Toy Art Yudjá |
# | Nomes | Outros nomes ou grafias | Família linguística | Informações demográficas | |||||||||
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237 | Yudjá | Yuruna, Sanumá, Juruna, Yudja | Juruna |
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Há cerca de cem anos, este povo acha-se separado em dois grupos por uma enorme distância. Uma parte vive na região de ocupação muito antiga, o médio Xingu, na tão diminuta Terra Indígena Paquiçamba e adjacências não contempladas pelo reconhecimento oficial, bem como em Altamira (Pará). A outra parte vive no alto curso do mesmo rio, na área do Parque Indígena do Xingu (PIX) criado em 1961, no estado do Mato Grosso.
Este verbete enfoca basicamente o grupo do PIX que é um dos 14 povos que ali hoje habitam. Suas aldeias estão localizadas na parte norte da Terra Indígena, entre a BR 80 e o Posto Indígena Diauarum. Neste eixo, as terras da margem ocidental do Xingu pertencem ao município de Marcelândia, e as da margem oriental, a São José do Xingu. Tomando-se um critério lingüístico e em grande medida também cultural, os Yudjá ali possuem quatro aldeias, mas estas, segundo critérios etnopolíticos, poderiam ser reduzidas a uma única: Tubatuba, na foz do Manissauá-Missu. Por razões diplomáticas e em certos contextos, as duas aldeias que se formaram por divisão de Tubatuba preferem definir-se como “fazendas” (Fazenda Novo Parque Samba e Fazenda Boa Vista), onde são criadas algumas cabeças de gado bovino. Já Pequizal é tida ora como uma aldeia kayabi, por ter membros deste povo, ora como uma aldeia yudjá devido à língua que ali se fala. Em censo de junho de 2001, os Yudjá somavam cerca de 270 pessoas.
Nome
O etnônimo Juruna (Yuruna, Jurúna, Juruûna, Juruhuna, Geruna) é de origem estrangeira e parece significar “boca preta” em Língua Geral; teria sido motivado por uma tatuagem que, segundo consta em registros do século XVII, este povo usava quando o seu território no baixo Xingu foi invadido, alguns anos depois da fundação de Belém (1615). Sua autodenominação é Yudjá [Yudya; em escrita fonêmica: Iuja], entretanto Yuruna não apenas é usado como auto-referência como prevalecia antes da introdução de escolas nas aldeias, em meados dos anos 1990, quando vem passando a ser considerado incorreto.
Juruna ou Yudjá se diferem de soi outros homens, os Abi “Os Indígenas”, que em idioma juruna incluem todos os povos indígenas que nem são falantes do juruna, nem produtores de cauim e navegadores tradicionais da bacia do Xingu. e os Karaí “Os Brancos”, homens brancos e demais humanos.
Nome
O etnônimo Juruna (Yuruna, Jurúna, Juruûna, Juruhuna, Geruna) é de origem estrangeira e parece significar “boca preta” em Língua Geral; teria sido motivado por uma tatuagem que, segundo consta em registros do século XVII, este povo usava quando o seu território no baixo Xingu foi invadido, alguns anos depois da fundação de Belém (1615). Sua autodenominação é Yudjá [Yudya; em escrita fonêmica: Iuja], entretanto Yuruna não apenas é usado como auto-referência como prevalecia antes da introdução de escolas nas aldeias, em meados dos anos 1990, quando vem passando a ser considerado incorreto.
Juruna ou Yudjá se diferem de soi outros homens, os Abi “Os Indígenas”, que em idioma juruna incluem todos os povos indígenas que nem são falantes do juruna, nem produtores de cauim e navegadores tradicionais da bacia do Xingu. e os Karaí “Os Brancos”, homens brancos e demais humanos.
Liderança Sanumá com a bíblia |
Os Yudjá são retratados em sua mitologia como a humanidade prototípica, isto é, canoeira e produtora de cauim; os Abi provêm dos Yudjá que se perderam nas matas após o dilúvio e se tornaram Selvagens (imama: Outros, bravios, caçadores nômades, não-canibais, não-produtores de cauim). Já os Karaí provêm de guerreiros que, após provocarem a separação entre os Yudjá e seu Criador, negando-lhe carne de Abi, fizeram contra ele uma perseguição que o motivou a virar sua fala pelo avesso (daí derivando o português) e dar-lhes um curral de gado para torná-los sedentários.
