Toy art Kambiwá |
# | Nomes | Outros nomes ou grafias | Família linguística | Informações demográficas | |||||||||
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83 | Kambiwá | Cambiua |
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Localização
A Terra Indígena (TI) Kambiwá está localizada nos municípios de Inajá, Ibimirim e Floresta, no Estado de Pernambuco.
Segundo dados da Funasa cedidos pelas lideranças da comunidade, atualmente, os Kambiwá estão distribuídos em oito aldeamentos principais: Pereiros, Nazário, Serra do Periquito, Tear, Garapão, Americano, Faveleira e Baixa da Índia Alexandra, a aldeia principal, onde se encontra o Posto Indígena Kambiwá.
Língua e escola
Os Kambiwá há muito usam o Português como língua corrente. Mas se referem a uma língua, falada pelos seus antepassados, da qual, hoje, ainda persistem algumas palavras. A seguir apresentamos uma amostra desse vocabulário:
Quaqui ou guia: Cachimbo confeccionado com raiz da juremeira
Matricó: Cachimbo reto de cerâmica
Guaipú: Veado
Jarita: Cangambá
Papú: Tatú
Urupá: Peba
Pediu: Tamanduá
Foiaça: Raposa
Caniquin: Tatú-Bola
Maci: Onça
Tupichaná: Alecrim-de-caboclo
Cateobá: Saiote confeccionado com fibra de caroá
Coité: Maraca confeccionado com cabaças
Urucu: Caboclo
Cituru: Cabocla
Canomim: Criança
Tacajupe: Negro
Porrú: Fumo (tabaco)
Toe: Fogo
Jehuá: Água
Geriaci ou Iraci: Lua
Uaraci: Sol
Educação escolar
Em parceria com o Centro de Cultura Luiz Freire, os Kambiwá vem buscando implementar um projeto político-pedagógico em suas escolas que esteja voltado para a necessidade de uma educação específica, diferenciada e intercultural de qualidade.
Hoje existem quatro escolas Kambiwá: Aimberê, localizada na Baixa da Alexandra e com um anexo na área de Retomada; São Francisco de Assis, em Pereiros; Pedro Ferreira de Queiróz, na Aldeia Nazário; Joseno Vieira, na Serra do Periquito. Estas escolas ainda não foram reconhecidas como indígenas. Para que assim sejam, duas estratégias foram desenvolvidas pela comunidade: a implantação do Projeto Escola de Índios e a criação da Comissão de Professores Indígenas em Pernambuco (Copipe), em 1999.
Desde então, muitas foram vitórias foram alcançadas, como a formação de um quadro de professores em sua maioria índios, a criação de um calendário letivo que respeita as atividades sócio-culturais deste povo e a criação de material didático pelos próprios professores.
Histórico do contato
No século XVI, a costa atlântica foi palco dos choques iniciais entre os índios do litoral e o colonizador europeu, quando este – após o furor extrativista do pau-brasil – apropria-se das terras dos índios para fazer suas lavouras de cana-de-açúcar e escravizar nativos. Ainda nesse século o gado é introduzido no continente, a fim de alimentar a população escrava e mover os engenhos da Bahia e Pernambuco, cujos sertões forneciam as pastagens naturais mais acessíveis, no limite das quais irá se desenhar a fronteira de expansão econômica, caracteristicamente pastoril. Contudo, é apenas a partir do século seguinte que a "frente pastoril" irá encontrar os índios do sertão; contingente humano indesejável para o criador expansionista, que os dispensava como mão-de-obra e desejava suas terras.
Essa modalidade de expansionismo econômico, ao mesmo tempo em que necessitava de grandes extensões de terra, visava a ocupação efetiva do território em questão, fazendo com que os diversos grupos indígenas da região opusessem resistência ao empreendimento pastoril ou buscassem "áreas de refúgio" nos brejos ou altos de serras próximas, tal como hoje se verifica entre os Atikum (Serra do Umã), Pankararu (Brejo dos Padres) e Kambiwá (Serra Negra).
