Toy Art Mura |
# | Nomes | Outros nomes ou grafias | Família linguística | Informações demográficas | |||||||||
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145 | Mura | Mura |
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Cacique Murá |
Nome
Falantes da língua portuguesa, os Mura conjugam a miscigenação e a territorialidade em suas formas atuais de autodenominação. Questionado sobre local do nascimento ou sobre a identidade indígena, os Mura comumente respondem: “sou caboclo legítimo do rio Madeira”. Por “caboclo legítimo” buscam esclarecer a condição particular do grupo étnico: afirma a determinação política de ser Mura a despeito das mudanças históricas. Ocorre, assim, a apropriação de um termo regional, “caboclo”, normalmente utilizado com desprezo pelos regionais para definir o índio “impuro”, “aculturado”. Positivado pelos índios, o termo “caboclo” passa a identificar o que é ser Mura hoje: índio misturado, cuja genealogia é o resultado da incorporação de nordestinos, maranhenses, peruanos e não-índios em geral, que passaram a compor a etnia através de casamentos, a maioria das vezes, com mulheres mura. Por “caboclo” o Mura alude ao componente biológico, o sangue indígena, ainda que misturado; por “legítimo” sinaliza o pertencimento a uma determinada área geográfica; um rio, igapó ou lago, por exemplo. Não é mais “índio puro” porque viveu o processo civilizatório com todos seus terríveis matizes do período colonial ao presente. Ao se assumirem “caboclos legítimos” os Mura reafirmam a consciência do complexo processo histórico vivido pelo grupo para se manter enquanto tal. A sociedade regional, no entanto, freqüentemente questiona se os Mura seriam “índios de verdade”.
Língua
Os Mura dos rios Madeira e Solimões falavam até o início do século XX a língua Mura, de um tronco linguístico isolado. Desde a época da conquista, estes índios passaram a utilizar também a língua geral (ou Nheengatu), que gradativamente foi sendo substituída pelo português.
Em 1826 um observador anônimo deixou registrado que os Mura da embocadura do Madeira falavam “a língua geral além das suas três gírias - a articular nasal, a gutural e a da gaita” (C. Moreira Neto, 1988: 358). Situação linguística semelhante foi descrita por Barbosa Rodrigues (1975) no rio Urubu; Tastevin (1923) nas proximidades de Manaus; e Nimuendajú, em relação aos Mura dos rios Madeira e Solimões.
O Apaitsiiso, língua falada pelos Pirahã, atuais habitantes dos rios Marmelos e Maici, classificados por Nimuendaju (1946) como um sub-grupo Mura, possui estas mesmas características. Os estudos de Henrichs (1964), Everett (1978, 1983) e Gonçalves (1988, 2001) a descrevem como uma língua tonal, na qual significados são estabelecidos eminentemente a partir de relações de tons. Por meio de assovios e gritos, por exemplo, os falantes são capazes de gerar uma modalidade de comunicação específica, especialmente eficaz para conversas a longas distâncias.
A língua geral, arquitetada pelos jesuítas a partir das línguas Tupi-Guarani da costa, foi até a expulsão dos jesuítas e a criação do governo laico do Diretório Pombalino (1755), a língua oficial da colônia no Grão-Pará, imposta a todos os nativos nas missões, nas relações comerciais e nos esforços de disciplinarização para o trabalho. Até o século XIX, os Mura a utilizavam amplamente na comunicação com colonos, missionários, escravos negros e outros povos indígenas. Isto, entretanto, não quer dizer que houvessem abandonado a língua Mura. No século XX, o Nheengatu perdeu para o Português o papel de língua franca intercultural.
Atualmente, os Mura, falantes de Português, assim como outros povos amazônicos que perderam suas línguas maternas, reafirmam o Nheenhatu como uma língua indígena. Em diversos casos os Mura associam termos e locuções em língua geral falada pelos mais velhos à própria língua Mura.
No presente, os Mura vêm realizando esforços de valorização e resgate linguístico e cultural das diversas “gírias” da língua Mura.