Embora não se possa analisar o significado do etnônimo Yudjá, os Juruna se consideram como tal por serem ninguém menos que “os donos do rio Xingu”.
Língua
Os Yudjá falam uma língua do tronco tupi classificada na família linguística Juruna, que também incluía as línguas já extintas dos povos Arupaia, Xipaia, Peapaia e Aoku (não-identificado), além dos Maritsawá. No que tange à cultura, eles aproximam-se sensivelmente de povos que falam línguas da família tupi-guarani. Sua tradição oral menciona uma substituição de palavras da língua juruna por aquela do povo Shadí (não-identificado). Nimuendajú considerava as línguas juruna (só mais tarde assim classificadas) como um tupi impuro, que teria sofrido a influência de línguas arawak e caribe (sem contar os empréstimos de vocábulos da Língua Geral).
Nem todos os homens com mais de 50 anos dominam o português e talvez apenas a metade das mulheres adultas tenha dele uma compreensão razoável. Não é improvável que algumas possam fazer uso dessa língua, mas em quase dois anos de convivência jamais o fizeram na presença da autora deste verbete. Os meninos começam a falar português na puberdade. Com a introdução de escolas tidas como bilíngües nas aldeias, é permitido presumir que a timidez feminina será quebrada em breve, promovendo talvez uma reordenação das relações de gênero e, principalmente, das formas de comunicação (atualmente muito reduzidas) entre as mulheres Yudjá e as dos demais povos indígenas.
Em 1989, o grupo Yudjá da TI Paquiçamba do médio Xingu contava com um único membro capaz de comunicar-se em juruna. Em idos dos anos 1970, apenas uma mulher era falante da língua do outro único povo da família juruna que pôde chegar ao século XX, os Xipaia. Motivada pela morte de sua língua, ela fez ao capitão Juruna do alto Xingu, em Altamira, um presente de nomes próprios.
História e população
Imagine um povo cuja população soma 2.000 em 1842; 200 em 1884; 150 em 1896; 52 em 1916 (dados tomados de, respectivamente, Adalberto, Steinen, Coudreau e Nimuendajú). Foi em meio a esta terrível experiência que uma parte dos Yudjá fugiu para o alto curso do rio. Escrita em 1920 por Nimuendajú, uma carta para o diretor do Serviço de Proteção aos Índios registra o seguinte:
Os Juruna, antigamente a tribo mais importante do Xingu, sofreu todo o peso do avanço dos seringueiros. Especialmente o pessoal do Crl. [Coronel] Tancredo Martins Jorge, na boca do rio Fresco cometeu, do assassinato para baixo, toda sorte de crimes contra estes pobres, até que eles se revoltaram e fugiram, chefiados pelo seu Tuxáua Máma, para além das fronteiras do Mato Grosso, onde se estabeleceram numa ilha acima da Cachoeira de Martius. Lá os encontrou Fontoura quando em comissão da Defesa da Borracha desceu o Xingu do Mato Grosso em 1913 (?). Em seguida os Yudjá fizeram as pazes com o seringueiro Major Constantino Viana, da Pedra Seca, que com eles tripulou as suas embarcações em 1916 e desceu a Altamira onde em poucos dias morreram 11 dos Yudjá. Quando os sobreviventes voltaram com esta notícia o velho Máma fugiu com o resto novamente rio acima, e ninguém sabe hoje do paradeiro deste bando que se comp[unha] de umas 40 cabeças. Um outro bandozinho, a família do Tuxáua Muratú, umas 12 pessoas, conservou-se, protegido pelas terríveis cachoeiras da ‘Volta’ do Xingu, no Salto Jurucuá, pouco abaixo da boca do Pacajá”.
Pior sorte tiveram outros povos ribeirinhos do médio Xingu, vizinhos e relacionados com os Yudjá por sua língua e/ou civilização, como os Peapaia, Arupaia e Takunyapé (este, da família tupi-guarani) inteiramente dizimados nesta onda de genocídio promovida pela invasão do médio Xingu pelos seringalistas na segunda metade do século XIX.
E esta não foi a primeira vez que as terras dos Yudjá e seus vizinhos foram invadidas; como já foi dito, a sua história está ligada à nossa desde a fundação de Belém. Em meados do século XVIII, o resultado mais evidente dos primeiros cem anos de uma história marcada por aprisionamento, escravização, guerra e redução era o “abandono” de todo o baixo Xingu pelos indígenas. De acordo com Nimuendajú, pode-se presumir que os Yudjá fugiram para montante, enquanto um povo tupi-guarani, os Waiãpi, seus vizinhos das margens do Xingu, atravessaram o Amazonas e partiram rumo ao Oiapoque.