O século seguinte marca presença dos holandeses no Brasil através da Companhia das Índias Ocidentais. Em Pernambuco, os batavos permaneceram por tempo suficiente para estabelecer alianças valiosas com os grupos indígenas locais contra os portugueses, sobretudo com os assim chamados "Tapuia" do sertão, tais como os Otxukayana, Paiakú, Ikó etc. A maior parte desses grupos foram perseguidos na época da Restauração, quando os portugueses resolveram reorganizar a administração das tribos locais, até então relegadas a um segundo plano. Tais perseguições foram levadas a cabo através da ação de bandeirantes paulistas, como Domingos Jorge Velho, e culminaram com um grande e duradouro embate entre os índios que se refugiaram na Serra de Ibiapaba (Província do Ceará) e os neo-brasileiros, que ficou conhecido como “Confederação dos Cariris".
Em meados dos séculos XVIII e XIX, produzem-se relatos importantes sobre os grupos da região, encontrados em Caldas (1759), Vilhena (1802), Casal (1817), entre outros, todos unânimes em afirmar a "decadência" ou "atraso" das recém-criadas vilas de "índios mansos" ou "caboclos". É dessa época o último relato conhecido a respeito da redução de índios, em que se encontra a referência mais antiga relativa aos Kambiwá. Trata-se de carta endereçada a D. Jozé, Bispo de Olinda, pelo missionário capuchinho italiano Frei Vital de Frescarolo em 1802, publicada somente em 1882. Nesta, o missionário presta conta da tarefa para qual fora incumbido, fornecendo minucioso relato de sua aproximação com os "gentios bravos" do lugar chamado Jacaré, no vale Rio Moxotó. Eis parte de seu principal relato, em que os índios escolhem o lugar ideal para serem aldeados, denotando conhecimento prévio do território em questão e assegurando o caráter imemorial de ocupação daqueles sítios:
A cabo de dez dias, vendo que já estavão contentes e pacíficos, tratei com elles onde haviamos de fazer aldêias, e todos juntos responderam que querião este lugar do Jacaré, porque há muito mel e bixo para comer, e plantariam mandioca na serra do Periquito. distante deste jacaré tres leguas bôas, e já perto da Serra Negra (...)" (:109).
Nesta ocasião, o capuchinho italiano afirma ter aldeado nada menos que 114 índios da nação Pipipão "que andavam embreados no sertão da Serra Negra", e envia à sua alteza Real exemplares das armas e vestes que esses índios tributavam à Coroa, "em sinal de sua obediência e fidelidade". Segundo seu relato, tais índios compunham uma das quatros remanescentes “nações bárbaras”, junto com os Xocó, Vouê e Umão (:110), estes últimos sendo mencionados, juntos com os Pipipão, como os principais habitantes da Serra Negra, embora Albuquerque (1889), inclua ainda os Aricobés ou Avis neste contingente.
Apenas do reduzido número de nações indígenas noticiadas por estes relatos, Nimuendaju (1946) menciona nada menos que oitenta diferentes etnias ocupando a área situada entre o sertão propriamente dito – a caatinga – e suas faixas de transição para a mata costeira, o agreste, e para o cerrado – os cocais –, com amplas concentração no curso do baixo e sub-médio São Francisco. Dessa maneira, com o avanço dos pecuaristas só restou aos índios do Sertão a miscigenação e a busca das já mencionadas "áreas de refúgio".
Este fato já era de conhecimento do Bispo de Olinda, D. Jozé (:104-5), ao incumbir Frescarolo de estabelecer o referido aldeamento:
Aquelles índios (...) conservando-se na sua rebelião entre serras e brenhas incultas, serão de terríveis consequências para o estado, por isso que elles facilmente fogem, levando consigo armas e bagagem, quando encontrão maior força; e tornão de repente sobre seus inimigos descuidados, (...)"
E prossegue:
(...) aqueles indios serião o ponto de ajuntamento dos negros fugidos, e ainda dos brancos descontentes, si elles existissem por muito tempo na sua rebelião."
Hohenthal (1960) faz também diversas menções aos "bandos nômades de Serra Negra" e sugere que decréscimo do contingente humano, registrado entre 1855 e 1861 na Aldeia de Assunção, deveu-se provavelmente ao hábito recorrente que alguns desses grupos mantinham de abandonar suas aldeias para se juntarem aos primeiros. Segundo esse autor (:55), várias foram as tentativas de aldear em Brejo dos Padres – junto dos Pankararu, com quem sempre mantiveram estreitas relações – os assim chamados " índios arredios de Serra Negra", os quais foram perseguidos por elementos da sociedade nacional, especialmente entre 1824 a 1858.
