.
Território Enawenê-nawê

Desde meados da década de 1980, este povo ergueu suas aldeias nos arredores do rio Iquê, região de sobreposição com a ESEC Iquê. O Iquê compõe a bacia do Juruena e parte das suas nascentes chega até a cidade de Vilhena (RO).

A história da ocupação enawenê-nawê na região do Vale do Juruena aponta para um ciclo envolvendo uso intenso do território para subsistência de um lado, e fugas e ataques do outro. Agricultura, pesca e guerra definiram, portanto, os movimentos e deslocamentos por essa área do Alto Juruena, incluindo uma área das nascentes do Aripuanã, o único rio que não faz parte da bacia do Juruena, mas sim do Madeira. As terras tradicionais e de ocupação efetiva dos últimos 150 anos (no mínimo) estendem-se do Doze de Outubro e Camararé ao sudoeste, às nascentes da sub-bacia do Aripuanã ao noroeste, as nascentes do Rio Preto e Juína Mirim ao norte e nordeste, e como limite sudeste o Papagaio e o próprio Alto Juruena em sua confluência com o Juína. Segundo esse ciclo, os Enawenê-nawê habitaram desde sempre (imemorialmente) e até cerca de 70 anos atrás, as terras compreendidas entre as cabeceiras do rio Aripuanã (Hawinaware), Rio Preto (Adowina), e Rio Arimena (Olowina), os dois últimos afluentes da margem esquerda do Juruena.. Circularam intensamente por essa região de cabeceiras, erigiram dezenas de aldeias, acampamentos, barragens de pesca, etc. Após várias ondas de ataques oriundos, em épocas diversas, dos Rikbaktsa e dos Cinta-Larga, finalmente iniciaram um movimento de deslocamento mais radical da região, temerosos da assiduidade e impetuosidade cada vez maiores dos ataques dos últimos. Pode-se dizer que essa área, no coração da “Serra do Norte”, é o ponto-chave da territorialidade enawenê-nawê, pois além de ter sido palco de inumeráveis aldeias e intensa peregrinação até o início da década de 1940, e de deter muitos recursos fundamentais para a sua reprodução sociocultural, possui um aspecto cosmogeográfico muito distintivo: trata-se da confluência de uma tríplice cabeceira (rios Preto, Arimena e Aripuanã) assentada sobre um conjunto de morrarias com fauna e flora bastante peculiares, formando um nicho diferenciado em uma região que já é de transição e portanto bastante singular em termos de ecossistema. Essas morrarias são consideradas moradas dos yakairiti, espíritos subterrâneos aos quais se dedica a maior parte do ciclo anual de ritos, envolvendo práticas musicais e ecológicas. É também lá que se encontra a principal fonte de jenipapo (dana), fruto indispensável ao ritual Iyaõkwa para a pintura corporal, e por isso a região é chamada Danakwa (jenipapal). Os Enawenê-nawê jamais deixaram de coletar esse fruto nesse local, mesmo diante das mais tensas conjunturas de guerra.

Entretanto, a sobrevivência fê-los deslocar as aldeias em direção ao sul, passando pelas margens do rio Juruena – local não preferencial por tratar-se de rio de grande porte –, onde também foram atacados, tanto pelos Cinta-Larga como pelos Rikbaktsa, que ocupavam ambas as margens desse rio.

Deslocando-se continuamente em direção ao sul, por volta dos anos 1950 os Enawenê-nawê chegaram às margens do rio Iquê, tendo daí expulsado os Nambikwara. Anos depois também foram vitimados por seus históricos e já bem conhecidos inimigos, os Cinta-Larga, sendo obrigados a continuar fugindo pelo Camararé. Na década seguinte, os Enawenê-nawê se depararam com as frentes telegráficas, e delas também recuaram, decidindo habitar nas proximidades do rio Primavera, um pequeno afluente da margem direita do rio Camararé, em pleno território nambikwara. Aí permaneceram até meados dos anos 1980, quando então migraram de volta para a região do rio Iquê, onde permanecem até hoje, deslocando-se apenas por pequenas distâncias nas margens desse rio.

A T.I. Enawenê Nawê foi demarcada deixando de fora áreas de suma importância sociocultural, como a do Rio Preto e suas cabeceiras. A demarcação se deu com base em estudos incipientes, calcados principalmente sobre as primeiras coletas de dados empreendidas pela MIA (posteriormente OPAN) após o ‘contato’. Estudos mais aprofundados somente foram levados a cabo no início da década de 1990 (conluídos em 1995), quando a demarcação já havia sido feita e a Portaria Declaratória da Área publicada. Some-se a isso o fato de que o momento do ‘contato’ (1974) se deu no momento limite de êxodo e relativa redução no escopo do uso do território tradicional, uma vez que encontravam-se refugiados em território considerado nambiquara. O escopo de suas ocupações sazonais encontrava-se constrangido ao extremo pela estratégia de sobrevivência. Uma vez assegurados de que os ataques não se repetiriam, voltaram paulatinamente a re-expandir as peregrinações e ocupações tradicionais focadas na agricultura, na pesca e na coleta, fundamentais para o retorno da vitalidade ritual tão característica desse povo.
Arte Plumária dos Enawenê-nawê

É por esse motivo que hoje a T.I. Enawenê Nawê encontra-se em processo de revisão de limites, cujos estudos serão em breve concluídos.

 História do contato

Desde 1962, os missionários jesuítas obtiveram noticias, por meio dos seringueiros que trabalhavam na região, da existência dos índios que mais tarde foram conhecidos por Enawenê-nawê. Diziam ser de índole pacífica, pois não hostilizavam os trabalhadores, mas trancavam os córregos, a fim de que os brancos não atingissem suas moradias.