A hipótese desses deslocamentos progressivos em função das invasões, embora consistente, como denota o Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú (IBGE, 1981), não deve servir para subestimar a provável onda de genocídio que afetou os povos do baixo Xingu no século XVII. Se uma diferença importante existe entre os acontecimentos daquele período e a experiência da virada do século XX, é que nesta última não havia mais meios de reunir 30 canoas para a comemoração de uma vitória sobre “expedições”, como ocorrera com a de Gonçalo Pais de Araújo e seus aliciados Kuruáya, derrotados, em 1686, pelos Yudjá e seus aliados Takunyapé.
No início dos anos 1950 morreu entre os Yudjá no alto Xingu o último membro do povo Takunyapé. As pessoas lembram-se de sua emoção ao ouvir a fala de membros do povo Kayabi recém-chegados. Mas, quanta decepção! A língua podia lembrar, mas não era a sua, aqueles não eram realmente os Takunyapé.
Homens com chapéus improvisados para um canto de cauinagemTânia Stolze Lima Aldeia de Tubatuba - 2011 |
A história oral dos Yudjá, aparentemente, não dá lugar nem a sua ocupação do baixo Xingu nem a sua última tragédia demográfica. Atribuindo a extinção dos povos Takunyapé, Arupaia e Peapaia à sua própria ação guerreira e aos seus inimigos memoráveis, os Txukahamãe, afirmam que o território original estendia-se por toda a região da Volta Grande do Xingu (isto é, a grande curva do rio onde está situada Altamira) até a desembocadura do rio Fresco. Seus antepassados abandonaram-no fugindo para montante, antes de os Brancos ali chegarem, por terem tirado a vida do capitão que chefiava as três aldeias do grupo então existentes. Teria sido na boca do Rio Fresco que conheceram os Karaí, vindo a associar-se mais tarde a Constantino Viana, dono de seringais situados bem a montante, em Pedra Seca. O medo da represália pela morte de uma vaca provocada pelo caldo de mandioca das mulheres Yudjá levou-os a fugir para montante, para “a última cachoeira do Xingu” (Cachoeira Von Martius).
Contudo, sua mitologia não fecha os olhos para o genocídio. Dos três céus que formavam com a terra um cosmos dotado de quatro andares, já caíram dois e periga cair o último, derrubados por Selã’ã em represália ao extermínio dos povos indígenas do rio Xingu. Segundo um mito, “Selã’ã ficou furioso e derrubou o céu, queria exterminar os Brancos.O rio havia desaparecido. Foi no tempo em que os Yudjá foram extintos, estavam à beira da extinção, e quando Selã’ã tentou avistar o rio,não havia mais rio, e ele ficou furioso e derrubou o céu (…). O sol apagou, tudo ficou escuro. Os Juruna ficaram apreensivos, os poucos Juruna sobreviventes. (…) Os que se abrigaram ao pé de um grande rochedo, somente eles se salvaram; os que se encontravam alhures morreram, todos os Brancos, os Brancos todos morreram, os Índios morreram, os Juruna morreram. Os que estavam abrigados sob um rochedo escavaram o céu espesso com um pedaço de pau (…) Os sobreviventes reproduziram-se. Selã’ã disse [a um Juruna, no passado recente]: ‘É assim que hei de fazer: quando os Índios desaparecerem, quando os Índios desaparecerem das ilhas, eu desmoronarei o céu, o último céu’”.
Para permanecer no alto Xingu, os Yudjá tiveram de travar alguns conflitos sangrentos com os povos da região, especialmente os Kamayurá e os Suyá, que culminaram em dois episódios dignos de nota na memória do grupo. Durante um período, os Yudjá perderam totalmente sua autonomia política: os guerreiros foram massacrados e as demais pessoas tornaram-se prisioneiras dos Suyá (sendo algumas delas roubadas mais tarde pelos Kamayurá). Por fim, um velho fugiu para ir buscar em Pedra Seca o auxílio de Constantino Viana e seus homens, resultando disso um massacre para os Suyá e a recuperação da independência pelos Yudjá, que assim puderam estabelecer uma aldeia própria com unicamente quatro homens, umas dez mulheres e quase nenhuma criança. Alguns anos mais tarde, em 1950, logo após as relações de paz impostas pela Expedição Roncador-Xingu que ali entrara havia uns dois anos, a população Yudjá estava reduzida a 37 pessoas.
