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segunda-feira, 11 de abril de 2016

Karipuna do Amapá

Toy Art Karipuna do Amapá

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
94Karipuna do Amapá
Creoulo
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
AP2421Funasa 2010



Os Karipuna fazem parte do complexo de povos indígenas da região do baixo rio Oiapoque, que estão inseridos em redes amplas de intercâmbio, que englobam famílias índias ou não-índias estabelecidas em aldeias e cidades vizinhas, no Brasil e na Guiana Francesa. A despeito de tratar-se de uma sociedade com fronteiras pouco precisas, fluidas e indefinidas, dados os constantes intercâmbios, intercasamentos e realocações das famílias, os Karipuna utilizam a expressão “nosso sistema” para definir um conjunto de práticas, conhecimentos e crenças que consideram próprias, englobando conhecimentos xamanísticos e católicos.

 Localização e população

As famílias Karipuna formavam uma população de aproximadamente 1.700 pessoas, segundo dados de 2002, residentes em sua maioria às margens do rio Curipi, afluente do rio Uaçá, no norte do estado do Amapá. Trata-se da região do baixo rio Oiapoque, nas proximidades do Cabo Orange, área de fronteira do Brasil com a Guiana Francesa.
Território Karipuna do Amapá

Toda região do baixo rio Oiapoque, incluindo a bacia do rio Uaçá com seus afluentes, consiste numa área de fronteiras em vários sentidos. Fronteiras entre áreas fluviais e marítimas, litoral e área interiorana, vegetação pantanosa e de floresta, o calor equatorial e a brisa das monções oceânicas, fronteiras entre nações. As populações do Uaçá que convivem nessa região também criam, contornam e recriam fronteiras específicas, diferenciando-se em etnias, indentificando-se como “povos indígenas do Oiapoque”.

O tamanho e a composição das aldeias Karipuna variam enormemente. De todas, poucas não estão às margens do rio Curupi: encontram-se ao longo da BR-156 ou no rio Oiapoque, e também no Igarapé Juminã.

AldeiasPopulação (em 2002)
Manga458
Japiim29
Paxiubal37
Santa Isabel238
Taminã45
Espírito Santo345
Jõdef64
Txipidon21
Igarapé de Onça6
Zacarias 27
Ghõ Puen4
Tauahu12
Bastião8
Açaizal91
Encruzo25
Piquiá19
Curipi38
Kariá95
Estrela95
Aribamba49
Kunanã70

Dessas aldeias, só não estão às margens do rio Curupi a Piquiá, Curipi, Kariá e Estrela, que ficam ao longo da BR-156; além de Aribamba, no rio Oiapoque, e Kunanã, no Igarapé Juminã.

Desde outubro de 2002, todas essas aldeias encontram-se em território demarcado e homologado por decreto presidencial em três Terras Indígenas (TIs) contíguas: A TI Uaçá, com superfície de 470.164, 06 ha; a TI Juminã, com 41.601,3 ha; a TI Galibi, que já se encontrava homologada desde 1982, com superfície de 6.689,2 há, e onde está a aldeia Aribamba.

Lingua e Nome

Os Karipuna falam português e patois, que é a língua franca da região, mas que apresenta variações do patois falado por outros grupos indígenas e, principalmente, do patois de Caiena.

O termo “Karipuna” é usado como autodenominação por essa população e indica uma identidade de “índios misturados” ou “civilizados”, que é tanto atribuída como assumida pelas famílias Karipuna.

 História

Sobre a história mais geral da região, cabe enfatizar que, no palco comum do Oiapoque, diversas etnias indígenas, pertencentes aos troncos lingüísticos Aruak, Karib e Tupi, desde o século XVI conheceram o contato com os europeus, com suas diferentes nacionalidades e intenções: franceses, portugueses, holandeses, ingleses, membros de expedições missionárias, comerciais, armadas, científicas. Cada qual, entre nativos e estrangeiros, de acordo com as contingências e interesses próprios, estabeleceram alianças, trocas ou fizeram guerras. Nesse processo, ao qual, nos séculos subseqüentes, uniram-se populações negras refugiadas ou alforriadas, bem como grupos indígenas foragidos de perseguições, algumas etnias indígenas desapareceram, outras fundiram-se ou foram incorporadas em grupos maiores, ou­tras ainda se formaram, processos que geraram os atuais povos indígenas do Uaçá. Particularmente, a população Karipuna do Curipi resulta assim da fusão de diversas etnias.

Foi apenas no século XX que os grupos do Uaçá conheceram uma presença mais constante do governo brasileiro, bem como de órgãos missionários. Essa história mais recen­te foi fundamental para a elaboração de uma identidade conjunta atualmente com­partilhada por esses grupos. Ao mesmo tempo, de acordo com as diferentes atitu­des de cada povo frente à atuação desses órgãos governamentais ou missionários, traços específicos vão se imprimindo em suas culturas, atualmente usados como fatores de diferenciação dos grupos.

A virada do século XIX/XX representa um momento decisivo para esses grupos, pois é definido que a região do Uaçá, disputada com a Guiana Francesa, seria parte do território brasileiro. A partir da década de 1920, as autoridades brasileiras julgaram necessário exe­cutar projetos de ocupação do antigo território contestado, cujas populações con­sideradas "afrancesadas" eram vistas como ameaça à garantia da integridade terri­torial.

Em 1920 foi criada a Comissão Colonizadora do Oiapoque, que percorreu a fronteira em viagem de reconhecimento, e cujas con­clusões alardearam a necessidade de colonizar a região com "elementos nacionais". Acima da vila Martinica (atual sede do município de Oia­poque), a comissão propôs a construção da Colônia Agrícola de Clevelândia, fundada oficialmente em 1922, recebendo colonos provenientes do Nor­deste. Em 1924, essas famílias de colonos tiveram que dividir os alojamentos com 1.630 presos políticos, opositores do governo de Artur Bernardes. No ano seguinte, presos e colonos foram vítimas de uma grave epidemia, e os sobrevi­ventes foram transferidos para a vila Martinica.

Tendo fracassado a empreitada colonizadora, o governo volta sua atenção para as populações indígenas. Em 1927, o rio Oiapoque é percorrido pela Comissão de Inspeção de Fronteiras do Ministério da Guerra, comandada pelo general Rondon. Os relatórios produzidos pela Comissão mencionam as etnias da bacia do Uaçá, com os mesmos etnônimos usados atualmente, e ainda apontam para a necessidade de criação de um posto indígena e de uma escola, como primeiras instituições desti­nadas a "incorporar os índios à sociedade".

Foi também na década de 1920 que Curt Nimuendaju realizou sua pesquisa entre os povos do Uaçá, especialmente entre os Palikur. Esse trabalho, juntamente com aqueles realizados nas décadas seguintes por Eurico Fernandes (1948, 1950), são os únicos registros de cunho et­nográfico que temos sobre os índios da região na primeira metade do século XX. De acordo com as informações de Nimuendaju, Karipúna refere-se a "um número bastante grande" de falantes da Língua Geral Tupi, fugitivos das missões do Cunani e Macari que migram para o Oiapoque no final do século XVIII, juntamente com índios Aruãs, após ter havido o despovoamento da região pelos portugueses.

Na década de 1930 ocorreu um incremento de explorações econômicas no território ocupado pelos índios. Uma usina de extração de pau-rosa funcionou no Curipi de 1932 a 1935, até o esgotamento dessa madeira, tendo empregado vários Karipuna. Explorações auríferas foram realizadas principalmente por crioulos nos rios Oiapoque e alto Uaçá. Do ponto de vista das políticas governamentais, ocor­rem nessa década três fatos importantes para as populações do Uaçá: a implanta­ção de escolas primárias em 1934, a expedição de 1936 de Luís Thomas Reis, envia­do para a área como inspetor de fronteiras para verificar a possibilidade de utilizar a população indígena como "guardas de fronteiras", e a nomeação de Eurico Fernan­des, que já tivera anteriormente contato com os povos do Uaçá, como inspetor dos índios.

O reconhecimento oficial das populações do Oiapoque na categoria de "indígenas", que implicava a nomeação de um Inspetor de Índios como agente do SPI, deve ser entendido como uma medida governamental visando o controle daquela população de fronteira. As famílias das aldeias foram imediatamente consideradas "índias", não havendo necessidade de averiguar seus traços culturais, como ocorreu em outras regiões, notadamente no Nordeste, onde as estratégias de controle se deram justamente através da negação da condição de "indígenas".

Conforme se de­preende dos relatórios de Inspeção de Fronteiras, a necessidade da escola, ideali­zada como escola profissionalizante, estava vinculada à necessidade da "formação de trabalhadores nacionais", devidamente controlados por meio da construção de um posto indígena que contaria com o "apoio social e político" do destacamento militar de Clevelândia. O projeto de escola, portanto, pautava-se no ideário posi­tivista, nacionalista, coercitivo e autoritário comum àquela época, base ideológica do próprio Serviço de Proteção ao índio.