Em setembro de 1973, em sobrevôo realizado pelo avião da Missão Anchieta, foi localizada uma aldeia às margens do alto rio Juruena. Pela localização, havia certa probabilidade que fosse algum grupo de índios Nambikwara e, por este motivo, no ano seguinte os missionários levaram consigo índios deste povo para estabelecer contato com eles.

Ao chegarem ao pátio de uma pequena aldeia de caça, logo surgiu a primeira dúvida sobre o novo grupo indígena, pois foi encontrada uma flecha quebrada e a amarração da pena era idêntica à dos índios Rikbaktsa; além disso, era certo que os índios em questão dormiam em redes, pois dentro das casas foram vistos armadores e cordas de embira. Assim, era praticamente certo que não se tratava de um grupo Nambikwara. Com a possibilidade desses índios serem Rikbaktsa, os missionários resolveram pedir para que índios deste povo os acompanhassem em uma nova expedição.

Após algumas tentativas, atingiram finalmente uma roça nova. Prosseguiram cautelosamente e chegaram a uns 20 metros do pátio da aldeia. Os Rikbaktsa escutaram a fala de mulheres, mas nada entenderam, e descobriu-se, então, que não se tratava de índios Nambikwara e nem Rikbaktsa.

Quando a equipe de expedição se aproximou da aldeia houve muita correria. Naquela ocasião só se encontravam mulheres e crianças, que correram para o mato. Passado os primeiros instantes, a equipe da expedição prosseguiu em direção ao pátio e só encontrou um índio de meia idade, com problemas físicos, que não conseguira fugir. Os missionários e os índios da expedição assentaram-se ao pé dele, colocando aos seus pés facões e machados.

Perceberam, então, que tudo que observavam ao redor pertencia ao grupo de língua Aruák: o estilo das malocas, a casa das flautas, o sotaque da língua etc.

Deixaram a aldeia para passar a noite na roça, pretendendo voltar ali no dia seguinte. Quando se preparavam para sair pela manhã, foram surpreendidos pela iniciativa de três índios que, passando o córrego, gritaram de longe e se aproximaram até o local onde estavam acampados. Traziam arco e flechas, sendo um deles mais idoso e os outros dois de meia idade. Foram para a aldeia, onde não havia ninguém, todos continuavam no mato. Logo trouxeram cabaças cheias de chicha de mandioca e os visitantes beberam. O índio mais idoso, a certo momento, retirou-se para o mato; depois de algum tempo voltou trazendo três mulheres, mais um homem e um menino. Com isso estava ratificada a aproximação desse grupo indígena.

 População

stima-se que à época dos primeiros contatos os Enawenê-nawê somavam aproximadamente 130 indivíduos. Os dados populacionais desse povo mostram que não apenas a população cresceu bastante de 1974 até a primeira década dos anos 2000, mas ainda que o ritmo desse crescimento tem sido mais veloz nos últimos anos. Em meados de 1996, 22 anos depois dos primeiros contatos, os Enawenê-nawê dobraram a população, reunindo aproximadamente 260 indivíduos. Porém, de 1992 a 2006, passaram de 216 para 435 indivíduos, ou seja, o ritmo do crescimento permitiu que a população dobrasse não mais de 22 em 22 anos, como aquele dado aferido em 1996, mas de 14 em 14 anos. Os dados, além disso, não deixam dúvidas quanto ao fato de o contingente populacional e nawenê-nawê ser, em 2006, bem mais jovem que nos anos 1970. As “crianças” (dinwá) somam quase dois terços da população, segundo a classificação nativa, o que muito provavelmente deve ter conseqüências importantes na capacidade reprodutiva desse povo.
Celebração na aldeia Enawenê-nawê

Cultura Material

O padre jesuíta Tomáz de Aquino Lisbôa que, em 1974 participou da expedição do primeiro contato oficial dos Enawenê-nawê com os brancos, fez uma descrição da aparência desses índios nessa ocasião. Contou que os homens tinham cabelos compridos caindo nas costas e aparados na região temporal, acima das orelhas. Boa estatura, mais brancos que escuros, trazendo no peito adornos de algumas penas encastoadas em peças arredondadas e trabalhadas, de coco de tucum, tendo tiras finas de algodão apertando o bíceps e a barriga da perna e, nos tornozelos, fitas mais largas. O pênis embutido em palhinha amarrada. Nas orelhas traziam argolas pretas, também de tucum, nas quais estavam presas conchas brancas de forma triangular.

As mulheres tinham cabelos compridos aparados acima das orelhas, tal como os homens. Usavam cintos com muitas voltas, feitos de tucum. Traziam mini-saias feitas de algodão e tingidas de urucum. Na barriga das pernas traziam argolas de borracha. À altura do umbigo, tinham muitos traços desenhados, tatuagens. Como os homens, traziam tiras finas de algodão apertando o bíceps. Nas orelhas, brincos iguais aos dos homens.

Tais características foram também observadas por Virgínia Valadão anos depois. Ela conta que os Enawenê-nawê fabricam redes, saias e pulseiras de algodão que cultivam. Pintam de vermelho as saias e o corpo com urucum. Em ocasiões especiais também usam a pintura preta de jenipapo, fruto de uma árvore. Estão sempre com os cabelos bem cortados, com franja, sulco raspado por cima da orelha e compridos atrás. Dentes de animais, frutos vegetais e penas de pássaros, em especial arara vermelha, papagaios, mutum e gavião complementam os colares e cocares. Os Enawenê-nawê criam araras e papagaios dos quais tiram penas para os colares. Não é preciso matar os animais. Fazem inclusive um tipo de tratamento nas penas do rabo dos papagaios com uma secreção extraída da pererecas, que transformam algumas penas verdes em amarelo ouro.