Na verdade, não é possível precisar ao certo quantos e quais eram exatamente os antigos habitantes da Serra Negra, embora haja uma certa unanimidade na crença de que eram os Pipipã que formavam o contigente majoritário. Albuquerque (1989) parece concordar com esta estimativa, ao descrever uma das diversas ocasiões em que estes índios foram alijados de seu sítio:
Em 1823, José Francisco da Silva e Cipriano Nunes da Silva expeliram à mão armada os índios Pipipãs que habitavam a Serra Negra, situaram uma fazenda pastoril, construíram casas e currais, fizeram grandes plantações, abriram estradas, e para sua garantia mantinham gente armada, prevenindo qualquer investida dos índios espoliados de suas terras (...) " (:133).
Segundo Ma. Milagres Leite Cerqueira (1981), responsável pelo levantamento dos grupos indígenas atuais do Estado de Pernambuco para o Condepe (Instituto de Desenvolvimento de Pernambuco), esses índios fazem parte de grupos que, possivelmente com outros nomes, vagaram muito tempo pela Serra Negra até serem de lá expulsos. Durante sua pesquisa colheu relatos dos "caboclos" que afirmam ter sido expulsos da Serra durante as perseguições à Lampião e seu bando, entre 1922 e 1928. Eis o seu relato:
A polícia os fustigava da serra, na suposição de que eram 'coiteiros' do bando. Em 1950, vivendo próximo a atual reserva, suas roças foram queimadas pelos fazendeiros locais, sendo induzidos pelo Juiz de Direito a vendê-las por preços ínfimos, ficando a vagar pela região até serem aldeados".
Lowie (1963) também refere-se, de forma breve, aos "índios de Serra Negra", classificando-os na designação genérica de "Tapuia", afirmando contudo – ao contrário de Estevão Pinto (1953) quando faz menção a estes índios – tratar-se de um grupo cuja filiação lingüística o colocaria em "tronco" distinto dos Jê.
Nimuendajú (1937) menciona os "índios de Serra Negra" por ocasião de sua passagem pelo interior de Pernambuco, quando esteve entre os Xukuru em Cimbres e os Pankararu em Brejo dos Padres. Entre estes últimos chegou a registrar um vocabulário com 25 itens, atribuídos pelos informantes aos seus patrícios de Serra Negra.
A menção mais antiga que podemos encontrar a estes índios como designação atual de Kambiwá vem de Hohenthal Jr. (1954 : 98), a qual descrevemos na íntegra:
No que concerne à sua desaparição, simplesmente não sabemos a resposta. Eles [os Kambiwá] podem ter perdido sua identidade tribal sendo absorvido por outros grupos indígenas, refugiando-se na Serra Negra e sertão circunvizinho, escondendo-se durante um intenso período de perseguição ativa (1824/1858) pelos sertanejos locais. Nesta mesma linha alguns poucos sobreviventes da tribo chamada Kambicá, não registrada em documentos históricos, até onde se sabe, continuam sobrevivendo precariamente na parte ocidental na Serra Negra, uns poucos indivíduos do grupo casaram e vivem entre os índios Pankararu de Brejo dos Padres, Tacaratú, Pernambuco.(...) Com muitos deste pequenos bandos de índios perambulando através do sertão, compreensivelmente temerosos de sua descoberta pelos perseguidores brancos, não é de todo estranho que o nome tribal destes remanescentes tenha sido esquecido, e que os pequenos bandos tenham sido absorvidos por grupos maiores, com a consequente perda dos históricos nomes tribais" (trad. nossa).
No ano de 1968 são empreendidas duas pesquisas lingüísticas, quase que simultâneas, nas quais os Kambiwá são rapidamente mencionados. A primeira, empreendida pelo lingüista tcheco Cestimir Loukotka (1968), faz referência ao grupo como antigos habitantes da Serra Negra mas não apresenta nada de conclusivo sobre seu idioma, que ainda persiste através da utilização esparsa de alguns vocábulos, principalmente em ocasiões cerimoniais. A segunda é levada a cabo através de Dale W. Kietzman do "Summer Intitute of Linguistics" (atualmente designada no Brasil por Sociedade Internacional de Lingüística). Eis o seu relato sobre os Kambiwá:
Cerca de 200 famílias estão espalhadas pela região central de Pernambuco, a maior concentração, que consiste de cerca de 20 famílias, está em São Serafim, perto de Serra Talhada. Todos os Kambiwá foram afastados da Serra Negra num passado recente por fazendeiros invasores. Eles nunca mais se reagruparam e de um modo geral estão vivendo em circunstâncias paupérrimas".