Localização
As fontes históricas dos séculos XVIII e XIX apontam a presença dos Mura em vastas e diversas regiões da Amazônia oriental. A abrangência de sua ocupação territorial e a densidade populacional do grupo foram abordados pioneiramente por Nimuendajú (1948). A partir do século XVII, os Mura teriam migrado da fronteira com o Peru (região de Loreto) para diversas regiões dos complexos hídricos dos rios Japurá, Solimões, Madeira, Negro e mesmo Trombetas (região de Oriximiná). A esta área de ocupação corresponderia uma população estimada entre 60.000 e 30.000 pessoas. Neste período, a ação das tropas de resgate e das missões ocasionou a fragilização e depopulação de diversas etnias que ocupavam tais regiões, o que para muitos, acabou por beneficiar o crescimento populacional e a expansão mura para o leste. Nos séculos XVIII e XIX, a despeito de terem sofrido diversos ataques empreendidos pela colônia, os Mura mantiveram extensas posições no complexo hídrico dos rios Madeira, Solimões e Purus.
Território Indigena Murá |
Atualmente, os Mura continuam a ocupar largas porções territoriais nestas mesmas regiões hídricas. Encontram-se dispersos em mais de 40 Terras Indígenas, em diferentes estágios de regularização fundiária, distribuídas pelos municípios de Alvarães, Anori/Beruri, Autazes, Borba, Carceiro da Várzea, Novo Aripuanã, Itacoatiara, Manaquiri, Manicoré e Uarini; todos situados no Estado do Amazonas, sobretudo nas regiões de interflúvio dos rios Madeira e Purus. Nos centros urbanos, tais como a capital estadual Manaus e as sedes dos municípios habitados, registra-se a existência de bairros quase exclusivamente ocupados por segmentos populacionais mura, que mantém estreitos vínculos com os moradores das aldeias situadas nas TIs.
População
Devido à ampla mobilidade e dispersão dos Mura em um vasto território, as contagens populacionais globais são altamente imprecisas e difíceis de serem realizadas. A reunião dos levantamentos publicados pela Funai, produzidos no âmbito dos processos de regularização fundiária, conduzidos entre 1991 e 2008, apontam para uma população aproximada de 9.300 pessoas habitantes de Terras Indígenas.
Este cômputo, entretanto, não incorpora a população de aldeias e Terras Indígenas cujos processos demarcatórios ainda não foram concluídos, nem sequer os habitantes de centros urbanos, o que vem a dificultar, ou mesmo impedir, o planejamento de políticas públicas adequadas de atendimento à população mura, tanto nas aldeias quanto nas cidades.
Histórico do contato
A presença mura no sistema hidrográfico do rio Madeira é documentada desde início do século XVIII. As primeiras notícias coloniais dão conta de uma população de navegantes, com total domínio dos intrincados caminhos fluviais e das artes de subsistência nos rios e lagos, que vivia embarcada durante as cheias e acampada em jiraus e tapiris – habitações provisórias de palha – construídos nas praias durante o verão. Nas raras descrições da época, estas características eram associadas à ausência; eram tidos como povos sem religião, sem lei, sem agricultura, sem aldeias e sem cultura material.
Indio Mura inalando paricá Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro Mato Grosso e Cuiabá de Alexandre Rodrigues Ferreira 1783 1792 |
Apenas no fim do século XX, com o fortalecimento da etnologia das terras baixas sul-americanas, tais visões foram questionadas. Em pesquisa sobre os Mura-Pirahã, Marco Antonio Gonçalves (1988, 1990, 1993) interpretou tais “ausências” como a expressão de um padrão cultural minimalista, que encontra na descartabilidade o principal elemento de sua filosofia de vida.
A construção do inimigo mura
Os Mura acumulam uma longa história de contato com a sociedade envolvente. Desde tempos remotos, colonos e missionários católicos construíram e disseminaram fortes estigmas contra tal povo, a ponto de recusar-lhes até mesmo a condição de seres humanos. Em meados de 1714 foram realizadas as primeiras e totalmente frustradas tentativas de redução dos Mura aos aldeamentos da Companhia de Jesus na região do Madeira. Desde então, foram vistos como ameaças aos estabelecimentos implantados na região junto a outros povos, devido aos frequentes ataques contra tais núcleos, bem como contra as embarcações comerciais que atuavam nos cacauais nativos do rio Madeira. A história da Vila de Trocano, nome colonial de Borba, a primeira vila da Amazônia, ilustra este período: acossados pelos Mura, os jesuítas transferiram Trocano de lugar cinco vezes (Ferrari, 1981).