As mulheres têm duas meia-luas tatuadas nas laterais do umbigo, usam saias vermelhas de algodão e urucum, colares pretos de tucum na cintura e brincos de conchas nas orelhas. Os homens usam estojo peniano. É uma palha enrolada feita de fibra de buriti que serve para amarrar o pênis. É muito vergonhoso andar sem essa palhinha, é como andar nu, e os meninos passam a usá-la quando estão entrando na adolescência.

Para realizarem seus rituais, os Enawenê-nawê dispõem de uma grande variedade de bambus e cabaças de diferentes tipos e tamanhos, das quais são feitas flautas e chocalhos. Cada grupo ritual toca um instrumento diferente e o som produzido na pátio da aldeia, quando da realização do ritual Yãkwa, é o de uma verdadeira orquestra. Cada instrumento está relacionado a um grupo ritual, o qual, por sua vez, a um grupo de espíritos.

 Organização social

A aldeia

A aldeia enawenê-nawê tem um formato circular e é formada por casas comunais retangulares e uma casa circular, mais ou menos no centro, chamada de Yãkwa, onde ficam guardadas as flautas. No pátio central são realizados os rituais e as partidas de futebol de cabeça, esporte tradicional dos Enawenê-nawê, cujas bolas são feitas de látex extraído das seringueiras. Apanham água, tomam banho e lavam suas panelas em pequenos igarapés situados próximos à aldeia e fazem pequenas roças nos seus arredores.

As casas são feitas de troncos de várias grossuras amarrados com cipós e cobertas com palhas de buriti, com uma entrada de frente para o pátio e outra nos fundos. No interior das casas há uma área de circulação comum formada por um longo e largo corredor central que liga a duas entradas. Aí estão dispostos grandes jiraus (espécie de mesa alta feita de troncos finos espaçados entre si) sobre os quais se colocam bolos assados de milho, massas de mandioca para secar, entre outros alimentos.

Em cada casa moram diversas famílias ligadas entre si por relações de parentesco. Cada família composta de pai, mãe, filhas e filhos solteiros tem seu próprio fogo, suas redes próximas e um jirau onde guardam os seus pertences. Nestes agrupamentos, os homens são responsáveis pelo provimento de lenha, pela derrubada, queimada e plantio, enquanto as mulheres praticam a limpeza periódica das áreas cultivadas, a colheita e o processamento do alimento.

Além dos casais mais velhos, divisórias de esteiras marcam o espaço dos casais mais jovens. As filhas ficam perto dos pais e, portanto, são os jovens esposos que vão para o outro lado da casa ou para outra residência. É esta unidade – que agrega algumas famílias – a responsável por uma cozinha comunal e pelas roças de milho.

O interior das casas é muito agradável e cheio de atividades. Durante o dia, quando está quente do lado de fora, as casas protegem do calor. À noite elas são iluminadas com tochas de resina enrolada em folhas de pacova e são acesos os fogos de cada uma das famílias.

(Virgínia Valadão (1952-1998): Centro de Trabalho Indigenista - Adaptado pela equipe do ISA, 1998 e Marcio Silva, 1998)

Os clãs

Os clãs são as unidades mais abrangentes da estrutura social e nawenê-nawê. Eles são segmentos patrilineares (o pertencimento a um grupo clânico se dá pela linha paterna) espacialmente dispersos devido à regra do casamento uxorilocal, em que o marido vai residir, junto com sua esposa, na casa dos pais dela. Desempenham importantes funções matrimoniais, rituais, econômicas e políticas.

Os clãs não são formados apenas por pessoas, mas também por legiões de espíritos subterrâneos e espíritos celestes, todos associados a conjuntos de flautas. Segundo os Enawenê-nawê, estes grupos são compostos pelos descendentes de populações míticas que viviam espalhadas por todo o vale do rio Juruena e regiões adjacentes, até que uma série de catástrofes (ataques de povos inimigos, de espíritos e de onças, dilúvios, doenças etc.) as dizimou quase totalmente. Os sobreviventes dessas catástrofes teriam se reunido em torno de (conjuntos de) yakaireti, que são os seres sobrenaturais que habitam o interior da terra, sob os acidentes geográficos. Os clãs, ou como preferem os Enawene Nawe, os yãkwa, são compostos de “restos” de uma ou mais populações míticas, que podiam casar-se entre si. Dessa forma surgiram os Enawenê-nawê atuais, que utilizam a categoria yãkwa para designar ora estes seres criadores, ora as próprias unidades exogâmicas (que não permite o casamento no seu interior) por eles criadas.

A cada dois anos os clãs se alternam como harikare, papel definido pelos Enawenê-nawê como o responsável pelo cultivo da grande roça de mandioca adjacente à aldeia. São eles também os responsáveis pela fabricação do sal de origem vegetal, consumido durante os rituais que tematizam a reunião dos yãkwa. O clã que desempenha a função de harikare parece representar nas cerimônias os grupos míticos de origem (ou seus “restos”), enquanto os demais encarnam coletivamente os espíritos fundadores do agrupamento social e são responsáveis pelo fornecimento dos peixes a serem trocados com os harikare por alimento de origem vegetal.