Em nosso entender, boa parte da história dos atuais Kambiwá ainda se encontra passível de registro através da coleta dos relatos de índios e regionais – principalmente aqueles de idade mais elevada –, os quais detêm na memória elementos de grande valia no sentido de se recuperar um pouco do poderíamos chamar de " tradição oral" do grupo.
Reivindicação territorial
No âmbito do órgão de assistência oficial dos índios, a reivindicação pelo reconhecimento dos Kambiwá e de seu território começa a ser registrado no ano de 1968 com uma carta endereçada ao Sr. Diretor da Fundação Nacional do Índio - Brasília, assinada por diversos "descendentes" dos índios da tribo do aldeamento no lugar Serra Negra e suas adjacentes.
Território Kambiwá |
Em 1971 foi criado um Posto Indígena Kambiwá (PP No. 13 de 14.06.1971), considerando que "as populações da Baixa da Índia Alexandra são remanescentes de índios Kambiwá" e "que essas populações, juntamente com as de Faveleira, inveja e Serra do Periquito também remanescentes indígenas, somam 2.122 indivíduos" (proc. 1.268/fls.51).
Porém, somente no ano de 1978 a área indígena Kambiwá foi demarcada. Este procedimento teve como subsídio preliminar apenas um levantamento topográfico, não cumprindo as exigências do decreto No. 76999 de 08.01.76, nem os itens do levantamento antropológico constantes na portaria 517/11 de 03.08.78. A demarcação foi assim realizada por um engenheiro agrônomo e um auxiliar técnico de topografia, totalizando 16.085 ha.
Mesmo sendo referenciada como área demarcada, o fato de não ter seguido o processo normal de definição de uma área indígena fazia com que fosse freqüentemente questionada, o que a tornava passiva a revisões. Os Kambiwá, insatisfeitos, não cessaram de reivindicar seu território, pois continuavam sentindo-se explorados. [ver desdobramentos desse processo no item Os Kambiwá e a Serra Negra]
Organização social e subgrupos
Entre os Kambiwá, cada aldeamento possui um representante que serve de intermediário entre o cacique e a comunidade. Existe ainda um "conselho", com cerca de dez integrantes, que tem a responsabilidade de se reunir para definir questões comuns a todos. A unidade do grupo indígena é mantida através do conselho, como também das autoridades do cacique e do pajé.
Ao cacique compete decidir sobre questões internas ao grupo, convocar o conselho e servir de porta-voz entre este e a Funai, ou qualquer outro envolvido em questões com os Kambiwá, além de promover eventos, inclusive de cunho religioso. O pajé, seu Neco, com a saúde debilitada, está afastado da função, a qual é exercida pelo vice-pajé Ivan. Esta autoridade, na atualidade, possui como uma das funções principais o assessoramento constante ao cacique nas decisões que se referem à comunidade Kambiwá. Há também um íntima relação entre a figura do pajé e a prática do curandeirismo, através de rezas e utilização de ervas medicinais.
As aldeias são constituídas pela aglutinação de famílias nucleares, vivendo cada uma em sua habitação, que é, geralmente, uma precária construção de taipa.
O espaço físico parece estar organizado de acordo com a descendência de algumas famílias específicas, como por exemplo: o terreiro dos "Roseno", do "Fulô", ou ainda o território dos "Panta" e dos "Pelonha", na aldeia Pereiros.
Divisões internas
O nome Kambiwá constitui uma designação genérica através da qual os diversos grupos indígenas remanescentes de antigos moradores da Serra se reorganizaram no sentido de afirmar sua identidade indígena e desta forma fazer valer, junto à sociedade nacional, seus direitos étnicos. Na verdade, o grupo indígena Kambiwá é composto por dois grandes sub-grupos, a saber: " os Caboclos da Barra" e os parentes de “João Cabeça-de-Pena". Os primeiros sendo originários da região conhecida como "Ribeira", situada na região do vale do Rio Moxotó (antigo "Olho D'água da Gameleira"), enquanto estes últimos seriam antigos moradores da Serra Negra. Consideram-se, ainda, descendentes dos Pipipã e Umã; grupos que habitavam ainda – principalmente os primeiros – a Serra do Periquito, Poço do Ferro, Faveleira e Realengo.