Tais situações e visões passaram a fundamentar tanto a práxis da violência quanto as leis de exceção para com os Mura. As primeiras denúncias contra tais povos se deram na fase de hegemonia da Junta das Missões, entidade com atribuições jurídicas, formada pelas ordens religiosas católicas atuantes no Grão-Pará até 1755. Algumas dessas ordens tinham comprovado interesse mercantil no rio Madeira. Os jesuítas, por exemplo, exploravam os seus cacauais nativos (Azevedo, 1919) e de tal indústria extrativa efetuavam um volume significativo de exportações. Para esses empreendimentos, a presença mura às margens do rio Madeira representava uma ameaça que deveria ser combatida. Este é o cenário no qual se germinou a criação dos Autos da Devassa contra os Índios Mura do rio Madeira (1738-1739), que consistia em uma ação judicial movida pelas ordens religiosas que atuavam na região do Madeira. A partir de então, os Mura passaram a figurar como inimigos oficiais da Igreja e da Coroa portuguesa, passíveis de serem mortos e escravizados. Durante todo o século XVIII, os documentos sobre os Mura posteriores à Devassa repetiam e reforçavam imagens fortemente pejorativas. Os registros históricos dão conta de “populações selvagens, tratáveis apenas através da guerra e do extermínio”.
Tais documentos, entretanto, quando investigados criticamente, apresentam inconsistências e contradições flagrantes. O caso da “Memória do Gentio Mura”, compilada por Alexandre Rodrigues Ferreira, é notável. Este texto, que serviu de base para a declaração de guerra da Coroa Portuguesa contra os Mura, foi escrito em Belém, sem ter o autor sequer iniciado sua famosa jornada pela Amazônia, descrita na Viagem Filosófica. A base da denúncia contra os Mura e da descrição das suas técnicas de guerra era literária; o autor atribui aos Mura características guerreiras dos Tupi da costa, que conhecera através da leitura de crônicas e relatos de viagens. Em 1757, quando da fundação do Diretório Pombalino que garantia liberdade formal aos índios, os Mura continuaram a ser uma exceção, uma vez que considerados inimigos oficiais da Coroa. A Carta Régia de 1798 também excluiu os Mura dos benefícios da Lei. Juntamente com os Karajá e os Munduruku, figuravam como “exceções de liberdade”. Uma vez que inimigos irreconciliáveis da Coroa, a escravidão imputada contra essas populações sempre foi uma empresa aceita e oficializada.
Data de meados 1784 a criação dos primeiros aldeamentos leigos de índios Mura “pacificados”. Estes aldeamentos eram freqüentados pelos Mura na época da colheita das roças. O resto do tempo a população mantinha hábitos tradicionais de pesca, caça e coleta, utilizando para tanto os furos e igarapés do sistema hidrográfico do rio Madeira. Embora discutíveis do ponto de vista da eficácia da sedentarização da população que diziam abrigar, estes aldeamentos marcaram, no entanto, uma nova fase de convivência destes grupos nativos com a colônia.
Do ponto de vista da população indígena, o que ocorreu foi um gradativo abandono das vias principais dos rios Madeira e Solimões pela região dos rios e lagos daquele sistema hidrográfico. Com isso ficava garantida proteção e farta subsistência para inúmeros grupos que pontilhavam as margens dos rios, lagos, igarapés, ocupando de forma extensiva e pouco densa um território de vastas dimensões. Os Mura detinham o conhecimento sobre caminhos indevassáveis ao colonizador português; deste modo, sua presença era registrada tanto na vila colonial de Borba, quanto nos rios Japurá, Purus, Solimões e Negro. A imagem do “Mura Agigantado” que consta do poema arcádico de Wilckens se originou neste contexto, no qual o colonizador, perplexo diante de tamanha mobilidade, passou a temer a floresta tropical por identificá-la com a “morada do gentio mura”.