 Mito de origem

Contam os Enawenê-nawê que os povos ancestrais, de cujos “restos” eles são originários, habitavam, inicialmente, o interior de uma pedra. Graças ao auxílio de um pica-pau, que fez um buraco na pedra abrindo uma passagem ao mundo exterior, os povos se espalharam pela superfície da terra. Essas populações se apresentavam invariavelmente como culturas incompletas ou defeituosas. Em uma delas, por exemplo, todos os seus objetos eram de palha de buriti, em outra os homens não portavam o enfeite peniano, em outra ainda as aves eram o único alimento consumido. Uma série de catástrofes, provocadas pela ação dos espíritos subterrâneos, sob a forma de ataques de onças, monstros aquáticos, povos inimigos, epidemias etc., quase as dizimou totalmente. Os poucos sobreviventes dessas populações, guiados pelos espíritos celestes e subterrâneos de seus respectivos clãs, foram um por um se dirigindo a uma determinada aldeia, a dos formadores do aweresese, um dos clãs principais. À proporção que chegavam, dirigiam-se à casa-dos-clãs, onde depositavam suas flautas em uma determinada posição que, segundo os Enawenê-nawê, se mantém idêntica até hoje. Uma vez reunidos, os remanescentes de cada uma dessas populações se envergonharam de algumas de suas idiossincrasias culturais e ensinaram uns aos outros os seus bons costumes. Assim, por exemplo, os anihiare aprenderam com os outros a não comer mais carne de caça, mas ensinaram aos outros a usar o estojo peniano.

Os Enawenê-nawê “históricos”, isto é, tornados idênticos aos atuais, depois da reunião dos povos e das flautas dos clãs em uma aldeia circular, apreendem assim o seu universo cultural como uma combinação de bom gosto de tradições distintas originárias do tempo dos Enawenê-nawê “míticos”, os que saíram da pedra.

 A pessoa Enawenê-nawê

Para os Enawenê-nawê a pessoa é uma trindade em potência. Ao morrer, dá-se origem a três subjetividades cósmicas, um enore, um iakayreti e um dakoti. As expressões vitais representadas pela pulsação cardíaca no peito e na região da cabeça, a respiração, a vividez dos olhos, a fala, a sensibilidade olfativa e a audição amalgamam-se no que é conhecido como hesekonase, a “alma celeste”, que sobe ao eno, a camada principal do cosmos. Lá ela desembarca como um deus enore, passando a conviver com seus parentes consangüíneos, do mesmo clã.

Os batimentos manifestados em diferentes pontos dos membros inferiores, nas suas juntas e dobras, formam o oyakoare ou wayakoriri, substância que é tomada pelos iakayreti representantes do patri-clã do morto, que fabricam com este espólio um ser espiritual da mesma raça e família, que passa a viver definitivamente num dos topônimos hidro-geográficos visíveis e distintos da paisagem natural. Um dakoti é uma espécie de cópia ou “duplo” da pessoa, sua sombra; algo vivo, que com o morto, e como ele, deixou de existir e de se movimentar. E sob esta forma segue rumo à cidade dos espectros, no extremo do arco-íris. O corpo, ou melhor, o cadáver, simplesmente apodrece, esvanecendo-se na terra.

A morte

Para o sepultamento do morto, os Enawenê-nawê preparam, da casca de algumas árvores da mata ciliar, uma urna funerária no formato de um tubo da altura da pessoa. Esse momento é marcado por choros, lamentos, comentários, gritos e gestos, acompanhados de um constante vai e vem pela aldeia e de uma grande aglomeração em torno do morto. Terminadas as cerimônias fúnebres, a urna é depositada numa cova funda, aberta no interior da casa, exatamente sob o local que ficava a rede onde a pessoa dormia. Com o morto são enterrados seus pertences e/ou objetos de uso pessoal: colares, cocares, roupas, arco e flecha, machado, facão... Enfim, tudo aquilo que por algum parente é apontado como veículo da lembrança do falecido. Seu próprio nome, inclusive, deixa de ser pronunciado. É a partir daí que se dá início à viagem-transformação da terceira subjetividade enawenê: toda a armadura mortuária segue destino até a cidade das sombras, despojando-se aos poucos durante seu trajeto.

Já desfeito de toda a carapaça vegetal, o morto se depara com uma gigantesca aranha. A mulher que não possuir a tatuagem corporal, insígnia da iniciação, traços inscritos entre os seios e em torno do umbigo, é imediatamente devorada por ela. Já os homens estão livres dessa inspeção, e também crianças de ambos os sexos são poupadas. A viagem ainda não acabou; uma vez livre da aranha, o morto, agora, tem que atravessar o maior de todos os rios – que alguns dizem ser o rio Aripuanã e outros o Amazonas. Sua travessia é feita por uma ponte formada por um emaranhado de cobras coloridas, e logo em seguida ele é recebido com festa, como um dos seus, pelos dakoti. Após a morte de uma pessoa, por várias semanas, em determinadas horas do dia, seus parentes mais próximos executam um choro ritual, um lamento cantado e formal, que evoca a ausência e a saudade do falecido. Nesses momentos falam sobre a importância do morto e o ressentimento com os iakayreti, com sua fúria injusta por uma suposta insatisfação alimentar.

Fases da vida

Os Enawenê-nawê concebem diferentes categorias de idade, segundo as quais as pessoas são classificadas no percurso de seu desenvolvimento físico e cultural. São elas:

Tiraware/Tirawalo (vida intra-uterina)
Para que uma mulher engravide são necessárias muitas relações sexuais. Para eles, a gravidez é o resultado da combinação entre o esperma e o sangue menstrual no útero. O tronco, os braços e a pulsação cardíaca são os primeiros a se desenvolver no útero materno, depois as pernas e a cabeça. Se a mulher tiver relações sexuais com mais de um homem durante a gravidez, o bebê terá sido feito em conjunto.
Wesekoitakori/Wesekoitakolo (recém nascido)
Nesta fase o pai e a mãe ficam em reclusão e obedecem a restrições alimentares para que o recém nascido não seja atormentado por seres que causam doenças ou a morte. O bebê tem seu cabelo cortado e suas orelhas furadas para receber o brinco de tucum. Também são colocados adornos de algodão em torno dos tornozelos e punhos. Sua alimentação é o leite materno oferecido pela mãe, tias e avós. Banhos de ervas para que cresçam com saúde e pinturas leves com urucum também são recomendados.
Enawehorairi/Enawehorailo (criança de colo)
Nesta fase usam colares, pulseiras e tornozeleiras. Após o ‘benzimento’ podem consumir o oloiti (refresco de mandioca) o ketera (mingau de mandioca) e o mel diluído na água. Os irmãos mais velhos ajudam nos cuidados diários.
Anolokwari/Anolokwalo (criança que senta e engatinha)
Nesta fase, a criança recebe um par de brincos de conchas além de mais colares para enfeitar o seu pescoço. As meninas usam cinto de tucum e pintura corporal de urucum, feita com palha de buriti.
Atetoarese/Atetoarese (criança que fica em pé)
Segundo os Enawenê-nawê, nessa fase as crianças são auxiliadas pelos enore nawe para que não caiam e se machuquem.
Atonaharese/Atonahalose (criança que anda)
A criança recebe tornozeleiras de algodão tecidas em tear. As meninas usam argolas de borracha na perna, abaixo do joelho. O peixe é incluído na dieta alimentar.
Dinoarese/Dinoalose (criança pequena - de 3 a 6 anos)
Começa a tomar banho sem a companhia dos pais. Iniciam o aprendizado de uma série de atividades com os adultos, como acompanhar os pais na roça e nas expedições de pescas familiares. As meninas estão sempre junto da mãe.
Enawaretese/Enawalotese (criança de 7 a 11 anos)
Nesta idade são intensificados os processos de transmissão do conhecimento e aprendizagem. Os meninos acompanham os pais nas pescarias e as meninas seguem para as roças com as mães.
Awitaretese/Awitalotese
O menino participa de pescarias, sem o pai. Se as articulações matrimoniais já existirem, presta serviço para o futuro sogro na plantação de uma pequena roça com o auxílio do pai para que a noiva e a sogra possam colher. A menina cuida das crianças menores, participa dos rituais, assim como os meninos desta idade.
Awitariti/Awitaloti
Esta é a fase de transição para a vida adulta. Os meninos recebem o adorno peniano chamado de olokoiri e meninas, a tatuagem em torno do umbigo e dos seios, após a primeira menstruação. Nesta fase estão prontos para o casamento. As marcas da passagem (adorno peniano e a tatuagem) têm grande valor social, pois indicam a capacidade reprodutiva da pessoa.
Enetonasare/Enetonasalo (nascimento do primeiro filho)
As mulheres mudam os adornos e passam a usar o urucum com outros traços diferenciados da fase anterior.
Kolakarinasare/Kolakalonasare
A partir do quarto filho.
Kolakalare/Kolakalalo (nascimento do primeiro neto)
A pintura corporal passa a ter uma fina camada de urucum, as mulheres sofrerão algumas restrições na participação dos rituais.
Ihitariti/Ihitaloti
É caracterizada pela presença de rugas, diminui o uso de adornos.

Nominação

Entre os Enawenê-nawê cada clã dispõe de um acervo de nomes armazenado. Estes nomes são repassados por via paterna e dinamizam as sucessões quando da ocorrência de óbito de um de seus membros, que passa a ser lembrado raramente, e não mais pelo seu nome, mas por meio dos termos de parentesco.

Um indivíduo, por ocasião de seu nascimento, recebe um nome escolhido pelo pai de seu pai e outro pelo pai de sua mãe. O serviço da noiva (obrigações que o genro deve ao sogro, pagas em peixes) faz com que o avô materno “esqueça” o nome por ele conferido. Isso faz com que o indivíduo seja definitivamente integrado ao clã de seu avô paterno (e de seu pai).

 Aspectos cosmológicos

O cosmos enawenê-nawê é representando por quatro níveis: acima do patamar terrestre onde vivem encontra-se o eno, habitat dos deuses celestes, o(a)s enore(lo) nawe; abaixo do plano terrestre, um amplo e sinistro universo dominado pelos iakayreti; e acima do eno, a quarta e última camada, um infinito espaço inalcançável e sem vida.

Patamar celeste

No eno, do qual o patamar terrestre é apenas uma imitação e reflexo, vivem (as almas de) animais de todas as espécies; a vegetação é exuberante e sempre verde, a terra incomparavelmente fértil e constantemente cultivada; seus dois principais rios, depois de receberem vários tributários formam um perfeito delta. Lá encontra-se uma única aldeia, onde vivem o(a)s enore(lo) nawe. Ao longo de suas margens estão atracadas imponentes canoas de madeira usadas para o transporte e a pesca.

No céu do eno há lua e estrelas e, contrário à impressão de que o sol nasce e se põe nos extremos da superfície terrestre, para os Enawenê-nawê ele tem seu trajeto em torno do patamar celeste, num movimento anti-horário: quando lá nasce o sol, na terra ele está se pondo, quando lá é noite aqui é dia. O(a)s enore(lo) nawe, são seres bondosos e fisicamente invejáveis, considerados ancestrais, avós dos Enawenê-nawê. À beira da obesidade, são donos de corpos perfumados, bem torneados e fortes; apresentam a pele branca, os dentes perfeitos e os cabelos esmeradamente aparados. Sua ornamentação corporal é aquela típica dos homens durante as cerimônias: pele untada com tintura de urucum com traços destacados em vermelho-sangue, brincos triangulares de conchas vítreas de água-doce, colares bem arrematados de frutos de tucum, braceletes, pulseiras, tornozeleiras e caneleiras feitas com as penas vermelhas e negras de araras cabeçudas e mutuns. Vivem seu dia-a-dia à moda dos humanos, embora de maneira perfeita, ecologicamente sincronizada, social e moralmente correta: são praticantes da pesca, da coleta e da agricultura; são donos de importantes espécies vegetais e animais; tecem redes, buscam lenha, preparam o próprio alimento, fazem rituais e são donos de uma efervescente vida sexual. No eno os espíritos refestelam-se em cerimônias coletivas, tocando, cantando, dançando e comendo abundantemente no pátio da aldeia. Quando notam sinais de envelhecimento vão até a límpida lagoa onde se banham: trocam de pele e remoçam. Imunes a qualquer tipo de enfermidade, conservam-se sempre jovens e imortais.