Re­sumidamente, pode-se dizer que em 1934 duas professoras foram contratadas pelo governo para lecionarem na vila Espírito Santo no Curipi e em Santa Maria dos Gallibis no Uaçá (atual aldeia de Kumarumã). As escolas funcionaram nas casas dos chefes das aldeias durante apenas três anos. Em 1945, através do SPI, a escola foi novamente ativada no Uaçá e no Curipi, dessa vez na aldeia Santa Isabel, onde funcionava o estabelecimento comercial do líder Coco.

Ainda que aparentemente precária e descontínua, a educação escolar teve fundamental importância para a formação da atual identidade desses grupos, para a propagação do uso do português e para a configuração das aldeias. Noções cívicas como o hasteamento da bandeira, a comemoração do Sete de Setembro, o hino nacional e a prática cotidiana do jogo de futebol foram alguns dos legados introduzidos pela escola.

A partir da década de 1950, com a saída de Eurico Fernandes, o controle do SPI deixa de ser tão marcan­te, havendo uma diminuição dos projetos, uma abertura para entrada de regatões, menor controle e até incentivo dos casamentos com não-índios. Com a diminui­ção dos recursos, a atuação do SPI torna-se menos eficaz, e o novo agente deste órgão volta-se para acordos com políticos locais, incentivando o alistamento eleitoral dos índios e estabelecendo uma política clientelista. Os Karipuna são os que mais participam desse alistamento e logo passam a votar de acordo com as indicações de seus líderes, contrariando as do próprio agente do SPI.

Em 1962, o mesmo agente entrou em acordo com a Colônia Militar de Oiapoque, autorizando a instalação de fazenda de bubalinos na ilha Suraimon, próxima da aldeia Galibi. Foram vá­rios os conflitos decorrentes da instalação dessa fazenda. A criação da Funai, em 1967 (órgão oficial sucessor do SPI), muda o quadro administrativo da região, com a criação de dois postos indígenas: PI Kumarumã e PI Palikur. A população Karipuna con­tinua sendo atendida pelo PI Encruzo até o final da década de 1970, quando é construído um posto no Curipi.

A presença do Cimi, nas pessoas de padre Nello Ruffaldi e irmã Rebecca Spires, será importante para o desenvolvimento de uma identidade conjunta aos quatro povos indígenas do Oiapoque. Por meio do contato com as aldeias indígenas, Nello Ruffaldi, pároco de Oiapoque desde 1972, se aproxima da linha do Cimi e inicia projetos voltados para a autonomia dos grupos e para a valorização de aspectos de suas culturas (como o próprio idioma patois). Entre os projetos destacam-se o cimento das cooperativas de comércio (que chegaram a dar alguns resultados, mas acabaram fechando até o final da década de 1980), o incentivo à organização de assembléias políticas e os projetos para educação diferenciada. Esses dois últimos com resultados visíveis e crescentes em nossos dias.

A década de 1970, portanto, foi marcada por uma maior participação política das lideranças do Uaçá, que passaram a atuar de forma mais organizada. Conjuntamente opuseram-se à fazenda Suraimon (que chegou a ser desativada no início dos anos de 1980) e iniciaram um processo de reivindicação pela demarcação e homologação de suas terras. Foram bastante pressionados pelo governo do território em 1980, quando te opuseram ao traçado proposto para a rodovia BR-156 (Macapá-Oiapoque), prevendo a perda das cabeceiras dos rios Uaçá e Curipi. Nessa ocasião, o padre Nello Ruffaldi foi acusado de insuflar os Índios, sendo ameaçado de expulsão do país. O chefe de posto Cezar Oda foi afastado do cargo sob acusação de divulgar livros e panfletos "subversivos". As lideranças acabaram aceitando o traçado da rodovia e assinaram termo de compromisso que previa, entre outras coisas, a construção de postos de vigilância junto à estrada e a contratação de chefes de postos indígenas para auxiliar a fiscalização das fronteiras do território indígena.

Apesar de derrotas como essa, que acabaram abalando a confiança das famílias nos líderes que assinaram o termo de compromisso, o processo de organização das lideranças e de participação política não esmoreceu. As assembléias indígenas do Oiapoque, inicialmente promovidas pelo Cimi e incentivadas pelos chefes de posto, passaram a ser cada vez mais promovidas e organizadas pelos próprios índios. Atualmente, são conhecidas em todo o Estado do Amapá e consideradas como exem­plos de organização. Quanto à participação na vida política da região, a atuação de algumas lideranças, que antes dos anos de 1970 limitavam-se ao estabelecimento de alianças com políticos locais, passa a ter um caráter mais conjunto e integrado. Nesse processo, uma identidade mais geral de "povos indígenas do Oiapoque" tornou-se visível.

Os frutos mais positivos do processo de participação política e de autonomia dos grupos indígenas revelaram-se principalmente na década de 1990, destacando-se a homologação definitiva das terras indígenas do Oiapoque em 1992, a criação da Associação dos Povos indígenas do Oiapoque, no mesmo ano, a formatura de treze professores indígenas no curso pedagógico em 1995, e a eleição do índio Galibi-Marworno João Neves à prefeitura do município de Oiapoque em 1996.

Esses grupos, cujas gerações anteriores absorveram a "moral cívica" trazida pela escola, atualmente vivem um processo de valorização das tradições indígenas, buscando recuperar a própria história e os conhecimentos que consideram tradi­cionais.

 Organização social

Os povos indígenas do baixo Oiapoque estão inseridos em redes amplas de intercâmbio, que englobam famílias índias ou não-índias estabelecidas em aldeias e cidades vizinhas, no Brasil e na Guiana Francesa. O auto-reconhecimento como “índios misturados” expresso pelas famílias Karipuna refere-se à sua origem heterogênea, bem como às constantes alianças que estabelecem com indivíduos ou famílias estrangeiras. Assim, os critérios de pertencimento ao grupo dependem da concordância a princípios de solidariedade e de cooperação mútua, englobando, com o tempo, pessoas e famílias que inicialmente eram consideradas “de fora”.

Os outros grupos indígenas da região com os quais as famílias Karipuna convivem são os Galibi-Marworno, os Palikur e um pequeno grupo Galibi migrado da costa da Guiana e residente no rio Oiapoque. Os Karipuna compartilham com esses povos os traços de uma tradição ampla e regional, embora possuam suas especificidades.

Nas escolhas de casamento, observa-se um expressivo número de casamentos entre parentes próximos, incluindo sobrinhos e primos. Essas uniões, tidas pelos grupos vizinhos como incestuosas, são valorizadas entre os Karipuna por corresponderem ao ideal de "não espalhar o sangue". Nos casamentos interétnicos, há uma tendência das mulheres casarem-se com homens não-índios, enquanto os homens encontram esposas junto a outras etnias indígenas. Pode-se perceber também a tendência de repetir casamentos com pessoas de uma mesma família, mesmo quando provenientes de outros grupos indígenas. Assim, a maioria dos cônjuges "de fora" acabaram incorporados à vida nas aldeias, havendo casos em que trouxeram outros familiares para comporem novas uniões.

As duas tendências de casamento dos Karipuna – a de fechamento, manifesta na endogamia no nível da família extensa, e a de abertura, evidente na valorização de uniões com pessoas “de fora” – constituem dois movimentos, aparentemente opostos, mas que se completam na construção de um padrão próprio de organização social. Esse padrão também se relaciona com a composição das aldeias.

O padrão de sociabilidade Karipuna permite a maleabilidade do padrão residencial: de grandes aldeias às pequenas localidades que abrigam uma única família nuclear, sem que haja necessidade de considerar uma ou outra forma de residência como "típica" ou "tradicional". Isso porque a rede de sociabilidade básica para a manutenção de cada família nuclear nem é tão estreita que se esgote na população de uma pequena aldeia, nem é tão ampla que abarque a população de uma aldeia numerosa. Assim, ocorre atualmente que as famílias residentes nas pequenas aldeias dispersas encontram-se unidas a outras, compondo um círculo maior de trocas e ajuda mútua, bem como as famílias residentes nas grandes aldeias não se encontram igualmente ligadas a toda a população, mas conformam círculos menores, os quais geralmente compõem segmentos residenciais no mapa da aldeia. É no âmbito desses círculos de cooperação e ajuda mútua que é possível visualizar a constituição de grupos locais, onde opera a tendência à endogamia.

É no âmbito desses círculos que ocorrem os mutirões para os trabalhos que garantem a subsistência das famílias: feitio e manutenção das casas, feitio da farinha para consumo próprio e para a venda, por exemplo. São esses cír­culos que se articulam também para ajudar determinada família nuclear a oferecer comida e bebida num mutirão de plantar (que reúne uma comunidade mais am­pla) ou numa festa de santo.

 Cosmologia e xamanismo

 A despeito de tratar-se de uma sociedade com fronteiras pouco precisas, fluidas e indefinidas, dados os constantes intercâmbios, intercasamentos e realocações das famílias com as outras aldeias e cidades vizinhas, os Karipuna utilizam a expressão “nosso sistema” para definir um conjunto de práticas, conhecimentos e crenças que consideram próprias, englobando conhecimentos xamanísticos e católicos.