Viviam então em duas aldeias, voltando a se reunir em uma única em 1967. Um conflito entre o fim dos 70 e o início dos 80 provocou uma divisão do grupo que então contava com 18 homens adultos. Em 1984 suas aldeias (Saúva e Tubatuba) contavam cada uma respectivamente com 7 e 13 famílias, somando uma população total de 80 pessoas. Um conflito com os Txukahamãe motivou os Yudjá a se reunirem em Tubatuba no mês de outubro de 1988. Em agosto de 1990, as 27 famílias desta aldeia somavam 121 pessoas. A última divisão ocorreu em 1996, mas os dois conjuntos de famílias que saíram Tubatuba rotulam suas aldeias de fazendas.
O censo apresentado no quadro abaixo diz respeito ao mês de junho de 2001 e inclui cônjuges que são membros dos povos Kayabi, Txukahamãe e Ikpeng, mas não inclui membros (e descendentes) do povo Yudjá incorporados pelo grupo de seus cônjuges (os Suyá). Os jovens solteiros que residem no Diauarum foram incluídos no censo de Tubatuba, a que se sentem ligados através da família.
LOCAL | FAMÍLIAS | POPULAÇÃO |
Tubatuba | 27 | 162 |
Fazenda Boa Vista | 2 | 9 |
Fazenda Novo Parque Samba | 6 | 34 |
Pequizal | 6 | 35 |
Piaraçu | 3 | 17 |
PI Diauarum | 4 | 19 |
Total | 48 | 278 |
Os Juruna da Volta Grande do Xingu, numa carta de 1920, Nimuendajú escrevia o seguinte:
Os Juruna, antigamente a tribo mais importante do Xingu, sofreu todo o peso do avanço dos seringueiros. Especialmente o pessoal do Crl. [Coronel] Tancredo Martins Jorge, na boca do rio Fresco, cometeu, do assassinato para baixo, toda sorte de crimes contra estes pobres, até que eles se revoltaram e fugiram”
Depois de algumas mudanças rio acima e rio abaixo, os Juruna se dividiram em dois grupos: cerca de 40 pessoas rumaram rio acima, encontrando-se hoje no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Um grupo pequeno, a família do Tuxáua Muratú, cerca de 12 pessoas, permaneceu próximo à cachoeira do Jericoá, dando origem ao grupo que até hoje habita a região do Médio Xingu.
Estes indígenas estão espalhados em Altamira, nos beiradões do Xingu (especialmente na Volta Grande) e na Terra Indígena Paquiçamba, em três aldeias: Paquiçamba, Muratu e Furo Seco. Há também uma aldeia no quilômetro 17 da estrada entre Altamira e Vitória do Xingu.
Os Juruna são habitantes tradicionais das ilhas do rio Xingu situadas entre a Volta Grande e o rio Fresco. Essas ilhas e as margens do rio eram território de uma civilização canoeira que incluía os Xipaia, mas também outros povos que desapareceram desde que os brancos, há algumas centenas de anos, começaram a chegar na região.
Com a progressiva urbanização da região, intensificada a cada ciclo econômico e fortemente pressionada pela construção da rodovia Transamazônica, os Juruna do médio Xingu absorveram em sua cultura diversos itens típicos da sociedade branca: a língua portuguesa, a televisão, as roupas e os celulares. Casaram-se, durante muitas décadas, com beiradeiros e com indígenas de outras etnias. Acompanharam as diferentes atividades econômicas que se sucederam e conviveram com as diversas levas de migrantes que vieram se instalando em seu território. E mantiveram, em meio a esse dinamismo de culturas, seus conhecimentos tradicionais sobre a pesca e a floresta, e uma forte relação com o rio Xingu e sua história.
Em contato com seus parentes do Parque indígena do Xingu que mantiveram sua língua e um modo de vida mais próximo dos antigos, os Juruna da região de Altamira têm relembrado seu idioma e práticas tradicionais, como cantos e danças.