Estes dois grandes sub-grupos que constituem o grupo indígena Kambiwá, por sua vez, subdividem-se em vários sub-grupos, da forma a seguir:
Caboclos-da-Barra: Romana, Pereira, Lima, Pelonha, Anelino e os Ricardos
Parentes de João Cabeça-de-Pena: Flor, Bela, Camisinha, Roseno e Viana
Essas divisões internas são relativas ao processo de reorganização étnica, a partir dos dois principais grupos formadores. É provável que, entre 1939 e1940, ocasião em que já tinham sido definitivamente desalojados da Serra, "Cabeça-de-Pena" e seu grupo tentaram retornar à Serra Negra, pedindo apoio ao governo Getúlio Vargas, através do Padre Alfredo Dámaso e recebendo, segundo os relatos, resposta positiva.
Na década de 1950, vários segmentos dos dois principais grupos kambiwá acima mencionados ainda se encontravam dispersos nas proximidades da Serra Negra. Por volta desta época, saíram da localidade conhecida por "Barra" (atual "Pereiro"), uma índia kambiwá chamada Tereza e seu marido, um índio kapinawá. Este, por insistência da esposa, aceitou sua idéia de partir na direção de Serra Negra, quando encontraram, já nas imediações da mesma, uma série de pequenos grupos de famílias indígenas, entre as quais os "Amâncio", os "Pereira" e alguns integrantes da atual família "Lima". Quando chegaram onde hoje é a sede do PIN Kambiwá encontraram, além destes grupos, alguns parentes de "João Cabeça-de-Pena", que, alguns anos antes, haviam sido expulsos da Serra Negra.
Trata-se portanto de um reagrupamento de diversos grupos remanescentes de populações indígenas locais, cujo passado comum de ocupação imemorial da Serra Negra faz com que a reconheçamos como um verdadeiro elemento de sustentação de sua identidade étnica indígena.
Economia e ambiente
A terra Kambiwá está situada no sertão pernambucano, na parte do sub-médio São Francisco, onde predomina clima seco de estepe com chuvas irregulares, provocando constantes períodos de estiagem. De acordo com o levantamento do Condepe (1980) menos de um quarto do território demarcado em 1978 se presta para o plantio.
Com estas características, adicionadas à falta de assistência técnica, não resta alternativa aos Kambiwá que a agricultura de subsistência. Não existem condições favoráveis para as culturas permanentes, devido ao solo arenoso e à quantidade de formigas.
A escassez de água é um dos principais problemas para a manutenção econômica dos Kambiwá. Sua obtenção é feita através dos poucos poços existentes, cuja profundidade é sempre superior a 100m. É comum a construção de "barreiros", ou seja, pequenos lagos artificiais para o armazenamento da água proveniente das chuvas.
Quando há excedentes da agricultura, os produtos são comercializados na feira de Inajá (realizada na segunda-feira) e Ibimirim (realizada no sábado).
Devido à pobreza do seu solo e à escassez da água, os Kambiwá muitas vezes são obrigados a trabalhar em terras (algumas devolutas) fora dos limites demarcados, ou mesmo empregam sua mão-de-obra em fazendas da região.
A faixa de terra mais produtiva ficou excluída da demarcação realizada em 1978, não garantindo nem mesmo a sobrevivência física do grupo.
Há na TI um pequeno criatório de caprinos e bovinos, representativos apenas do ponto de vista da economia familiar, ou seja, que não têm expressão comercial, auxiliando apenas na economia doméstica de subsistência. O criatório bovino ocorre, geralmente, em regime de "um quarto", entre índios e fazendeiros locais. Neste sistema os Kambiwá cuidam do gado até que ele se reproduza. Em cada quatro "cabeças" que nascem, uma é do índio. Esse tipo de acordo apresenta-se bastante desvantajoso para os Kambiwá, considerando que apenas alguns poucos índios conseguiram chegar à quarta cria que lhes garante a "cabeça" de gado. Algum criatório de galinha também existe no quintal das casas.