Os Karipuna consideram que, paralelamente à realidade em que vivemos, ao "nosso mundo", ou a "este tempo", existem outros mundos que definem abreviadamente como "Fundo", ou de maneira mais específica como "fundo das águas", ou "fundo do mato" ou ainda "embaixo do Sol". Trata-se de um tempo presente paralelo ao nosso, mas que ocorre em outro registro.

Nestes mundos diversos vive uma série de seres sobrenaturais, denominados em termos gerais de "bichos" (bet), “almas” (nam), "mestres" (met), karuãna,"donos" (ghãpapa, literalmente "avô"), e, de maneira mais específica, de "cobra", "macaco", "jacaré", banahe, laposinie, entre outros. O contato com estes seres é sempre considerado perigoso às pessoas comuns, podendo causar-lhes ataques, morte e mesmo engravidar as mulheres. Os pajés são os únicos que têm capacidade de transitar por entre esses mundos, assim como de evocar e controlar esses seres em nosso mundo.

Chamam "bichos" os seres que povoam os mundos do "fundo das águas e do mato" e que são caracterizados por nomes de animais diversos, sendo os mais comuns: cobras-grandes, jacarés, macacos, espadartes, colhereiros, galegas. Afirmam que estes seres "são gente como nós no mundo deles", onde fazem suas festas e bebem caxiri, e que "vestem sua capa de bichos quando vêm passear no nosso mundo", ou seja, a cobra veste sua pele de cobra, as aves vestem suas penas e os animais vestem suas capas de pêlos.

Estes seres também podem ser chamados nam (une âme, "alma"), categoria que inclui "tudo o que tem espírito", como certas árvores usadas para fins curativos para a própria iniciação xamânica (denominadas arari, apucuriuá, tauén e também o tauari). Nesses casos, o termo não se refere às almas de pessoas mortas. A respeito do destino dos mortos, os Karipuna consideram que suas almas "ficam por aí” e podem causar doenças nos vivos, ou ainda acelerar a morte de pessoas enfermas. Dizem que os brancos não percebem, mas os índios escutam quando há almas perto, pois elas fazem um assobio fino, que também é produzido no mato pelas árvores que têm nam.

Chamam "mestres" os seres que, entre as categorias mencionadas, auxiliam os pajés em seu aprendizado e em suas práticas, e nesse sentido confundem-se com os Karuãna dos pajés. A palavra "mestre" é igualmente usada em relação aos seres que habitam ou cuidam de determinados lugares: "mestre do igarapé", "mestre da gruta”, para quem usam também os termos "mãe", "dono", ghãpapa (avô). Neste caso, ouvi menções a cobras, macacos, "bichos" em geral, e também aos hohôs, definidos como seres pequenos, com cabelos longos e emaranhados, que habitam áreas de pedras, grutas e igarapés, e andam sempre em par - "são dois irmãozinhos" - que podem engravidar as mulheres fazendo-as conceber filhos gêmeos.

Os Karipuna consideram que os "mestres" cuidam dos lugares onde habitam deixando-os sempre limpos, e podem causar doenças naqueles que os poluem, mediante o cheiro forte de peixe (pitiú) e de sangue menstrual. No entanto, dizem também que esses seres são atraídos por este sangue, por meio do qual penetram no corpo das mulheres e fazem que concebam "filhos de bichos" quando tiverem relações sexuais.

Por fim, a designação karuãna refere-se a todos os seres que têm relação com determinado pajé. Um karuãna, por estar sempre ligado a algum pajé, também pode ser chamado por ele de "amigo" (zami) ou "camarada” (kamahad), sendo sempre considerado como uma individualidade, tendo inclusive uma história e personalidade próprias.

Os karuãna de um pajé englobam "bichos", como cobras, jacarés, macacos e pássaros, "almas" como "arari", "tauarí", mas também categorias diferentes de seres, habitantes de mundos diversos, como os "curupiras” (djab dan bua), "diabos" (djab), banahes, entre outros. A todas essas categorias de seres são atribuídas capacidades próprias, às vezes línguas específicas, e também podem ser chamados pelo termo mais genérico de "bichos do pajé". Todo pajé tem entre seus karuãna algum que chama laposinie. Este é considerado o "mestre maior”, aquele que ensina ao pajé as capacidades e técnicas curativas, e sem o qual um pajé é apenas capaz de fazer feitiços. Dizem que esses seres vivem na "terra embaixo do Sol" ou no "mundo de onde o Sol nasce", e são descritos como "pessoas brancas e finas", também chamados "bons doutores". A palavra laposinie (do francês la poussinière) refere-se também à constelação das plêiades, sete-estrelo. A seu respeito, os Karipuna contam que todo ano passam um mês em outro mundo para trocar de pele, e levam junto peixes e pássaros, que passam a ser difíceis de encontrar.

 Rituais

Lá no Fundo, quando a lua está descendo pra lá, boniiiiiita, então os bichos estão dançando lá no Fundo. (...) É lá que nos vamos. (...) Aí nós vamos cantar, aí nos vamos beber, nós vamos dançar com nossos bichos. (depoimento da pajé Elza, aldeia Manga, 1992).
Os Turés são considerados pelas famílias do Curipi como ocasiões de dançar, beber e cantar junto com os seres sobrenaturais chamados de karuãna, e de oferecer-lhes caxiri, como retribuição às curas de doenças que propiciaram por intermédio dos pajés. Os participantes de um Turé correspondem à clientela de um pajé, àquele grupo de famílias que a ele recorre em casos de enfermidade. Assim, os Turés reúnem famílias geralmente aparentadas, que têm em comum a confiança em determinado pajé, e o reconhecimento do conjunto de seres sobrenaturais que são considerados zami (amigos), kamahad (camaradas) ou karuãna deste pajé.

Centrado na figura dos pajés, cada Turé abrange as particularidades de seu próprio universo de karuãna. Acredita-se que os xamãs mais "fortes" conseguem agrupar um maior número de karuãna, os quais lhes ensinam muitas músicas de Turé, e por isso são capazes de cantar várias noites sem repetir nenhuma canção. A força advinda dos karuãna também permite que façam o diagnóstico adequado das doenças e consigam curá-las com êxito, de forma que há muita gente para preparar caxiri (os parentes dos doentes retribuem a cura aos karuãna do pajé oferecendo-lhes caxiri) no Turé de um pajé "forte", e a dança dura muitas noites.

Os Karipuna preferem fazer os Turés em um fim de semana de lua cheia no mês de Outubro, o qual marca o fim da temporada seca e, portanto, antes das primeiras chuvas. Mas várias contingências podem alterar a data ideal, inclusive a tentativa de evitar que vários Turés sejam realizados no mesmo dia. Assim, os pajés fazem as festas também em noites sem lua, iluminadas com lamparinas, até o começo de dezembro, se as chuvas atrasarem tanto. Mesmo aquelas aldeias que têm motor de luz fazem uso das lamparinas durante os Turés, pois os karuãna não gostam de barulho. Há Turés, no entanto, que têm lugar em certas datas festivas, como o Dia do Índio, ou em comemorações nas cidades vizinhas, e que são considerados "demonstrações", mais do que propriamente ocasiões para festejar com os karuãna.

A preparação de um Turé começa com muita antecedência, como também ocorrem com as festas de santos. No final de um Turé, após o discurso do pajé, um grupo de homens se propõe a ajudá-lo no ano seguinte, com o gesto de carregar os mastros do Turé nas costas. São chamados tet dãse (cabeças da dança) e devem auxiliar o pajé em todos preparativos, além de contribuir para animar a festa, tocando as flautas, cantando e puxando as danças.

Os pajés entrevistados afirmam que a longa preparação do Turé se dá através de sonhos, durante os quais viajam para "o Fundo", ou para "outros mundos”, onde participam de Turés com seus karuãna, também chamados "bichos". São estes rituais oníricos que inspiram os pajés a organizarem seus Turés "nesse mundo”: ali aprendem as pinturas dos bancos, dos mastros, sua disposição no pátio da dança, também chamado laku, bem como novas músicas. Estas são também ensinadas por seus karuãna, de modo que cada melodia é considerada particular de cada pajé, sinais de seus contatos com os karuãna, sendo extremamente malvisto o fato de “imitar" músicas alheias.

A partir dos sonhos, portanto, os pajés arrumam o laku, o qual é delimitado por uma cerca de bambus, e o piroro, dentro do qual são dispostos os bancos e os mastros enfeitados. Para a arrumação, convocam os tet dãse, geralmente com um ou dois meses de antecedência, tempo necessário para a confecção dos bancos, mastros e enfeites corporais: coroas de penas, colares, adornos dorsais, maracás.

Ao lado das explicações e práticas dos pajés, os Karipuna fazem uso de recursos católicos, na forma das rezas, das promessas e das ladainhas. As festas de santos são comemoradas em vários pontos do rio Curipi e ao longo de todos o ano e tem na “Festa Grande”, o Divino Espírito Santo, o seu modelo.