O Mura Agigantado
O território imenso ocupado pelos Mura é um tema recorrente na história colonial da Amazônia; ao qual se associou o temor de um levante generalizado de tal povo contra a colonização. Para a maioria dos autores, isso explica as diversas ações militares movidas contra o grupo ocorridas a partir de meados de 1774. Em diversos contextos, os colonizadores retomavam os argumentos dos Autos da Devassa e exigiam o completo extermínio deste povo para evitar a ruína da “civilização” na Amazônia.
Neste contexto, é notável que as próprias características de suas formas de territorialidade e de sua organização social – e não atos atrozes de violência – colaboraram para a construção da figura pejorativa do “inimigo mura”. Por um lado, a colônia pretendia combater sua extrema mobilidade territorial e aversão à sedentarização, que lhes permitia expandir cada vez mais suas áreas de ocupação. Por outro, visava-se combater a “murificação”, que se consistia na prática de agregar aos seus próprios grupos diversos elementos fugidos das missões e vilas coloniais; tais como negros, brancos pobres e índios desterrados de diversas origens étnicas.
Os Mura e a cabanagem (século XIX)
No século XIX, os Mura tiveram presença marcante nos confrontos armados da cabanagem (1835-1840), ocorridos em todo o território da Amazônia brasileira. À época, a forte presença dos Mura no complexo hídrico dos rios Madeira e Solimões foi atestada pela própria documentação da repressão, que atuou intensamente na região entre 1836 – quando da retomada legalista de Belém e intensificação dos combates ao interior – até meados de 1840, quando os confrontos foram dados por finalizados pelo presidente da província com a rendição de aproximadamente 800 rebeldes na região de Maués, situada na região da ilha de Tupinambarana (curso do rio Amazonas), no interflúvio Madeira-Tapajós.
Assim como os demais contrários da “legalidade do Império”, os Mura eram identificados de modo genérico como “cabanos”, inimigos dos “homens de bem, da civilização e da humanidade”, passíveis de serem legalmente exterminados, escravizados (remetidos a corpos militares de trabalhadores) ou desterrados da província para outras regiões do Império (Moreira Neto, 1988; Mahalem de Lima, 2008).
Pesquisa recente sobre a memória dos Mura de Autazes sobre a cabanagem apresenta outras versões. Na memória dos mais idosos das aldeias de Autazes tratou-se de uma guerra contra os Mura. Em suas narrativas, os cabanos não seriam eles próprios ou aqueles aos quais se aliaram, mas sim os portugueses, os militares e soldados ligados às forças legalistas, bem como as populações indígenas dos rios Tapajós (Munduruku) e Negro, que se aliaram a eles (Castro Pereira, 2009).
A repressão militar aos cabanos marca uma das mais dramáticas páginas da história da Amazônia. Além dos processos de desterro e escravização, estima-se a morte de 40.000 de pessoas (ou aproximadamente um terço da incerta população amazônida da época). Vencidos em mais uma guerra e novamente alvo de programas de “pacificação”, os Mura foram descritos pelos viajantes do século XIX, tais como Spix & Martius (1976 [1823]) e Coutinho (1861), na condição de nativos corrompidos pelo contato, “aculturados”, viciosos, que se empregava na pesca e caça de animais aquáticos em troca de cachaça. Eram, enfim, tidos como uma população decadente e altamente primitiva. Nota-se, entretanto, que embora derrotados em combates e fortemente estigmatizados pela visão do colonizador, os Mura continuaram a ser a principal e mais numerosa população do sistema hidrográfico do rio Madeira.
Os Mura e a atuação do Serviço de Proteção aos Índios - SPI
O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) se fez presente nas terras mura do município de Borba desde as primeiras décadas do século XX, quando se iniciaram os trabalhos de demarcação de suas terras. Em 1917, o Governo do Estado do Amazonas, autorizou a concessão de lotes de terra à população indígena, o que moveu o SPI a demarcar lotes destinados aos Mura nos municípios de Manicoré, Careiro, Itacoatiara e Borba.