No eno as casas são ordenadas rigorosamente em círculo, havendo no seu centro uma pequena casa dos homens, chamada de haiti, onde são guardadas as flautas para as cerimônias rituais.

Patamar subterrâneo

Se o eno é o espaço da ordem física e moral, o patamar subterrâneo (ehatekoyoare), por sua vez, é a seara da misantropia. Desprovido de qualquer construto de vida social, inacessível sequer a um xamã, esta camada do cosmos é dominada por uma incessante penumbra, a presença de um “sol frio” e uma chuva fina permanente: um mundo sombrio. Aí vivem e transitam os iakayreti, seres disformes e responsáveis pelas mazelas humanas, pela doença e pela morte.

Contraponto da beleza e perfeição físico-social dos deuses celestes, os iakayreti são deformados, exageradamente altos, sem articulação nas juntas dos braços e pernas; são desprovidos de olhos; seus cabelos são longos e sem aparas, não portam sinais nem adereços corporais, não sabem sorrir nem chorar; são preguiçosos, sovinas e carrancudos; nada constroem e nada cultivam, e estão sempre na dependência dos humanos, obrigados a alimentá-los no dia-a-dia e durante os banquetes festivos. O patamar subterrâneo é o seu reino exclusivo, mas sua moradia são as ilhas, os morros, as cachoeiras, as lagoas, os brejos e as corredeiras e barrancas de rio. Vivem sob desordem, completamente desprovidos de sociabilidade. Mesmo assim dispersos, são identificados a partir de nomes próprios e sempre associados aos grupos clânicos.

Aos iakayreti pertencem importantes espécies vegetais e a eles se destina toda a produção agrícola; são donos dos peixes, que trocam por aquilo que mais gostam, o sal vegetal, que só os homens são capazes de fabricar. Uma vez recebido o sal eles voltam a alimentar-se de peixe, partilhando-o com os humanos durante os banquetes festivos na aldeia.

Sempre preocupados em produzir e oferecer comida aos iakayreti, os Enawenê-nawê organizam, exclusivamente para eles, fartos banquetes, e assim eles marcam presença na aldeia durante as cerimônias. De olho nos comes-e-bebes, incorporam-se nos homens e nutrem-se através deles. Nem todo tipo de alimento, entretanto, satisfaz o desejo desses predadores. Quase sempre insatisfeitos, eles visitam cotidianamente a aldeia à procura de comida. Se contrariados com o que viram, voltam irritados para seu domínio, aplacando inexoravelmente sua ira sobre os Enawenê-nawê.

Camada terrestre

Na camada terrestre vivem e circulam, além dos humanos, dois outros tipos de seres, os dakoti e os atahare-wayate. Ogros gigantes que habitam o interior das árvores (“espíritos da mata”), os atahare são donos de várias espécies vegetais; possuem boca descomunal, capaz de engolir uma pessoa por inteiro. Adormecidos na floresta, são despertados pelo cheiro de sangue, tomando como vítimas aquelas pessoas que violam certos tabus.

Os dakoti são entidades espectrais, olhos profundos e sem brilho. Desprovidos de materialidade, não têm carne, nem osso e nem sangue; são ainda desdentados e quase sem cabelo na cabeça; alimentam-se de insetos, pequenos anuros e fungos. Os dakoti são seres agoureiros por excelência: caminham corcundas e estão quase sempre agachados ao longo dos caminhos; sua aparição (quase nunca admitida ou revelada por alguém) é prenúncio de doença e morte, seja da própria pessoa que o vê ou de algum parente desta. Costumam visitar ou avizinhar-se da aldeia enawenê, principalmente quando alguém se encontra prestes a morrer, pois são considerados também mensageiros dos iakayreti: levam aos parentes do doente notícia da fúria destes seres promotores da morte.

(Gilton Mendes dos Santos, 2006)

 Xamanismo e feitiçaria

O xamã
O xamã é quem tem a capacidade de se deslocar até o patamar celeste. Isso normalmente acontece através de sonhos especiais ou transes. Tudo começa quando, deitado em sua rede, entre o sono e a vigília, o xamã (sotayreti) passa a proferir frases em alto tom, atraindo mais e mais pessoas ao seu redor, ocasião em que são revelados os perigos de doença ou morte corridos por alguém, o agravamento ou a melhora de alguma enfermidade etc. O xamã também pode, em estado de transe, perambular agitado pelo pátio e arredores da aldeia, em especial à noite, com gestos agressivos e tensos, quase sempre munido de arco e flecha à procura de seres malignos, visíveis apenas a seus olhos. Apenas o xamã é capaz de identificar um iakayreti que, quando visto, no pátio ou nos fundos das casas, foge imediatamente para o interior da terra. Muitas vezes, no entanto, pode ser alvejado, mas nunca morto, por um xamã, que imediatamente anuncia seu feito, mostrando uma flecha quebrada e descrevendo orgulhosamente o ataque.

A atividade xamânica é uma operação que exige recompensa por parte da família do beneficiado – exceção concedida apenas no caso de morte do paciente –, comumente feita por meio de colares de tucum, peixe, milho, anzol e outros objetos de uso pessoal. Tanto o homem quanto a mulher podem ser xamãs, mas não basta simplesmente querer; sua prática é admitida após uma reconhecida iniciação, e somente um sotayreti experiente pode ser o iniciador e guia de um aprendiz. Aparentemente simples, a introdução ao xamanismo requer contínuos estados de transe, habilidade de sucção das substâncias patogênicas e narrativas convincentes de contatos e sonhos com as divindades celestes.