Os Turés

Os Turés são considerados pelas famílias do Curipi como ocasiões de dançar, beber e cantar junto com os seres sobrenaturais chamados de karuãna, e de oferecer-lhes caxiri, como retribuição às curas de doenças que propiciaram por intermédio dos pajés. Os participantes de um Turé correspondem à clientela de um pajé, àquele grupo de famílias que a ele recorre em casos de enfermidade. Assim, os Turés reúnem famílias geralmente aparentadas, que têm em comum a confiança em determinado pajé, e o reconhecimento do conjunto de seres sobrenaturais que são considerados zami (amigos), kamahad (camaradas) ou karuãna deste pajé.



Centrado na figura dos pajés, cada Turé abrange as particularidades de seu próprio universo de karuãna. Acredita-se que os xamãs mais "fortes" conseguem agrupar um maior número de karuãna, os quais lhes ensinam muitas músicas de Turé, e por isso são capazes de cantar várias noites sem repetir nenhuma canção. A força advinda dos karuãna também permite que façam o diagnóstico adequado das doenças e consigam curá-las com êxito, de forma que há muita gente para preparar caxiri (os parentes dos doentes retribuem a cura aos karuãna do pajé oferecendo-lhes caxiri) no Turé de um pajé "forte", e a dança dura muitas noites.

Os Karipuna preferem fazer os Turés em um fim de semana de lua cheia no mês de Outubro, o qual marca o fim da temporada seca e, portanto, antes das primeiras chuvas. Mas várias contingências podem alterar a data ideal, inclusive a tentativa de evitar que vários Turés sejam realizados no mesmo dia. Assim, os pajés fazem as festas também em noites sem lua, iluminadas com lamparinas, até o começo de dezembro, se as chuvas atrasarem tanto. Mesmo aquelas aldeias que têm motor de luz fazem uso das lamparinas durante os Turés, pois os karuãna não gostam de barulho. Há Turés, no entanto, que têm lugar em certas datas festivas, como o Dia do Índio, ou em comemorações nas cidades vizinhas, e que são considerados "demonstrações", mais do que propriamente ocasiões para festejar com os karuãna.

A preparação de um Turé começa com muita antecedência, como também ocorrem com as festas de santos. No final de um Turé, após o discurso do pajé, um grupo de homens se propõe a ajudá-lo no ano seguinte, com o gesto de carregar os mastros do Turé nas costas. São chamados tet dãse (cabeças da dança) e devem auxiliar o pajé em todos preparativos, além de contribuir para animar a festa, tocando as flautas, cantando e puxando as danças.

Ritual do Turé na Aldeia do Manga - Aldeias do campo fronteiriço do Oiapoque

Os pajés entrevistados afirmam que a longa preparação do Turé se dá através de sonhos, durante os quais viajam para "o Fundo", ou para "outros mundos”, onde participam de Turés com seus karuãna, também chamados "bichos". São estes rituais oníricos que inspiram os pajés a organizarem seus Turés "nesse mundo”: ali aprendem as pinturas dos bancos, dos mastros, sua disposição no pátio da dança, também chamado laku, bem como novas músicas. Estas são também ensinadas por seus karuãna, de modo que cada melodia é considerada particular de cada pajé, sinais de seus contatos com os karuãna, sendo extremamente malvisto o fato de “imitar" músicas alheias.

A partir dos sonhos, portanto, os pajés arrumam o laku, o qual é delimitado por uma cerca de bambus, e o piroro, dentro do qual são dispostos os bancos e os mastros enfeitados. Para a arrumação, convocam os tet dãse, geralmente com um ou dois meses de antecedência, tempo necessário para a confecção dos bancos, mastros e enfeites corporais: coroas de penas, colares, adornos dorsais, maracás.

Ao lado das explicações e práticas dos pajés, os Karipuna fazem uso de recursos católicos, na forma das rezas, das promessas e das ladainhas. As festas de santos são comemoradas em vários pontos do rio Curipi e ao longo de todos o ano e tem na “Festa Grande”, o Divino Espírito Santo, o seu modelo.

A festa do Divino

A festa do Divino é considerada pelos Karipuna como a sua festa maior, la Ghã fet, como dizem em patois. São duas semanas de festejos que reúnem na aldeia Espírito Santo aqueles que se consideram parte da "comunidade do Curipi". As demais aldeias se esvaziam nessa data, pois quase todas as famílias residentes no Curipi encontram-se festejando na aldeia Espírito Santo. Também aqueles que se consideram Karipuna mas residem fora do Curipi, seja em outras aldeias do Uaçá ou do Oiapoque, seja nas cidades vizinhas de Oiapoque e Saint Georges, não deixam de se diri­gir para o Curipi nessa ocasião. E também os que se encontram em cidades mais distantes, como Caiena, Macapá ou Belém do Pará, retornam de tempos em tempos para festejar e pagar alguma promessa ao Divino. É na Festa Grande, portanto, que se pode visualizar de forma alegre e dinâmica aquilo que é difícil de se encontrar em outros momentos da vida do grupo, pois é na festa que "a sociedade" Karipuna toma corpo.

A Festa Grande segue o calendário católico. Em uma quinta-feira de maio comemora-se a ascensão de Jesus Cristo aos céus, quando o mastro do Divino é levantado. Dez dias depois é comemorado o dia de Pentecostes, a descida do Espírito Santo, ocasião em que o mastro é derrubado. É nesta segunda ocasião que os festejos são mais importantes e animados. Entre os dois dias há uma série de atividades preparatórias e de encerramento, de forma que os festejos do Divino começam muito antes da quinta-feira da Ascensão e terminam depois do Domingo de Pentecostes. Entre as duas datas, há um curto período de cinco ou seis dias em que as famílias retornam para suas aldeias e retomam seus trabalhos rotineiros.

O sábado anterior à Ascensão é o dia de Maiuhi Xapel ou “Convidado da Capela”. Assim que amanhece, os rojões anunciam o começo dos dias festivos. Por volta das oito horas tocam o sino da capela e a Casa da Festa começa a ficar cheia. Algumas mulheres se revezam na cozinha, preparando a refeição ou coando o caxiri. Os homens também trabalham na limpeza de peixes e da caça mais fresca. Os festeiros preocupam-se em servir bebida a todos. Aos poucos, homens e mulheres começam o serviço de limpeza do terreno onde receberão os participantes.

Na quarta-feira uma equipe de foliões sai da aldeia em busca de um tronco para fazer o mastro do Divino e à noite acontece o primeiro baile, o qual é interrompido à meia-noite para a primeira Ladainha. Todos vão à capela e, depois da oração, fazem fila para beijar as fitas do Espírito Santo no altar e os demais santos. Depois todos retornam ao baile, que continua madrugada adentro.

Na quinta-feira, dia da Ascensão, o mastro é levantado e se tem mais um dia de farta comida, bebida, cantos e danças. Passados nove dias da Ascensão, no sábado véspera de Pentecostes, os festeiros fazem novamente a “alvorada” com rojões. E novamente a vila do Espírito Santo começa a ficar cheia e animada, com rojões anunciando a chegada dos barcos de outras aldeias.

A véspera do Pentecostes é o dia da procissão da Meia-Lua, na qual vários barcos e canoas dirigem-se até a pequena ilha do cemitério. A procissão desce a rampa da aldeia com crianças à frente, seguidas das mulheres, todas com velas acesas; logo atrás vêm os homens, alguns carregando as bandeiras, outros o andor do Divino, bastante enfeitado com fitas e flores. Por último, o conjunto musical dos foliões – cavaquinho, violões, viola e violino – toca diversas músicas religiosas para “acompanhar o santo” durante o trajeto. Num barco com cobertura entram o andor do Divino, as bandeiras, o conjunto musical e as “promesseiras”. O barco do santo é acompanhado por diversas canoas e voadeiras que se encostam umas às outras, oferecendo bebida durante o trajeto. Quando chegam em frente ao cemitério Karipuna, o conjunto para de tocar e os instrumentos de corda dão lugar às batidas do tambor que acompanha o canto do cemitério. Os barcos fazem duas voltas em frente a cemitério e retornam para a aldeia, em frente da qual fazem mais duas voltas. Ali é entoado o Canto da Chegada da Meia-Lua.

Uma última canção, o Canto da Entrada da Meia-Lua, é entoada dentro da capela, para onde todos se dirigem em procissão, acompanhando o Divino. Depois da oração, tudo se passa como na véspera da Ascensão: os cantos das seis horas da tarde, ladainha à meia-noite, muita comida, bebida, a entrega do salão aos festeiros e o baile animado pela madrugada afora.

No dia seguinte, quando é propriamente comemorado o dia da descida do Espírito Santo, também fazem o canto da Alvorada e os cantos das seis da manhã. Antes da hora do almoço, preparam a Mesa dos Inocentes, uma refeição servida solenemente para as crianças, que se dirigem ao local em procissão.

No final da tarde começa a cerimônia para a derrubada do mastro. Como na festa anterior, as crianças são chamadas pelo sino para subir à capela e sair numa pequena procissão até o mastro. Um rapaz sobe no mastro e retira a bandeira do Divino. Em seguida, usando um machado enfeitado com fitas coloridas, cada festeiro dá um golpe para derrubá-lo.