A concessão de pequenos lotes de terra e a concentração da população mura em aldeias, tal como a situação atual, foi fato historicamente constituído neste contexto e data provavelmente das duas primeiras décadas do século XX. A medida visava, ao mesmo tempo, racionalizar o uso de um vasto território e da mão de obra indígena, concentrando os índios em lotes devidamente demarcados e liberando para a população não-índia o restante da área. Criava-se, deste modo, em um território tradicional dos Mura dois estatutos diferenciados de uso da terra: a terra dos índios, configurando área federal, “da nação”, sendo seus habitantes tutelados pelo SPI; e a terra dos “civilizados”, de jurisdição municipal.
As fontes históricas apontam para diversos conflitos de interesse entre os agentes do SPI e os Mura. Nimuendaju, que esteve em Borba em 1926, refere-se à morte de um funcionário do SPI em Sapucaioroca e Vista Alegre, acusado pelos Mura de estar demarcando terras dos índios para particulares.
No Jutaí do Igapó-Açú, a Inspetoria do SPI mantinha um delegado, Sr. Odorico Ferreira Chaves, que aparece na documentação como uma liderança não-índia instalada na aldeia com a função de explorar o trabalho dos índios e organizar a comercialização da castanha. O funcionário do SPI, tal como em outras regiões da Amazônia, fazia as vezes do “patrão” dos seringais, cargo muitas vezes ocupado pela polícia local.
Os Mura e a atuação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
A política de arrendamentos no período do SPI explica em parte o fenômeno migratório dos Mura em direção aos centros urbanos da região. Um levantamento mais sistemático das correntes migratórias da população indígena em direção aos bairros Mura de Borba e Autazes poderia esclarecer este episódio recente da história dos Mura, assim como elucidar os mecanismos de atuação de políticas indigenistas que impeliram o grupo ao desaldeamento e à concentração urbana em bairros habitados exclusivamente pelos Mura.
A retomada pelos Mura – e o reconhecimento oficial – de seus territórios tradicionais é um fenômeno recente em sua história. Este processo de reocupação e reorganização das aldeias se iniciou em meados dos anos 1970 e foi respaldado na década seguinte pelas mobilizações das organizações indígenas da Amazônia em torno da questão da terra. Os Mura participaram desde os primeiros anos de formação da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas Brasileiras), por meio de lideranças que fundaram o CIM (Conselho Indígena Mura).
Em 1987, a Funai voltava sua atenção para os Mura, mais exatamente para o território de Cunhã-Sapucaia e Jutaí, áreas de interesse da Petrobrás, que pretendia realizar pesquisa e posteriormente lavra de petróleo e gases raros nas Terras Indígenas do rio Preto do Igapó-Açú. O trabalho de pesquisa consistia na abertura de picadas e duas linhas sísmicas em um território que, presumira-se em Brasília, não ser de ocupação do grupo. Com o início dos trabalhos, as autoridades e pesquisadores constataram que a área de interesse da Petrobrás incidia em território de ocupação dos Mura. Em seus relatórios, registravam, com certa surpresa, que os Mura surgiam de dentro da floresta e reivindicavam aquele território para si.
Esquecidos ou espoliados pelo poder tutelar desde meados do século XX, os Mura viam-se diante de um evento global de dimensões inéditas, que prometia mudanças radicais no seio de sua sociedade. Acenava-se com o dinheiro das indenizações para os índios; além disso, oferecia-se aos Mura a possibilidade de engajamento nas frentes de trabalho, e franqueava-se a eles brindes, cestas básicas, utensílios, bem como a possibilidade de convívio com um aparato tecnológico cinematográfico.
Ficou acertado, por intermédio da Funai, o pagamento de indenizações devidas aos índios. Parte deste dinheiro foi pago ao líder Sapucaia, eleito representante da população Mura. O restante do valor foi depositado em uma Caderneta de Poupança e acabou confiscado pelo governo por ocasião das mudanças econômicas da administração Collor.
Se frustrante do ponto de vista monetário, o evento provocado pela pesquisa de petróleo teve efeitos notáveis. Mobilizou mais uma vez os Mura na defesa de seus territórios e lançou os líderes que participaram das negociações em outra esfera política, que articulava a dinâmica da vida local diretamente com Brasília.