Os Juruna guardam uma relação especial com o rio Xingu: são exímios navegantes e pescadores, empregando uma grande variedade de técnicas de pesca e detendo um conhecimento profundo da ecologia do rio. Pescadores atrevidos, mergulham sem medo em suas águas atrás de acaris ou tracajás.
O Xingu é essencial à vida dos Juruna: além de viverem principalmente da pesca, dependem do rio para se deslocar, pois participam de uma ampla rede de parentesco e amizades que inclui Altamira e toda a Volta Grande. O barramento imposto com a usina de Belo Monte põe seu modo de vida atual diretamente em risco, uma vez que se prevê o desvio da maior parte do fluxo do rio, trazendo uma seca permanente à Volta Grande. Tanto a pesca quanto a navegação estarão comprometidas no futuro.
Os Juruna têm resistido há séculos à invasão de seu território. Belo Monte é mais um episódio desta invasão: um episódio que trará mudanças drásticas nas condições ambientais da região, cujas consequências mal se podem vislumbrar.
Donos e grupos
A sociedade Yudjá é formada por grupos de parentelas bilaterais dispersos ao longo do rio e constituídos em torno de um “dono” ou capitão: aquele que reúne as características de mais-velho [se’uraha] e de afim [saha] da maioria dos homens maduros que são “donos” de grupos domésticos. Estes últimos são predominantemente fundados nas relações entre mãe e filhas e entre sogro e genros. [O léxico da língua Juruna distingue vários tipos de relações e/ou posições concernentes à figura do “dono” (iwa, ijifa, iju’a, iui’a, iu’a, i’uraha, awai).
A produção da vida social é regida basicamente por um princípio sociológico encarnado na figura de um “dono”, por cujo intermédio um conjunto de pessoas ligadas por relações de parentesco é transformado em um grupo plenamente político, tenha este a amplitude de um conjunto de aldeias formado por uma aldeia-mãe e as outras menores que dela derivam, ou a de um grupo doméstico ocupante de uma seção residencial (ou mesmo de uma única casa). Em um nível intermédio, o da aldeia, a unidade desta pode ser exprimida espacialmente em uma Casa do Cauim, idealmente construída pelo dono da aldeia (mas uma casa velha pode ser para isso aproveitada), e que funciona como uma cozinha coletiva para o trabalho feminino de processamento dos produtos da roça e como salão para as cauinagens.
Existe ainda uma outra expressão da figura sociológica do dono que é igualmente importante. Trata-se de uma posição ocupada efemeramente por qualquer homem casado e/ou dono de roça que tome a iniciativa de promover uma atividade coletiva, como uma caçada, uma pescaria com timbó ou uma festa, ou mesmo a puxada de uma canoa nova desde a floresta até o porto. Oferecer uma cauinagem é o procedimento indispensável de todo homem que pretenda assumir-se como dono de uma atividade coletiva, tornando-se no mesmo golpe dono do grupo. Todo homem tem o direito de assumir essa posição, mas, na prática, antes de tornar-se sogro e, com isso, entrar na maturidade, muitos são suficientemente tímidos para não concretizar essa ambição.
Com base em observações efetuadas no período 1984-1994, pode-se afirmar que estas diferentes unidades sociais são determinadas muito mais como unidades de consumo que de produção. Existe um código culinário que articula diferentes categorias de alimentos às três unidades sociais básicas (a família, o grupo doméstico e a aldeia) e permite à aldeia Yudjá ter as refeições coletivas como uma prática cotidiana. Entretanto, em Tubatuba, nos anos de 1999 e 2001, essas refeições não tinham a mesma freqüência e o mesmo valor, em concomitância com uma carência relativa de canoas — um indicativo de mudança dos padrões de pesca — e a adoção, por parte de algumas famílias, do fogão a gás, louças individualizadas, arroz e macarrão.
Do conjunto de relações de parentesco, a afinidade destaca-se como tendo um cunho político fundamental. O método de classificação dessas relações adotado pelos Yudjá é talvez o mais difundido entres as sociedades índigenas amazônicas. Ele dá origem a um sistema de relações bipartido em consangüinidade e afinidade. O pai e o irmão do pai são classificados como consangüíneos, assim como a mãe e a irmã da mãe; já o irmão da mãe e a irmã do pai são classificados como afins. Coerentemente, os filhos do irmão do pai e os filhos da irmã da mãe (isto é, os primos paralelos) são parentes da mesma categoria que os irmãos, enquanto os filhos do tio materno e os da tia paterna (isto é, os primos cruzados) pertencem à categoria oposta. O casamento considerado ideal é aquele entre primos cruzados. Tendo isso por base, as mulheres Yudjá, p. ex., classificam como umãbïa os seus próprios filhos, aqueles de sua irmã, aqueles da filha do irmão de seu pai e os da filha da irmã de sua mãe, e também os filhos de seu primo cruzado.