Somente no começo da noite a música na Casa da Festa é interrompida e o cacique da aldeia toma a palavra para perguntar quem se dispõe a ser festeiro no ano seguinte. É assim que a festa vai chegando no fim, com a promessa de recomeçar no ano seguinte.

Outras leituras
Para uma descrição detalhada e análise dos Turés e da Festa do Divino entre os Karipuna, ver o livro de Antonella Tassinari, No bom da festa: o processo de construção cultural das famílias Karipuna do Amapá. SP: Edusp, 2003.

 Atividades produtivas

A pesca é abundante nos rios da bacia do Uaçá, principalmente na época da seca. Encontram-se trairões, piramutabas, jejus, piranhas, aruanãs, acarás, tucunarés e pirarucus e, no baixo Curipi e Uaçá, assim como no baixo Oiapoque, peixes de água salgada. Algumas espécies do mar são buscadas no oceano, como os apreciadíssimos caranguejos. A pesca de jacarés e tracajás é constante em toda a extensão desses rios.

A vegetação varia ao longo dos rios, de acordo com a presença de várzeas ou terras firmes. Nos baixos cursos há uma vegetação pantanosa, formada por mangues e florestas de várzea. Mais acima, surgem as grandes extensões de campos alagados, entremeados por pequenas elevações cobertas por floresta de terra firme, os tesos, onde são construídas as aldeias ou abertas as roças. Essa paisagem é ali conhecida por “savana”, e povoada por garças, jaburus, maguaris, marrecos, patos selvagens e socós. Os tesos maiores também são percorridos em busca de caça: veados, antas, pacas, cotias, guaribas, macacos, caititus, quatis. Mais ao sul, próximo às cabeceiras dos rios, e até o médio Curipi, os campos pantanosos dão lugar a uma vegetação de terra firme, compondo florestas muito usadas para a caça ou extração de madeira (destinada principalmente à construção de remos e canoas). É nessa região de terra firme que foi construída na década de 1970 a rodovia BR-156, que liga a cidade de Oiapoque à Macapá.

No período de estiagem as famílias trabalham na abertura das novas roças. Os homens fazem seus mutirões de roçado e derrubada de agosto a setembro e esperam o sol mais forte para proceder à coivara do terreno. Nessa ocasião, entram no cardápio a carne e os ovos de camaleoas encontradas na mata queimada. Até outubro e novembro, quando caem as primeiras chuvas, as roças já estão prontas para o plantio, realizado em grandes e animados mutirões.

Sobre as relações comerciais dos Karipunas no contexto do baixo Oiapoque, ver item Aspectos contemporâneos]

 Fontes de informação

ARNAUD, Expedito. Os índios da região do Uaçá (Oiapoque) e a proteção oficial brasileira. In: --------. O índio e a expansão nacional. Belém : Cejup, 1989. p. 87-128. Publicado originalmente no Boletim do MPEG, Antropologia, Belém, n.s., n. 40, jul. 1969.


ASSIS, Eneida Corrêa. Escola indígena, uma “frente ideológica”? Brasília : UnB, 1981. (Dissertação de Mestrado)


--------. As questões ambientais na fronteira Oiapoque/Guiana Francesa : os Galibi, Karipuna e Paliku. In: SANTOS, Antônio Carlos Magalhães Lourenço (Org.). Sociedades indígenas e transformações ambientais. Belém : UFPA-Numa, 1993. p. 47-60. (Universidade e Meio Ambiente, 6)


CASTRO, Esther de; VIDAL, Lux B. O Museu dos Povos Indígenas do Oiapoque : um lugar de produção, conservação e divulgação da cultura. In: SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs.). Práticas pedagógicas na escola indígena. São Paulo : Global, 2001. p. 269-86. (Antropologia e Educação)


DIAS, Laercio Fidelis. Curso de formação, treinamento e oficina para monitores e professores indígenas da reserva do Uaçá. In: SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs.). Práticas pedagógicas na escola indígena. São Paulo : Global, 2001. p.359-78. (Antropologia e Educação)


--------. Uma etnografia dos procedimentos terapêuticos e dos cuidados com a saúde das famílias Karipuna. São Paulo : USP, 2000. 263 p. (Dissertação de Mestrado)


--------. As práticas e os cuidados relativos a saúde entre os Karipuna do Uaça. Cadernos de Campo, São Paulo : USP, v. 10, n. 9, p. 59-72, 2000.


MUSOLINO, Álvaro Augusto Neves. A estrela do Norte : Reserva Indígena do Uaçá. Campinas : Unicamp, 1999. 242 p. (Dissertação de Mestrado)


TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. No bom da festa. O processo de construção cultural das famílias Kripuna do Amapá. São Paulo : Edusp, 2002.


-------. Contribuição à historia e à etnografia do Baixo Oiapoque : a composição das famílias Karipuna e a estruturação das redes de trocas. São Paulo : USP, 1998. 366 p. (Tese de Doutorado)


--------. Da civilização à tradição : os projetos de escola entre os índios do Uaçá. In: SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs.). Antropologia, história e educação : a questão indígena e a escola. São Paulo : Global, 2001. p.157-95.


--------. O processo de construção cultural das famílias Karipuna no Amapá. São Paulo : Edusp, 2003.


--------. Xamanismo e catolicismo entre as famílias Karipuna do Rio Curipi. In: WRIGHT, Robin (Org.). Transformando os Deuses : os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas : Unicamp, 1999. p. 447-78.


TOBLER, S. Joy. The grammar of Karipúna creole. Brasília : SIL, 1983. 156 p.


VIDAL, Lux B. O modelo e a marca, ou o estilo dos “misturados” : cosmologia, história e estética entre os povos indígenas do Uaçá. In: SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs.). Antropologia, história e educação : a questão indígena e a escola. São Paulo : Global, 2001. p.196-208.


--------. O modelo e a marca, ou o estilo “misturador” : cosmologia, história e estética entre os povos indígenas do Uaçá. Rev. de Antropologia, São Paulo : USP, v. 42, n. ½, p. 29-45, n.esp., 1999.


--------; SILVEIRA, Luís Fábio; LIMA, Renato Gaban. A pesquisa sobre a avifauna da bacia do Uaçá : uma abordagem interdisciplinar. In: SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Orgs.). Práticas pedagógicas na escola indígena. São Paulo : Global, 2001. p.287-58. (Antropologia e Educação)



Krenak

Toy Art Krenak

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
118KrenakCrenaque, Crenac, Krenac, Botocudos, Aimorés, KrénKrenák
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
MT, MG, SP350Funasa 2010



Os Krenak são os últimos Botocudos do Leste, vítimas de constantes massacres decretados como "guerras justas" pelo governo colonial. Hoje, vivem numa área reduzida reconquistada com grandes dificuldades.

 Nome e língua

Os Krenák ou Borun constituem-se nos últimos Botocudos do Leste, nome atribuído pelos portugueses no final do século XVIII aos grupos que usavam botoques auriculares e labiais. São conhecidos também por Aimorés, nominação dada pelos Tupí, e por Grén ou Krén, sua auto-denominação. O nome Krenák é o do líder do grupo que comandou a cisão dos Gutkrák do rio Pancas, no Espírito Santo, no início do século XX. Localizaram-se, naquele momento, na margem esquerda do rio Doce, em Minas Gerais, entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena, onde estão até hoje, numa reserva de quatro mil hectares criada pelo SPI, que ali concentrou, no fim da década de 20, outros grupos Botocudos do rio Doce: os Pojixá, Nakre-ehé, Miñajirum, Jiporók e Gutkrák, sendo este o grupo do qual os Krenák haviam se separado.

Os Krenák pertencem ao grupo lingüístico Macro-Jê, falando uma língua denominada Borun. Apenas as mulheres com mais de quarenta anos são bilíngües, enquanto os homens, jovens e crianças de ambos os sexos são falantes do português. Nos últimos três anos vêm envidando esforços para que as crianças voltem a falar o Borun.

 Religião

Eram, à época do contacto, em 1910, predominantemente caçadores e coletores seminômades, com organização social caracterizada pelo constante fracionamento do grupo, pela divisão do trabalho por sexo e idade e um sistema religioso centrado na figura dos Marét e dos espíritos encantados de seus mortos, os Nanitiong, responsáveis pela fecundação das mulheres humanas e por emitir avisos de morte. Os Marét, habitantes das esferas superiores, eram os grandes ordenadores dos fenômenos da natureza e, dentre eles, se destacava o Marét-khamaknian, herói criador dos homens e do mundo, benevolente e civilizador da humanidade.