Organização social e política
A extensiva presença dos Mura no sistema hidrográfico do rio Madeira confirma um padrão de moradia que dá preferência ao habitar ribeirinho, garantia de subsistência e da mobilidade dos segmentos de grupos. Os depoimentos dos moradores sobre o padrão de moradia no início do século desenham uma ocupação dispersa dos núcleos familiares pela vasta área dos lagos e igarapés. A concentração da população mura em aldeias, tal como se apresenta hoje, foi fato historicamente constituído por intervenção do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e data provavelmente das duas primeiras décadas do século XX.
A opção de moradia dos Mura junto aos lagos é um traço cultural tradicional, que também esteve condicionado a injunções históricas. Originalmente, estes exímios pescadores e navegadores do Madeira encontravam farta provisão nos lagos e furos, de onde provinha o abastecimento de peixes e tartarugas. Razões históricas (elencadas na seção Histórico do contato), que envolvem a escravidão e o extermínio, levaram os Mura a buscar refúgio e proteção nos lagos e igarapés distantes das grandes vias de comunicação fluvial, onde a colônia marcava presença cada vez mais ostensiva e opressiva frente aos nativos da região.
As aldeias mura contemporâneas caracterizam-se por um conjunto de habitações que não ultrapassa trinta unidades residenciais, dispostas nas terras altas ao longo dos lagos ou dos igarapés principais. A vida útil de uma aldeia mura é relativamente pequena: novos núcleos de povoação do território substituem as aldeias antigas, que são abandonadas até nova ocupação. Ao longo da vida, um indivíduo mura chega a construir mais de dez casas em um mesmo território de ocupação.
O tipo de casa utilizado pelos Mura pouco se difere do padrão das construções ribeirinhas da Amazônia: são casas de piso de terra batida ou assoalho de madeira, paredes de palha ou madeira e cobertura de palha. A cozinha fica deslocada do dormitório, e mantém um fogão a lenha, sempre ativo, potes de água e alguns poucos utensílios. As habitações, em geral, formam conjuntos segmentares que desenham unidades familiares em torno de um núcleo formado pelas mulheres mais velhas da aldeia.
O grau de proximidade e troca entre os moradores e as aldeias mura é determinado por afinidades baseadas no parentesco e na vida política. Os arranjos políticos envolvem na maioria das vezes acordos no aproveitamento dos recursos naturais de área mantida sob a influência das lideranças das aldeias principais. A mobilidade mura, deste modo, não deve ser confundida com o uso desregrado de uma territorialidade genérica e indeterminada.
Ao contrário do isolamento, os Mura estão envolvidos em amplas redes de relações multilocais que extrapolam os limites da aldeia e da Terra Indígena. Participam desta rede não apenas os moradores das comunidades mura, como também os parentes que vivem nos municípios da região, tais como Itacoatiara, Borba, Autazes e inclusive Manaus.
Atividades Produtivas
A economia dos Mura, embora orientada para subsistência, é marcada, em diferentes graus, por atividades de trabalho e comércio mais amplas: venda de farinha, participação nos empreendimentos realizados por barcos pesqueiros ou de ecoturismo, bem como extração de madeira e palha para a comercialização nas cidades. Tais atividades ocupam de forma variada a população das aldeias. Diferentes comunidades formam diferentes perfis econômicos, num gradiente que vai daquelas mais voltadas à atividade de extração e comercialização da madeira, àquelas mais voltadas às atividades agrícolas e comercialização das frutas regionais. De modo geral, as aldeias mura forneceram tripulantes para as embarcações ou pescadores para os barcos de pesca comercial e turismo ecológico.
Em sua história recente de contato com a sociedade nacional, os Mura protagonizaram o papel do trabalhador semi-escravo, que vende sua força de trabalho e a terra em troca de assistência à saúde e mercadorias manufaturadas, em uma série de ciclos econômicos que marcaram toda a Amazônia. O tipo de relação de trabalho que se impôs historicamente aos Mura, distante do assistencialismo e da tutela do governo federal e totalmente à mercê da exploração inescrupulosa dos patrões e regatões, passa, no final do século XX, a se reproduzir internamente nos relacionamentos que se dão entre as lideranças e as comunidades mura.