Sistemas deste tipo são rotulados nos dias de hoje como “dravidianos”. Todavia, cabe registrar que o sistema Yudjá apresenta as seguintes particularidades. Os filhos daqueles primos cruzados do mesmo sexo que não se tornaram efetivamente cunhados não são classificados como afins (‘sobrinho’ e ‘sobrinha’, isto é, genro e nora virtuais) mas sim como ‘filhos’. Do mesmo modo, para uma perspectiva masculina e unicamente para ela, os filhos de sobrinho ou sobrinha que não se tornaram efetivamente genro ou nora são classificados como ‘primos cruzados’. Para a perspectiva feminina, dá-se o seguinte: em função daquelas possibilidades de casamento não realizadas por sua mãe, uma mulher pode ter como ‘primo cruzado’ (cônjuge virtual) o tio materno de sua mãe; mas os filhos de seus próprios sobrinho(a)s serão em qualquer circunstância seus ‘netos’.
Cosmologia e xamanismo
Parte do saber cosmológico e da vida ritual depende de modo crucial dos xamãs, e não existem mais xamãs entre os Yudjá desde os anos 1980. Algumas pessoas tentaram, fazendo uso dos remédios apropriados, mas faltou-lhes coragem, desistiram com medo, como relatou o capitão em 1989: "Eu me defrontei com uma onça e não quis preparar [o remédio] arïpa de novo. Tive medo que acontecesse outra vez. Acho perigoso — a onça brincou comigo! Bebi apenas um pouquinho e tomei um único banho [do remédio]. Depois de alguns dias fui pescar, e a onça avançou em minha direção na hora em que flechei um tucunaré. Aproximou-se de mim e me mostrou os dentes, peguei o arco, tentei bater nela, mas correu. Eu não tinha flecha de caça; e minhas flechas de pesca, duas apenas, nem as tinha arrancado dos peixes ainda. Foi um perigo! Pensei que ia me pegar. Por isso peguei o arco e brandi, a onça recuou um pouco e ficou me fitando. Arranquei as flechas dos peixes, matei-os e disse à onça, venha de novo! Pretendia flechá-la, mas foi embora. É muito perigoso! Se fosse em sonho, tudo bem, se a onça me aparecesse dizendo que está brincando comigo, tudo bem. Mas não foi em sonho.”
Entre as razões prováveis deste esmorecimento, não se poderia subestimar nem a tragédia demográfica e sociológica provocada pelo ciclo da borracha, nem a incorporação das sociedades indígenas alto-xinguanas em meados do século XX pelo órgão do Estado nacional responsável pela assistência aos indígenas; nem, tampouco, o contexto político e cultural particular do PIX. Os Yudjá procuram os serviços terapêuticos de xamãs Kayabi, e, mais raramente, Kamayurá (quando se trata de desenfeitiçamento).
A partir de 1987, algumas pessoas, mulheres e homens, receberam de xamãs Kayabi o poder de curar, e vêm efetuando uma terapia xamânica simplificada. Sem terem passado por qualquer aprendizado mais formal do xamanismo Kayabi, sua prática alia a noção de um poder obtido junto a forças cósmicas estrangeiras a teorias próprias das doenças, das quais a mais importante afirma que elas derivam em última instância da ação humana: as forças despendidas pelas pessoas sobre as coisas são replicadas pelas (almas das) coisas no corpo das pessoas ou de parentes seus. Cabe ao xamã extrair tais doenças. Além de contar com esses curadores constituídos por poderes Kayabi, hoje em dia o xamã mais importante de Tubatuba é um homem Ikpeng.