Outras entidades do panteão religioso dos Botocudos eram os espíritos da natureza - os tokón -, responsáveis pela eleição dos seus intermediários na terra, os xamãs, com os quais mantinham contacto durante os rituais e que, quase sempre, acumulavam o cargo de líderes políticos. Havia, ainda, as almas, espíritos que viviam nos corpos dos humanos, adquiridos a partir dos quatro anos de idade, quando eram implantados os primeiros botoques labiais e auriculares. A alma principal abandonava o corpo durante o sono e, quando se perdia, ocorria a doença. Antes de a pessoa morrer, sua alma principal morria dentro de seu corpo. As outras seis almas que habitavam o corpo acompanhavam o cadáver até seu túmulo, sobre o qual voavam, chorando. Eram invisíveis para os membros da comunidade presentes à cerimônia. Caso suas necessidades de alimento e luz não fossem atendidas, essas almas complementares poderiam transformar-se em onças e ameaçar a aldeia, pois, não se alimentando, morreriam de fome. Passados alguns anos, espíritos bondosos da esfera superior vinham buscá-las para seu espaço, de onde não mais voltavam. Dos ossos dos cadáveres, surgiam espíritos que passavam a morar no mundo subterrâneo, no qual o sol brilhava durante a noite terrestre. Eram espíritos grandes, maus e negros que vagavam pela aldeia atacando os vivos, principalmente as mulheres, desenterravam os mortos, batiam no chão, assustando a todos, matando animais por espancamento. As vítimas se defendiam tentando surrá-los e evitando saírem de seus abrigos durante a noite.

 Histórico do contato

Indias da etnia Krenak dançando na 2ª Festa do Índio-Krenak e a 1ª Olimpiadas Indigenas de Resplendor
O território original dos Botocudos era a Mata Atlântica no Baixo Recôncavo Baiano, tendo sido expulsos do litoral pelos Tupi, quando passaram a ocupar a faixa de floresta paralela, conhecida por Floresta Latifoliada Tropical Úmida da Encosta ou Mata Pluvial Tropical, localizada entre a Mata Atlântica e o rebordo do Planalto. Depois do século XIX deslocaram-se para o sul, atingindo o rio Doce em Minas Gerais e Espírito Santo.

Desde os primeiros contactos, ainda no século XVI, foram acusados de antropofagia, o que não se confirma na documentação. Entretanto, este sempre foi o grande argumento para justificar as constantes decretações de Guerra Justa e convencer os grupos indígenas com que viviam em conflito - Tupi, Malalí, Makoní, Pataxó, Maxakalí, Pañâme, Kopoxó e Kamakã-Mongoió - a se aldearem com promessas de proteção e acesso aos bens da sociedade dominante, como armas de fogo. Apesar da resistência tenaz, os grupos Botocudos foram aldeados por militares, diretores leigos e missionários em vários pontos dos atuais estados da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo a partir da decretação da Guerra Justa autorizada pelo governo português através das Cartas Régias de 13 de maio, 24 de agosto e 2 de dezembro de 1808 assinadas no Rio de Janeiro pelo Príncipe Regente D. João.

A primeira Carta Régia determinava a guerra ofensiva aos Botocudos de Minas Gerais por considerar que os mesmos eram irredutíveis à civilização e que a guerra de caráter defensivo não surtia os efeitos desejados no tocante a garantir a expansão da conquista naquela capitania. A segunda autorizava o Governador e Capitão General da mesma capitania a criar uma tropa especializada no combate a índios para viabilizar a guerra ofensiva determinada na Carta Régia anterior. Finalmente, a terceira estabelecia planos acerca de como promover a educação religiosa dos índios e seu efetivo controle como forma de viabilizar a navegação dos rios e o cultivos dos terrenos ocupados pelos Botocudos. No contexto desse plano, o Príncipe autorizava o confisco das terras ocupadas por esses grupos, que passavam a ser consideradas como devolutas e deveriam ser distribuídas como sesmarias, particularmente entre os que se destacassem na guerra ofensiva. A esses novos proprietários também era garantido o livre acesso ao trabalho dos indígenas que fossem capturados em atitude aguerrida por um período que variava entre doze e vinte anos, a depender do grau de rusticidade e dificuldade dos aprisionados em apreenderem as novas formas de trabalho. Também era prevista a criação de aldeamentos administrados por particulares para educar os índios que se submetessem e se apresentassem "com interesse e boa disposição".

Embora as três Cartas Régias se referissem especificamente à capitania de Minas Gerais, as suas deliberações foram estendidas às capitanias da Bahia e Espírito Santo no mesmo ano para atender às solicitações de seus governadores. Hoje o contingente demográfico dos Botocudos do Leste está reduzido a cento e oitenta pessoas, sendo, na sua maioria, composto de crianças e jovens descendentes de relações interétnicas entre os Krenák com outros grupos indígenas, como os Guarani e os Kaingang, e com a população regional.
 Le Brésil de PierreEmile Levasseur 1899 Arquivo Nacional. Biblioteca Maria Beatriz do Nascimento - nessa ilustração podemos ver os antigos Botokudos

As principais razões dessa predominância de mestiços foram a invasão por moradores da região e o arrendamento pelo SPI das terras do Posto Indígena Krenák, o processo de diáspora sofrida ao longo da administração do SPI e da Funai - em 1953 para o Posto Indígena Maxakalí, de onde retornaram a pé em 1959, e em 1973 para a Fazenda Guarani -, e a convivência com os chamados "índios infratores" deslocados pela Funai de vários pontos do país, a partir de 1968, para o Reformatório Agrícola Indígena ou Centro de Reeducação Indígena Krenák.

 Centro de Reeducação Indígena Krenak

O Reformatório foi implantando sob a administração do Capitão Manoel Pinheiro, da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, e para lá eram enviados os indígenas que opunham resistência aos ditames dos administradores de suas aldeias ou eram considerados como desajustados socialmente. No Presídio eram mantidos em regime de cárcere, sofrendo repressões, como o confinamento em solitária e castigos físicos em casos de insubordinação. Eram-lhes impostas atividades na agricultura durante o dia, sob forte vigilância de soldados da Polícia Militar de Minas Gerais e dos índios agregados à Guarda Rural Indígena (GRIN), também fundada pelo Capitão Pinheiro.

A Guarda era composta por índios que Pinheiro definia como de "excepcional comportamento", devidamente treinados e fardados, e encarregados de manter a ordem interna nas aldeias, coibir os deslocamentos não autorizados, impor trabalhos e denunciar os infratores ao Destacamento da Polícia Militar.

Ante a pressão dos fazendeiros e políticos para a extinção definitiva do PI Krenák e a liberação definitiva da área para a emissão dos títulos de propriedade aos arrendatários, apesar dos Krenák haverem ganho em 21/03/1971 a ação de reintegração de posse dos 4.000 hectares e o juiz ter determinado o prazo de quinze dias para os arrendatários serem retirados da área indígena, Manuel Pinheiro fez um novo acordo com o governo de Minas Gerais em dezembro daquele mesmo ano. Negociou uma permuta entre a área Krenák e a Fazenda Guarani, no município de Carmésia, pertencente à Polícia Militar de Minas Gerais, para onde os Krenák e os prisioneiros indígenas foram transferidos, ao invés da retirada dos arrendatários como a Justiça determinara. É interessante observar que também a Fazenda Guarani, antiga sede de tortura de presos políticos usada pela Polícia Militar de Minas Gerais, estava ocupada por grande quantidade de rendeiros e posseiros.

Apesar de o acordo ter estabelecido que a Funai só deveria receber a Fazenda Guarani livre dos ocupantes, Pinheiro sequer esperou essa cláusula ser cumprida, merecendo, por isso, até mesmo uma repreensão por escrito da Presidência do órgão.

Diante da resistência dos Krenák em serem, mais uma vez, transferidos, Pinheiro determinou que os índios que persistiam na recusa a abandonar a área fossem algemados e levados à força para Governador Valadares, sede da Ajudância Minas-Bahia, da Funai. Dali, todos os Krenák, os presos do Reformatório e um grupo de índios Guarani, que ali haviam se instalado em 1969 vindos de Parati, no Rio de Janeiro, seus poucos pertences e os alimentos foram colocados em caminhões e enviados para a Fazenda Guarani. Os índios também não aceitaram nela permanecer e sua reação aumentou após a chegada de um grupo de índios Pataxó do Posto Indígena Barra Velha, na Bahia, que permanecem até os dias atuais na Fazenda Guarani.

Queixando-se das péssimas condições de vida, de não haver rio de grande porte que lhes permitisse pescar - a mais valorizada forma de obter alimento -, do clima muito frio, de perderem o que plantavam por estar o solo esgotado, da convivência forçada com os Pataxó, com os Guarani e com os presos do Reformatório, além da falta de argila para fazerem cerâmica, algumas famílias Krenák optaram por se dirigir para o Posto Indígena Vanuíre (SP), para a cidade de Colatina (ES) e para Conselheiro Pena (MG).

 Retorno à terra

Em 1980 os demais optaram por retornar à área do PI Krenák. Contudo, o retorno desejado não era tão fácil. Toda a área indígena estava em mãos dos antigos arrendatários, inclusive a antiga sede administrativa do Posto Indígena, que a RURALMINAS, órgão estadual responsável pelaadministração das questões de terras em Minas Gerais, repassara ao Patronato São Vicente de Paula da cidade de Resplendor, que ali instalou um orfanato. Para completar o quadro de dificuldades, o estado de Minas Gerais havia distribuído títulos de propriedade aos arrendatários, alterando seu status e seus direitos e fortalecendo sua luta pelo afastamento definitivo dos índios.
Território Krenak

Enfrentando todo esse quadro adverso, 26 dos 49 Krenák que haviam sido levados para a Fazenda Guarani retornaram, em 1980, às terras do rio Doce, instalando-se por conta própria, em pequena parcela da área, nas ruínas da antiga sede abandonada pelo Patronato São Vicente de Paula e no antigo Reformatório, perfazendo um total de 68,25 hectares.