Por toda esta capacidade de lidar com as forças sobrenaturais, poder de cura e prevenção, o xamã é uma figura de elevado prestígio social. É ele quem faz a ligação entre o patamar dos deuses celestes e o mundo dos humanos, seja através de viagens até o eno ou invocando a presença dos enore nawe na aldeia. Assim, enquanto houver xamã entre os Enawenê-nawê, eles não estarão abandonados à mercê da ação dos seres malignos que, embora habitem outros espaços, encontram-se tão próximos, ameaçando continuamente a paz e a existência dos homens na terra.

O soprador

Além do xamã, existe o(a) hoenaytare(lo), literalmente soprador (sopradora), uma mulher ou um homem detentor de palavras mágicas que, veiculadas pelo sopro, têm o poder de agir contra o ataque de seres deletérios. Age também em sentido inverso, causando a doença e a morte de pessoas. O soprador atua preferencialmente por ocasião dos tabus e prescrições alimentares, período conhecido como kadena.

O conhecedor das plantas

O baraytare é o especialista no conhecimento e manipulação de plantas utilizadas, na maioria das vezes, como tonificantes das atividades físicas (sobretudo de uma criança, para melhor andar, crescer forte e resistente, etc.), como contraceptivos femininos e ainda no tratamento de cortes, feridas e outras lesões aparentes, conseqüentes ou não da ação dos seres malevolentes. O uso das plantas pode ser também empregado em conjunto com as operações xamânicas.

O feiticeiro

O feiticeiro (iholalare) é um mobilizador de forças e práticas do mal, que atua exclusivamente pela vingança. Sua principal habilidade é a produção e uso de venenos poderosos. Mantido na invisibilidade social, sempre oculto e de atos solitários, um feiticeiro é alguém nunca apontado ou admitido como tal por quem quer que seja. Embora evitem falar sobre o assunto, os Enawenê-nawê acreditam que há vários feiticeiros entre eles. (Extraído de: Gilton Mendes dos Santos: Da cultura à natureza: um estudo do cosmos e da ecologia dos Enawene-Nawe, 2006)

 Ciclos rituais

O calendário ritual enawenê-nawê está intimamente ligado às atividades econômicas que realizam. Toda a sociedade estabelece uma relação de troca constante entre grupos rituais e os espíritos subterrâneos (iakayreti) e celestes (enore nawe), que se dá por meio de um ciclo anual de rituais. Os produtos agrícolas, os peixes e os produtos de coleta são bens de consumo e de troca. Assim, os Enawenê-nawê organizam os trabalhos de forma a produzir alimentos para o consumo cotidiano e para serem oferecidos e trocados durante os rituais.

Os acampamentos de coleta de mel marcam a temporada dos rituais salumã e kateokõ, destinados aos enore nawe. Suas atividades e cerimônias são associadas a esses seres benevolentes e, por isso, são mais descontraídas.

A roça coletiva de mandioca tem início em agosto, com o ritual de lerohi e termina de ser plantada no ano seguinte, durante o ritual do yãkwa, ambos associados aos iakayreti. Durante o yãkwa os homens plantam as primeiras ramas à noite e fazem uma espécie de reza, além de derramar bebida de mandioca e peixe assado na terra para a planta que eles chamam de mandioca-mãe, em referência ao mito que contam sobre a origem da roça de mandioca. Tal mito diz que a primeira mandioca foi uma menina que pediu à sua mãe que a enterrasse até o pescoço e ao seu pai que sempre lhe levasse peixe. Dessa forma ela produziria sempre mandiocas que sua mãe arrancava com carinho. Até que um dia outra mulher veio roubar as raízes e arrancou a planta com força. A menina chorou muito, parou de falar e morreu. A partir daí as mandiocas não nasceram mais sozinhas e os homens foram obrigados a plantá-las todos os anos, como fazem atualmente.

O peixe é também considerado um alimento nobre, fundamental para a realização de seus rituais. Para esta finalidade, os Enawenê-nawê constroem barragens e armadilhas, onde são capturadas grandes quantidades de peixes que são levados para a aldeia e consumidos durante os quatro meses seguintes, quando realizam uma série de cantos e danças do ritual yãkwa.

(Virgínia Valadão (1952-1998): Centro de Trabalho Indigenista - Adaptado pela equipe do ISA, 1998 e Gilton Mendes dos Santos, 2006)

 Atividades produtivas

A pesca, a coleta e a agricultura não acontecem em momentos exclusivos e separados do calendário anual. Elas são atividades encadeadas e complementares, ainda que em determinado momento uma delas tome conta do cenário sócio-econômico e de um tempo específico do ciclo de produção entre os Enawenê-nawê.

Pesca

A pesca é realizada durante quase o ano inteiro e organizada com base nos fenômenos de seca, enchente, cheia e vazante dos corpos d’água. Cada um desses momentos – ou na passagem de um para o outro – requer um conjunto de técnicas que possibilitem os melhores resultados na captura dos peixes. Próximos ou muito distantes da aldeia, os locais de pesca são explorados sob diferentes arranjos sociais, em grupos maiores ou menores, de parentes próximos ou menos próximos, e também por saídas individuais.

A pesca é também uma atividade essencial na vida ritual, onde o peixe – junto com os produtos agrícolas, em especial a mandioca – é o alimento predileto dos espíritos, sejam dos subterrâneos ou dos celestes. É a pesca, ainda uma tarefa eminentemente masculina.