Três são as coordenadas fundamentais da cosmologia Yudjá:
a) A oposição entre vida e morte, em primeiro lugar; ela está longe de ser uma dicotomia tão drástica como afirma a nossa cosmologia, pois há algumas transições cruciais engendradas pelo funcionamento dinâmico da máquina cosmológica, desde algo como pequenas mortes passageiras, provocadas pelo sono e cuja expressão mais típica são os sonhos, até mortes antecipadas. A relação entre vida e morte é menos de exclusão recíproca (se está morto, não pode estar vivo) que de inclusão: ele está morto aqui, mas vivo em outro lugar; aqui ainda está vivo mas já morreu no além. Em outras palavras, trata-se de uma relação de disjunção relativa, capaz de dar lugar a conjunções importantes. Os xamãs Yudjá eram os mestres dessas transições.
b) Em segundo lugar, os eixos do mundo são dados pelas oposições entre Rio e Floresta e Céu e Terra, cada uma articulada à oposição entre presença e ausência de antropofagia. O Rio e o Céu têm uma ligação positiva com a última. Dir-se-ia que todas as coisas que existem poderiam ser duplicadas a partir de tais oposições: os humanos (os povos do rio e os da floresta), os espíritos dos mortos (os dos grandes rochedos da beira do Xingu, que não gostam de carne de gente, e os do céu), os animais mamíferos (as espécies da floresta e seus correspondentes isãmï do fundo do rio), os Yudjá e seus correspondentes ãwã do fundo rio, os Abi da floresta e seus correspondentes ãwã dos locais sujos e sombrios da mata longínqua. Além disso, considera-se que todos os tipos de coisas existentes na terra, existem também no céu (este é uma terra parecida com a nossa). Já o rio, que não é para os Yudjá cópia da floresta, pode ser tido como uma cópia da terra por certos de seus habitantes, exceto que a floresta da terra deles é a nossa floresta de galeria, e as suas roças são terrenos desmoronados da beira do rio.
c) A terceira e última operação cosmológica fundamental repousa sobre a oposição entre o ponto de vista do sujeito humano vivo e desperto e pontos de vista alheios, como o de animais, animais-isãmï, ãwã, e finalmente o dos ’i’ãnay (os mortos). O dinamismo e a complexidade da cosmologia Yudjá dependem estreitamente do confronto, virtualmente perigoso, desses pontos de vista discordantes.
O xamanismo Yudjá desdobrava-se em dois sistemas relacionados cada um com uma sociedade de mortos. Considera-se rara a possibilidade de um xamã praticar os dois xamanismos: os mortos dos rochedos temem por demais os do céu, cuja sociedade é formada pelas almas dos guerreiros em torno do capitão e xamã Kumahari. Um pavor talvez ainda maior experimentam hoje os Yudjá por eles, e este xamanismo é incrivelmente mais poderoso, perigoso e difícil de se obter.
Cada sistema estava relacionado a um grande festival em honra de sua respectiva categoria de mortos. O dos mortos dos rochedos (’ï’ãna kariay ) desenvolvia-se ao som de música de flautas e cantos executados por eles próprios, soprados na boca do xamã. Aquele chamado duru karia (ou ’e’ãmï karia) desenvolvia-se ao som da música de um conjunto de trombetas (duru). Em sua festa, Kumahari e seus associados, à comida oferecida pelos Yudjá, preferiam comer a carne de Índio assada trazida do além; recusando também o cauim, diziam que já estavam bastante bêbados. Já os hóspedes provenientes dos rochedos, após a refeição, bebiam bastante, temperando o cauim das mulheres Yudjá com uma porção de cauim trazido do além. Ambos os festivais duravam em torno de um mês, e seu encerramento motivava a participação de diferentes aldeias. As últimas celebrações foram realizadas nos idos da década de 1970.
Nem por isso, contudo, da vida ritual dos Yudjá pode-se dizer que não é bastante intensa. Além de sua rotina ser interrompida por cauinagens a intervalos tão curtos como quatro ou cinco dias, celebram todo ano dois festivais (tendo cada um a duração aproximada de um mês).
Segundo a mitologia, de uma humanidade celeste, imortal (os alapa), provêm os cantos do festival das plantas cultivadas (koataha de abïa), controlado pelas mulheres. Aos ãwã produtores de cauim que vivem em aldeias localizadas no fundo do rio e lagoas, os Yudjá devem dois festivais de clarinetas (pïri), bem como os adornos corporais que servem de distintivos étnicos: a penugem de pato colada nos cabelos e o botão vermelho colado no alto da testa feito de almécega e fiapinhos de tecido vermelho picotado.
Nenhum desses três festivais tem, é certo, a mesma importância cosmológica dos rituais xamânicos, mas são dotados de grande valor social.