Permaneceram nessa área exígua até 1997, quando, após longo período de citação judicial dos ocupantes da área, os quatro mil hectares lhes foram restituídos por decisão judicial do Supremo Tribunal Federal relativo ao processo de número 891782-0 de outubro de 1989 que solicitava a anulação dos títulos de propriedade emitidos ilegalmente pelo governo mineiro. A partir dessa data foi reconstituída a área originalmente doada pelo governo mineiro, através do Decreto 4462 de 10/12/1920, após um demorado processo de demarcação iniciado em 1918 e concluído em 1920.

 Chefia e faccionalismo

Antes da retomada da totalidade da área reservada, ao se chegar à aldeia dos Krenák, podia-se observar o grupo liderado por Laurita Félix à esquerda, uma faixa intermediária de terras não ocupadas e a outra facção política liderada pelo cacique Hin (José Alfredo de Oliveira, também conhecido por Nego, que é tradução do seu apelido em Borun) à direita do ribeirão do Eme.

Hoje, o grupo de Laurita instalou-se nas fazendas localizadas na área de influência do rio Doce, enquanto o grupo de Hin passou a ocupar as que se localizam "atrás ou no fundo" da Reserva, após a grande serra do Cuparaque, que divide a área no sentido Leste-Oeste. O fato de um dos grupos ser liderado por uma mulher - Laurita Félix - é perfeitamente coerente com a tradição Botocudo, no que se refere ao fato de as mulheres deterem o poder de decisão sobre grandes questões internas.

Em termos de representatividade externa, porém, é o cacique que tem voz ativa. Coerentemente com os antigos padrões de ordenamento político, Laurita está preparando seu filho, Rondon Krenák, para assumir as funções de cacique, através do qual, ela poderá exercer de forma mais efetiva o poder sobre o grupo.

A oposição entre as duas metades sociais organizadas em facções políticas é amenizada pelas regras exogâmicas de casamento entre as famílias extensas - Isidoro, Félix, Damasceno e Souza -, pois, ao estabelecer alianças matrimoniais, o grupo consegue amenizar os conflitos e, assim, define-se um convívio relativamente amistoso entre as famílias e os dois grupos. A prole resultante dessas uniões recebe o sobrenome do pai e é identificada como membro da metade à qual este pertence. A exceção ocorre em situações de casamentos interétnicos nos quais a mãe seja Krenák, quando, apesar do sobrenome ser o paterno, a pertinência é definida pela metade à qual a mãe pertence.

No caso dos Krenák, um dos fatores de oposição decorre, também, do fato de o grupo liderado por Laurita Félix ser Nakre-ehé e Miñajirum, oriundos do aldeamento do Pancas, o que fez com que nunca se integrassem totalmente aos Krenák, originalmente estabelecidos no ribeirão do Eme, representados pelo cacique Hin. Nessa posição de disputa pela liderança, Laurita busca seus fundamentos argumentando o poder tradicional das mulheres e o fato de as mesmas deterem o conhecimento histórico da trajetória do grupo, da língua e dos rituais.

Além de Laurita, há outras figuras femininas representativas: sua filha, Marilza, a xamã dos Krenák, Sônia e Paula, aliadas da família Félix, todas envolvidas nos esforços de reviver a língua Borun, os cantos, os rituais e a tradição de socializar as crianças pelos métodos tradicionais. Nesse processo revivalista, o papel de Marilza Félix é extremamente importante. Na qualidade de única xamã e dizendo-se porta voz do seu antecessor Krembá, afirma ser deste a determinação de serem realizados os trabalhos de reorganizar o grupo, voltar a "dançar" seus rituais, fazer arcos e flechas, curar suas doenças pela forma tradicional, falar sua antiga língua e recuperar o mastro sagrado, levado da aldeia na década de 30 por Curt Nimuendajú. Apesar dos esforços dos índios e de consultas realizadas, não foi possível até o momento localizar o referido mastro.

Nesse novo contexto, observa-se, portanto, que os Marét perderam importância no novo panteão Botocudo, embora o medo aos Nanitiong e aos espíritos dos mortos, que não receberam alimentos e cuidados rituais, continue presente. Atualmente, os Tokón assumiram o papel central do universo religioso Krenák, estando profundamente associados à disputa política entre as duas metades.

O grande desafio vivido, hoje, pelos Krenák é o de se ajustarem ao novo/antigo espaço de quatro mil hectares, viabilizarem sua exploração econômica, apesar da baixa densidade demográfica e da falta de recursos para investirem de modo a terem acesso ao mercado regional. Aliás, essa pretensão encontra outra grande barreira na oposição, preconceito e má vontade dos moradores das cidades vizinhas, cujas autoridades consideram como um grave prejuízo para a comunidade de produtores rurais, cooperativas e prefeituras locais as terras terem retornado ao domínio dos índios.

 Nota sobre as fontes
As primeiras referências aos Botocudos datam ainda do século XVI quando eram referidos por cronistas e jesuítas pela denominação de Aimorés. Como Botocudos há farta documentação de caráter administrativo e elaborada por viajante naturalistas a partir do início do século XIX.

Como Krenák, as primeiras notícias datam do início do século XX e estão associadas à construção da Estrada de Ferro ligando Vitória, no Espírito Santo, à atual cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais. Essas notícias foram produzidas tanto pelos construtores da Estrada de Ferro, destacando-se a obra de Ceciliano Abel de Almeida, como pelos funcionários do SPI encarregados de aldear os Krenák, merecendo destaque os relatórios de Antônio Estigarribia, e do governo mineiro designados para realizar os estudos necessários à demarcação da área destinada à criação do aldeamento.

Só a partir da década de 20 é que alguns estudiosos que se dedicam a descrever a sociedade Krenák, destacando-se os trabalhos dos mineiros Nelson de Senna e Simoens da Silva. A partir de então, alguns geógrafos como Walter Egler e William Steains, preocupados com o processo de ocupação do rio Doce, passaram a se referir aos Krenák.

Também lingüistas, como Charlotte Emmerich, Ruth Monserrat e Lucy Seki realizaram estudos acerca da língua Borun.

Há, ainda, trabalhos realizados por estudantes da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade Federal da Bahia e as pesquisas de Maria Hilda Baqueiro Paraiso, inclusive um dos temas tratados em sua tese de doutorado e que se encontra em fase de negociação para publicação.

Está sendo realizado o vídeo Erré Krenak, cujo público alvo são crianças em idade escolar que, assim, poderão ter acesso à história do povo Krenák como tentativa de eliminar o preconceito e a discriminação. Produção Independente, dirigido por Nívea Dias e Alessandro Carvalho, com roteiro de Rita Espeschit e direção de arte de Cristiane Zago. Realização do Conselho Indigenista Missionário Leste e Centro de Documentação Elói Ferreira da Silva com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais. O vídeo terá a duração de 20 minutos e deverá ser lançado no início de 1999.

 Fontes de informação
ALMEIDA, Ceciliano A. de. O desbravamento das selvas do rio Doce : memórias. Rio de Janeiro : José Olímpio Ed., 1978.


ALMEIDA, Maria Inês de (Coord.). Conne Pãnda - Ríthioc Krenak : coisa tudo na língua krenak. Belo Horizonte : SEE-MG ; Brasília : MEC/Unesco, 1997. 68 p.


ALVIM, Marília C. de M. Diversidade morfológica entre os índios botocudos e o “Homem da Lagoa Santa”. Rio de Janeiro : Univer. Estadual da Guanabara, 1963. (Tese de Livre Docência em Antropologia Física)


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domingo, 10 de abril de 2016

Tabajara

Toy Art Tabajara

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
182Tabajara


UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
CE2982Funasa 2010

A classificação Tabajara acabe sendo genérica e gera muita confusão, segundo Fausto, (1992, p. 384, 385 e 391) o termo Tobajara, era uma categoria classificatória dos povos tupi que servia para denominar aqueles grupos com os quais podiam estabelecer relações de reciprocidade ou de guerra alternadamente, advindo daí a sua dupla tradução como cunhado e inimigo.