Na divisão do trabalho, os homens caçam pescam e abrem o terreno para as roças novas e para a ampliação das plantações. Crianças e mulheres abastecem de peixe as refeições diárias, que podem ser intercaladas por carne de caça eventualmente obtida pelos homens. Os meninos se iniciam muito cedo nas caçadas na TI Cunha-Sapucaia, acompanhando os pais nas trilhas de caça que são do domínio de cada família.
Nas comunidades mais voltadas para as atividades madeireiras, são os homens que penetram na mata em busca da madeira sendo, no entanto, auxiliados pelos jovens e crianças, que auxiliam de maneira geral as demais tarefas. As mulheres são responsáveis por cuidar das roças. Toda a comunidade participa da colheita de castanha-do-pará. Para a comercialização do excedente, seguem a divisão por unidades familiares.
Os Mura combinam atividades de naturezas diversas para garantir seu sustento. A base alimentar é o pescado, encontrado com facilidade nos igarapés e rios da região, que é consumido assado ou cozido com a farinha de mandioca, produzida por cada unidade familiar, em casas de farinha comunitárias (geralmente de propriedade de uma família extensa). Consomem ainda café, açúcar, arroz, macarrão, sal e bolachas, itens adquiridos na cidade. Também são adquiridos medicamentos, roupas, o combustível e ferramentas.
As roças mura, em geral, são replantadas em local diferente do anterior a cada dois ciclos de colheita. Os derivados de mandioca são amplamente consumidos durante o ano todo. As aldeias possuem ao menos um equipamento para a produção da farinha, embora o desejado seja que cada família extensa possua sua própria casa de farinha. Em suas roças, plantam diversos tipos de mandioca, bem como outras raízes e tubérculos que equilibram e completam com nutrientes necessários a sua dieta alimentar.
Os Mura são hábeis pescadores e caçadores. Apreciam os peixes - jaraqui, a traíra, o tucunaré, o matrinxã - e carnes de caça, tais como: anta, veado, porco caititu, macaco prego, guariba, jaboti, queixada, cotia, mutum e aracuã. Tais atividades são praticadas em moldes tradicionais, mas não deixam de fazer uso de tecnologias incorporadas dos regionais. A pesca é feita com flecha, zagaia e anzol. Na caça utilizam cachorros. Apenas alguns moradores possuem espingarda.
A coleta de variados tipos de castanha destaca-se como uma das principais atividades de todas as comunidades. São muito apreciadas e completam sua dieta alimentar, juntamente com as diversas frutas encontradas na região, tais como, açaí, amapá, babaçu, bacaba, buriti, piquiá, tucumã, uixi; bem como as frutas de casa plantadas nas proximidades das habitações, como abacate, abacaxi, acerola, banana, cacau, café, caju, cana, carambola, coco, cupuaçú, goiaba, jaca, jambo, jenipapo, jutaí, laranja, lima, limão, mamão, manga, maracujá, pupunha e melancia.
A atividade extrativa constitui uma prática tradicional dos Mura, que antecede e supera em importância a agricultura. Foi com a coleta e venda da castanha-do-pará que os Mura desenvolveram os mecanismos para lidar com o mercado de consumo. A experiência adquirida é empregada na venda da madeira, produto mais requerido pelo mercado local. Com decadência da era da castanha-do-pará, registrou-se o crescimento das atividades madeireiras e pastoris ao longo de toda a região.
Alegando uma baixa produtividade dos castanhais da região, os Mura vem gradativamente complementando sua oferta de castanha-do-pará ao mercado regional com outros produtos, dentre os quais a madeira é o que obtém aceitação certa e melhor preço. O extrativismo envolve uma série de agentes que participam da vida do grupo social e são elementos importantes para compreendermos a dinâmica destas sociedades. Tais mecanismos consistiam, antes da homologação das Terras Indígenas Mura, na aliança com um ou mais barcos de regatões, com os quais selavam pactos de exclusividade de comércio.
Fontes de informação
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