A caça é outra atividade econômica praticada pelos Kambiwá; através dela a dieta da comunidade é complementada. Caçam tatu, peba, veado etc. Porém, esta prática vem sendo prejudicada pelos constantes desmatamentos e invasões de pessoas de outras regiões, que praticam a caça em caráter desportivo e predatório.
A produção artesanal dos Kambiwá está concentrada na confecção de bolsas, esteiras, redes, tapetes, vassouras, cestos e indumentárias de palha de ouricuri (Cocos coronata) e fibra de caroá (Neoglazcovia varregata). Todos estes objetos de maneira geral são destinados ao consumo interno e sua confecção constitui prática eminentemente feminina.
Existe também os trabalhos em madeira – esculturas, santos, correntes, carrancas etc. – feitas em imburama-de-cambão (Amburama cearensis), realizados pelos homens e objetivando a comercialização. Do ponto de vista econômico, porém, esta atividade estava se apresentando pouco rentável, considerando que apenas a aldeia Baixa da Alexandra concentrava o papel de comercializar o artesanato. A partir de 2002, a Universidade Federal de Pernambuco, através do projeto Imaginário Pernambucano, interveio na produção artesanal do povo Kambiwá, investindo na qualidade dos produtos e processos produtivos, buscando novas alternativas de geração de renda e promovendo a aproximação dos artesãos com o mercado.
Manifestações culturais
Os Kambiwá, como muitos dos grupos indígenas nordestinos, devido ao violento processo de dominação a que foram submetidos até os dias atuais, tiveram muitos de seus aspectos que os diferenciam da sociedade envolvente reprimidos, para garantir sua sobrevivência, evitar discriminações e afastar o pesado estigma de ser "caboclo".
Atualmente, existe todo um processo de reavivamento de sua identidade étnica, considerando que o "ser diferente" é oficialmente reconhecido e legalmente garantido. O movimento indígena no Brasil, particularmente no Nordeste, vem atuando como suporte para adoção, por parte dos povos indígenas, de uma nova postura, que salienta os elementos que os definem como sociedades diferenciadas.
Nos dias atuais, os Kambiwá apresentam como práticas ritualísticas as danças dos Praiá e do Toré. Na primeira, participam somente homens, denominados "moços do Praiá" ou "novos", que formam um tipo de confraria masculina. Trata-se de um ritual de cunho mais reservado, durante o qual são cumpridas "obrigações".
Ritual Praia Kambiwá |
Tradições
Dentre os rituais religiosos dos Kambiwá, destacam-se o Toré, cerimônia religiosa aberta, onde os índios dançam nos terreiros das aldeias e costumam ingerir uma bebida extraída da juremeira – a jurema ou anjucá – e o Praiá, que é um dos mais importantes rituais cujo sentido religioso não é totalmente revelado. O nome Praiá designa tanto o ritual como os personagens, que são homens vestidos com máscaras de corpo inteiro, feitas com a fibra do caroá. No âmbito do segredo e do sagrado, os Praiá atuam como elemento de comunicação com os ancestrais.
É comum nessas cerimônias cantarem toantes formados de pequenas quadras, geralmente em português. Estes toantes falam sobre o tempo em que os antepassados habitavam a Serra Negra e a sua autoria é dada aos “antigos”:
Urubu de Serra Negra De velho não cai a pena De comer mangaba verde, cunhã Beber água na Jurema Sou índio de Serra Negra Eu sou Caboclo-de-Pena Eu venho fazer penitência Tomando o vinho da jurema
Além dos rituais específicos, o povo Kambiwá possui a tradição do catolicismo, tendo como seu padroeiro São Francisco, o qual é homenageado anualmente no mês de outubro com novenas e festas. A igreja na aldeia da Baixa da Alexandra leva seu nome. Também durante o mês de maio são realizadas novenas a Maria.
Ó Mãe de Deus Ela é mãe soberana Ó Mãe de Deus Tenha pena de nós
Vamos trabalhar Com muita fé em Deus Se a mãe de Deus Nos ajudar, ô ínã hei
O praiá, segundo as informações, trata-se de uma prática dispendiosa. Além da alimentação oferecida pelo organizador, é ainda servida a "garapa" (água com açúcar), o caxixi (aguardente com ervas) e o porrú (fumo). Nestas ocasiões, os oito "moços" kambiwá, cujas idades variam de 10 a 60 anos, utilizam máscaras, por eles confeccionadas com fibras de caroá. São compostas de cinco peças: o "tunã" ou a máscara propriamente dita, que cobre até a altura do pescoço com feixes de fibras que caem sobre os ombros; a "cateoba", um saiote; uma rodela de penas de peru, fixa no eixo superior do "tunã"; o penacho, tubo de penas atadas a uma ponta de madeira que se encaixa em um orifício, na parte superior da máscara; e a "cinta", um pequeno lenço retangular, composto de retalhos de chita.