População e localização atual

De acordo com o Distrito Sanitátio Especial Indígena do Ceará (órgão da Fundação Nacional de Saúde), os Tabajara no Ceará compõem uma população de 2982 pessoas, assim distribuídas:

Crateús                        889 pessoas
Poranga                     1175 pessoas
Monsenhor Tabosa      443 pessoas
Tamboril                      113 pessoas
Quiterianópolis           362 pessoas
Território Tabajara

Tentamos, neste ponto, desnaturalizar as ideias a respeito de uma suposta unidade e diferenciação indígena em grupos bem delimitados e segmentados, que estaria representada em seus etnônimos. Pois, “Longe de ser uma profunda expressão da unidade de um grupo, um etnônimo resulta (geralmente) de um acidente histórico, que frequentemente é conceitualizado como um ato falho, associado a um jogo de palavras e com efeito de chiste” (Oliveira, 1999, p. 172. Parênteses nossos). Ainda mais nos casos dos encontros e desencontros coloniais, nos quais os jogos de interesses e as guerras provocavam constantes mudanças sociais, com grupos se fragmentando, se reunindo e mudando de lado . Por isso, nesta análise histórica optamos por tratar do etnônimo tabajara e não da etnia Tabajara, evitando reificar eventos e menções que talvez tenham existido apenas no momento da escrita colonial e que não correspondiam às divisões correntes entre os indígenas.

De acordo com Silva (2003) os termos Potiguara, Tabajaras e Caetés, que aparecem nas crônicas coloniais de Pernambuco têm mais a ver com posições assumidas pelos grupos indígenas na relação com os colonos portugueses do que com divisões estanques entre os grupos, podendo estes mudar de nome de acordo com as mudanças nas alianças políticas

Com um histórico de alianças com os portugueses, os Tabajara são “leais”, “valentes”, “fortes”, com ações de tanto valor, destreza, ousadia e esforço. A conversão para a fé católica também é apresentada como um ingrediente a mais no diferencial em relação aos outros grupos, e por fim, a referência aos “capitães heróis”, desde o tempo de Duarte Coelho, completa a construção da figura mítica para o grupo.(2003, p. 35).

Esta variedade de denominações é comum na literatura histórica e antropológica, onde a depender das fontes, os grupos aparecem grafados de diversas maneiras e até com dois ou três nomes diferentes. Assim, muitos autores utilizarão o termo Tupinambá para designar o conjunto de povos de língua tupi (esta também chamada de tupinambá antigo, cf. Rodrigues, 1986) que vivia no litoral entre Cananeia/SP e o Ceará, tendo daí migrado para a Serra da Ibiapaba, o Maranhão, o Pará e a ilha Tupinambarana, no rio Amazonas.

Ao descrever as migrações dos Tupinambá, Caeté e Potiguar do litoral de Pernambuco e da Bahia para o Maranhão, Fernandes (1989), argumenta que ao fugirem dos portugueses que ocupavam estas regiões, estes grupos se aliaram e no trajeto percorrido a partir de 1570-72, ocuparam diversas áreas do interior e litoral

“A composição dessas migrações é perceptível na distribuição dos emigrantes nas terras do Maranhão e do Pará, conquistadas aos Tapuias, seus antigos senhores. Os Tupinambá abandonaram a zona do Ibiapaba, e localizaram-se na Ilha do Maranhão. Os Potiguar continuaram a viver ali. Em virtude do rompimento dos laços de solidariedade, os dois grupos tribais tornaram-se inimigos designando-se reciprocamente como Tabajara.” (1989, p. 43, grifos nossos)

Em virtude disso, os grupos que se fixaram na serra da Ibiapaba ficaram conhecidos nos registros históricos como Tabajara. Nesta região, viviam ainda inúmeros grupos tapuias, tais como Tacarijú, Quitaiaiú, Ocongá, Caratiú, Reriiú (Areriú), Acriú, Anacé, Aconguassu (Acoanssu), que eram de certa forma subordinados aos Tabajaras. Ainda no século XVII, após as invasões holandesas, centenas de índios Potiguara da Paraíba e Pernambuco, convertidos ao calvinismo, buscaram refúgio na Ibiapaba, até então, uma área livre do controle português.

No século XVIII quando os padres jesuítas conseguem finalmente instalar uma missão na serra da Ibiapaba esta vai ser composta por uma variedade de etnias indígenas, muitas vezes citadas na documentação como Tabajara (Cf. Barros, 2001). Essa população aldeada vai sendo incorporada ao projeto colonial paulatinamente, destacando-se a sua utilização como mão-de-obra agrícola e fornecimento de tropas para combater índios rebeldes e invasões estrangeiras. A associação entre o etnônimo Tabajara e as populações nativas da serra da Ibiapaba vai se costurando nesse processo, de modo que, nos séculos seguintes serão tratados em muitos textos quase como sinônimos. Com a elevação das aldeias missionárias à categoria de vilas de índios a partir de 1759, registra-se na capitania do Ceará uma grande dispersão dos índios aldeados, em virtude das novas condições de trabalho, ditadas pelos diretores civis que substituíam os padres (Porto Alegre, 1992, p. 203-208). Na Ibiapaba, as aldeias missionárias constituirão as vilas de Viçosa, São Benedito e Ibiapina, que serão registradas como lugares habitados por índios até o século seguinte (Porto Alegre, 1992; 2004).

A dispersão da população aldeada tenderá a se acentuar ao longo do século XIX, com os inúmeros conflitos sociais do primeiro império, quando registra-se a deserção de 60 casais da Vila Viçosa para participar da Balaiada no Maranhão. Durante o segundo império, as aplicações da lei de terras e a extinção dos antigos aldeamentos irão provocar a invisibilização completa da população indígena na província do Ceará. É neste momento que são referidas as últimas notícias com relação ao etnônimo Tabajara e/ou aos índios da serra da Ibiapaba, precisamente em notícias de viajantes e expedições científicas (cf. Porto Alegre, 2003).

São esses processos que irão acelerar a dispersão da população indígena em pequenos grupos familiares em busca de alternativas de sobrevivência em terras devolutas ou sob a proteção de algum proprietário. Essa busca se dará especialmente nas zonas fronteiriças e ainda não ocupadas, como a região sul da Ibiapaba (Crateús), trocada no final do século XIX, pelo Piauí em favor de uma saída para mar, representada pelo porto de Parnaíba, até então pertencente ao Ceará.

Os tabajaras hoje

Os Tabajaras possuem uma história de sucessivas migrações, devido a constantes conflitos de terras. Os Tabajaras que vivem em Crateús são provenientes das serras vizinhas, principalmente a serra da Ibiapaba, e tiveram que migrar para a periferia da cidade, foragidos da opressão exercida pelos fazendeiros que invadiram suas terras. Dividem-se em sete comunidades. Recentemente, um grupo de 15 (quinze) famílias dos Lira, migrou para a cidade de Quiterianópolis, onde encontraram melhores condições para viver, de acordo com seus costumes indígenas. Ficaram conhecidos como os Tabajaras de Fidélis. Nesta mesma cidade encontram-se mais 3 (três) comunidades Tabajaras: Vila Nova, Croatá e Vila Alegre, todas na área rural.

Em fevereiro de 2004, os Tabajaras de Crateús conseguiram, através de sua luta, retomar cerca de 6.000 hectares de suas terras que ficam na serra da Ibiapaba. O local é chamado de Nazário e lá estão residindo cerca de 10 famílias, entre Tabajara e Kalabaça, enquanto aguardam a delimitação e demarcação da terra.

Em Monsenhor Tabosa se encontra a comunidade Tabajara de Olho d`água de Canutos, há 4 km desta cidade. São 13 famílias residindo na região. Em 1973 a família Canuto, liderada por Seu José Canuto, comprou 74 hectares de terras onde antes viviam como moradores. Organizam-se através da Associação Unidos Venceremos do Povo Tabajara de Olho D´água de Canutos, que se reúne no salão comunitário da Escola Indígena da comunidade. Em Tamboril existe a comunidade Tabajara em Grota Verde, a 35 quilômetros da cidade. São 25 famílias que se organizam através de uma associação sob a liderança de Agno Tabajara. Atualmente, sofrem constantes ameaças por parte de fazendeiros, fato que tem limitado suas ações políticas.

Os tabajaras de Poranga residem na Aldeia Imburana, que fica próxima à cidade e também na Aldeia Cajueiro, distante 38 quilômetros de Imburana. Esta aldeia, de 4.400 hectares, foi fruto de uma retomada, sendo hoje habitada por 9 famílias, entre Tabajara e Kalabaça e igualmente aguardam a regularização da terra indígena.

Entre suas instituições, existem o Conselho Indígena dos Povos Tabajara e Kalabaça de Poranga - CIPO, importante instrumento de organização e luta; a Associação de Mulheres Indígenas Tabajara e Kalabaça (AMITK) e a Escola Diferenciada Indígena de Poranga.

Tabajaras famosos

A dupla Índios Tabajaras, formada pelos irmãos tabajaras Antenor (Mussaperê, "terceiro" em língua tupi, por ser o terceiro filho) e Natalício (Herundy, "quarto" em língua tupi, por ser o quarto filho) Moreira Lima, fez sucesso nacional e internacional entre 1942 e 1980, tocando obras de música clássica no violão.

Referências

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↑ Revivendo músicas. Disponível em http://revivendomusicas.com.br/biografias_detalhes.asp?id=126. Acesso em 12 de junho de 2016.
Fontes[editar | editar código-fonte]
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PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Aldeias indígenas e povoamento no Nordeste no final do século XVIII: aspectos demográficos da 'cultura do contato'. (Trabalho apresentado no GT "História Indígena e do Indigenismo", no XVI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambú-MG, 1992).
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