Os Enawenê-nawê são exímios pescadores, e utilizam diversas técnicas que são empregadas em diferentes locais e momentos do ciclo das águas. Pescam com anzóis, arco e flecha, venenos vegetais, pequenas e grandes armadilhas e construções de barragens. A barragem de pesca é uma requintada obra de engenharia, que consiste no fechamento parcial do leito do rio, alcançando suas duas margens. A construção é formada por troncos entrecruzados, que formam uma rede de paus entrelaçados. Nela são encaixadas dezenas de armadilhas em forma de cone, através dos quais a água é violentamente succionada, capturando os peixes que descem em direção aos grandes rios.

As armadilhas são conferidas freqüentemente, e os peixes presos nela são imediatamente recolhidos e guardados em pequenos cestos trançados especialmente para este fim. Estes cestos são colocados em jiraus de moquéns sob fogo constante, para serem defumados.

Dessa pesca apenas os homens adultos e crianças acima de seis anos, aproximadamente, participam. Eles dividem-se em grupos (denominados de yãkwa) em número de três a cinco, deslocando-se para diferentes rios. Definido o local da barragem, constroem próximo o acampamento de residência, permanecendo aí por cerca de dois meses. Essa pescaria garante grandes quantidades de peixes que são consumidos durante os quatro meses do ritual yãkwa.

Nenhuma espécie de peixe está ausente do menu dos Enawenê-nawê, que admitem, inclusive, o girino (larva de anuro) como “um tipo de peixe”. As espécies mais comuns são os piaus, as traíras, as matrinchãs, os tucunaré e os jaús.

Coleta

Os arredores de uma aldeia são um bom lugar de coleta de frutos, insetos, fungos, mel e outros recursos. Os melhores locais, no entanto, são aqueles onde os Enawenê-nawê constroem seus acampamentos por ocasião das pescas coletivas e das roças de milho, quando a população se dispersa, diminuindo assim a pressão sobre os recursos no entorno da aldeia. Essas atividades coincidem com o começo da estação das chuvas, em que tais recursos aparecem em abundância. Mulheres, homens e crianças, todos, participam de algum tipo de coleta. Há alguns itens que são especialmente coletados pelos homens ou mulheres ou pelas crianças, e outros por qualquer um, sem distinção.

Em algumas épocas a agitação é maior em torno da procura de alguns recursos, como é o caso da castanha do Brasil, da bacaba, do pequi, do buriti, e em especial do mel. Formigas e cupins e uma boa diversidade de fungos-cogumelos aparecem com freqüência na alimentação (quase cotidianamente) durante os meses de chuva, sendo misturados com beiju ou assados e cozidos. Raramente são consumidos na forma in natura. Alguns deles são coletados em expedições e outros individualmente. A maioria serve para o consumo do grupo familiar nas refeições diárias ou simplesmente como petiscos; outros são consumidos de forma coletiva durante os rituais, caso da castanha e do mel, dois ingredientes apetitosos nas cerimônias voltadas aos espíritos subterrâneos e aos celestes, respectivamente.

O sal vegetal e o mel são dois produtos da coleta que se complementam nos campos da representação sócio-cosmológica. O sal é um recurso escasso de fina manufatura e produção muito limitada. Consumido numa forma de “alimentação simbólica”, ele é excepcionalmente eficaz como invocativo dos espíritos subterrâneos. O mel, por outro lado, é um alimento abundante, explorado durante boa parte do ano e utilizado durante os rituais voltados aos espíritos celestes, mobilizando a parceria entre homens e mulheres no interior da dinâmica social.

Agricultura

Os Enawenê-nawê estabelecem uma clara distinção entre roça de mandioca e roça de milho. A primeira localiza-se no entorno da aldeia, em áreas de solos arenosos e bem drenados. A roça de milho, por sua vez, está localizada em áreas distantes da aldeia, nos solos mais férteis do território, onde os Enawenê-nawê constroem residência temporária durante o período de seu cultivo. A diferença revela-se, ainda nas técnicas de produção e nos períodos de sua execução, bem como nas associações destas com outras atividades do calendário anual. No âmbito das relações sociais, a roça de mandioca articula o grupo familiar, e a de milho mobiliza o grupo doméstico.

É no interior dessas roças que se encontram cultivadas todas as plantas domésticas conhecidas pelos Enawenê-nawê.

Além das roças familiares, eles possuem uma roça de mandioca feita coletivamente, que serve única e exclusivamente para o abastecimento das cerimônias nos rituais yãkwa e lerohi. Renovada a cada dois anos, esta envolve a participação de todas as pessoas, homens e mulheres, e possui local definido para sua instalação durante o tempo de permanência dos Enawenê-nawê numa mesma aldeia. Internamente, a roça coletiva é dividida em parcelas, que correspondem ao número de pessoas adultas do grupo responsável pela sua manutenção (harekare) durante o período de dois anos consecutivos.

O calendário agrícola tem início exatamente com o cultivo da mandioca. A roça coletiva é a primeira a ser implantada e, logo após a identificação do local, todos os homens, com exceção do grupo de harekare, empenham-se na abertura do terreno. Uma vez pronta a roça coletiva, é hora de fazer as roças familiares.

Os Enawenê-nawê cultivam dois tipos de mandioca: a mansa (doce ou não venenosa) e a brava (amarga ou venenosa). A mandioca brava é preferida pela grande diversidade de modos de preparo de alimentos que possibilita, destacando-se o beiju, a cerveja de baixa fermentação, o mingau e a sopa de milho. A mandioca mansa é consumida, comumente nas formas cozida e assada.

Se as atividades agrícolas realizadas até o plantio são de responsabilidade primeira dos homens, a partir de então todas as demais tarefas ficam por conta das mulheres, como a manutenção da limpeza da roça, a colheita e a replantação.

 Fontes de informação

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