Já o Toré possui um caráter menos rígido, podendo acontecer nas mais variadas ocasiões. Perguntando sobre quando ocorreria um Toré que pudéssemos assistir, o cacique Pedro Joaquim respondeu que só dependia do nosso aviso para que se organizassem. O Toré tem para o grupo função de enfatizar sua identidade indígena.
O toré é dançado por indivíduos do sexo masculino e feminino. Utilizam indumentárias compostas de "cateoba", "manto" e "chapéu". O "manto" se assemelha à cateoba, amarrado na altura dos ombros. Utilizam ainda o "coité", espécie de maracá feito da cabaça nativa cujo chocalhar acompanha o ritmo dos toantes.
Apesar da religiosidade kambiwá estar intimamente relacionada com a regional, por meio das novenas e celebrações dos dias santos mais tradicionais, possui momentos de completa diferenciação. O praiá e o toré têm também esta função, além do consumo da Jurema (ou anjucá), bebida extraída da juremeira.
Os Kambiwá e a Serra Negra
Situada no chamado "Alto Sertão" pernambucano, a Serra Negra é descrita como uma "ilha" no imenso "mar" da caatinga. Até o momento da criação da Reserva Biológica (Rebio) de Serra Negra, administrada pelo então IBDF (órgão antecessor do Ibama), na década de 1970, a ocupação humana daquele sítio se deu de forma permanente e flutuante, caracterizando um tipo específico de " transumânia ", motivada pela busca de terras para a agricultura. De fato, a Serra Negra não seria uma "ilha" apenas pelo seu micro-clima no meio da semi-aridez da planície, mais também por ser uma ilha de pequena agricultura em volta do oceano do criatório latifundiário e extensivo. Seu quadro natural condiciona uma ocupação dividida em três sítios diversos: a "chã", a encosta sul e o "pé-de-serra" Norte. Em todos, a paisagem cultural se construiu através e em função do uso da terra para a agricultura, fazendo com que sua geografia seja predominantemente agrária. Este seria o quadro da ocupação recente – anterior à criação da Rebio –, em que os produtos de subsistência, como a mandioca, o feijão e o milho, eram os que mais interessavam aos lavradores (brancos e índios). Além destes, o cultivo do café e a eventual presença de algumas bananeiras complementavam o cenário.
Não obstante o fato de ter a Serra Negra todos os atributos necessários à sobrevivência biológica e cultural dos Kambiwá ou, ao menos de boa parte dele, e a despeito da precária situação de subsistência no "Baixo", o interesse dos Kambiwá pela Serra não é propriamente econômico. Considerada a "mãe" da qual seus filhos foram afastados, a Serra Negra constitui um sustentáculo da identidade étnica dos diversos grupos reunidos sob a designação genérica Kambiwá. Vários são os relatos que dão conta das sucessivas expulsões da Serra a que foram submetido os mais velhos com respectivas famílias, induzido-os a um movimento de diáspora permanente e conseqüente ocultamento da identidade indígena, sujeitos que estavam à repressão de suas práticas rituais (quando se reuniam para brincar o Toré nos terreiros), inclusive com o apoio de forças policiais do Estado. Esta situação preservou até o momento em que se reuniram os diversos remanescentes no local onde hoje se situa o posto indígena Kambiwá.
O maior interesse dos Kambiwá para com a Serra Negra reside, desta forma, na possibilidade de retornar à mesma, não de maneira definitiva ou para fixar morada – tendo em vista que os próprios índios manifestam receio de que a ocupação da Serra para "botar roça" possa ocorrer de forma desordenada, colocando em risco seu ecossistema), mas quantas vezes for necessário para a preservação e reprodução de sua cultura.
No ano de 1994, os Kambiwá obtiveram autorização, mediante acordo entre Funai e Ibama para visitar a Serra Negra duas vezes por ano no período destinado à suas práticas religiosas.
Fontes de informação
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