Mulheres Yudjá preparam cauim na aldeia Tubatuba |
Cauinagem
Receita de cauim - extrato de Um peixe olhou pra mim: o povo Yudjá e a perspectiva
de Tânia Stolze Lima
As pessoas Yudjá só bebem água em último caso, ainda assim, preferem não tomá-la pura: misturam-na com um pouco de farinha para dissolver a goma. As mulheres produzem diversas bebidas (awari), em sua maioria fermentadas (yakoha), e consideram-nas a principal fonte nutritiva. Essas últimas podem ser divididas em dois grupos: os cauins refrescantes, feitos em pequena quantidade 20 a 60 litros (nos anos 1980) - para matar a sede da família, e os cauins embriagantes (yakoha propriamente ditas), feitos para se beber ritualmente.
No primeiro grupo destaca-se um cauim da puba seca de mandioca, o yakupa, que se consome o ano inteiro, diariamente. Os outros são feitos em seu lugar e dependem da estação: cauim de inhame, cará, batata, macaxeira,' abóbora e, finalmente, milho verde (o qual pertence também ao segundo grupo).
A característica básica deste grupo é que a fermentação (além de baixa) é um fim subordinado à conservação. Todos estão prontos para o consumo no momento em que se acaba de prepará-los, quando então são definidos como "doce", e vão fermentando com o passar dos dias. As bebidas do segundo grupo são encabeçadas pelo cauim dubia, feito com a puba fresca da mandioca. E produzido o ano inteiro e sua receita é base de outros cauins embriagantes obtidos com a adição de segundo produto: a mandioca brava adocicada (o wawaru) ou o milho seco. No primeiro caso, tem-se o cauim t'aka: a massa já fermentada do cauim dubia é dissolvida em mingau quente de wawaru - é ele que poderia ser usado como veneno, deixando-se mal cozido o mingau. No segundo caso, tem-se o cauim awawia, que não cheguei a conhecer, ou o pawi, cujo processamento, embora apresente um simbolismo rico, não será estudado aqui, há ainda o kat'upa, cuja receita não se conheceria mais.
Cauinágem dos Yudjá |
Em 1990, o cauim de macaxeira teve sua receita transformada e passou a pertencer também ao grupo das bebidas embriagantes. A invenção da nova receita foi atribuída aos Kayabi, que teriam experimentado com sucesso acrescentar à receita yudjá uma 1 porção de batata crua ralada: o tempero do cauim dubia.
Pode-se também utilizar o milho seco. Porém, como o milho não é plantado em grande quantidade, a reserva de que se dispõe fora da estação é quase toda destinada ao plantio.
Excetuando-se a bebida principal deste grupo, o yakupa, a fermentação não é incrementada por batata crua; uma porção do mesmo produto com que se faz a bebida é mastigada e se usa apenas isto.
A receita do páwï é de longe a mais elaborada. Trata-se do mesmo dubia temperado na hora de servir com um cauim de milho seco cujo teor alcoólico é o mais alto de que tive notícia. Tomei-o apenas uma vez. O tempero foi processado em pequena quantidade (uns quarenta litros), cuidadosamente reservado na casa da produtora. A fermentação prosseguiu ao longo de uns dez dias e, enquanto isso, sobre um jirau alto forrado com folhas de unaha, foram mantidos ao tempo figuras feitas com uma massa do mesmo milho (torrado, pilado e peneirado) empregado no mingau. Eram inúmeras figuras de gente, onça, sapo, e do que mais as filhas da produtora quisessem, sem acrescentar, modeladas em quantidade por aquelas mulhe es que acompanham como auxiliares, o processamento do cauim. Essas figuras foram cozidas no mingau e retiradas para ser expostas ao tempo durante a fermentação do cauim de milho. Dias depois, quando o cauim dubia já estava fermentado, as figuras foram dissolvi- das no cauim de milho, que foi então esquentado ao fogo e derramado imediatamen- te na canoa de dubia. Wereade, a primeira pessoa que me falou do páwi, distinguiu as figuras humanas em masculina e feminina, e disse-me que seu tamanho era o de um bebê recém-nascido. Não percebi essa distinção quando participei da produção, e as figuras eram bem menores.
Não há uma palavra com o significado de cauinagem, mas , no conjunto formado pelos cauins embriagantes, distinguem-se a (simples) yakoha e a maritya, esta uma yakoha produzida em grande quantidade, capaz , por isso, de ensejar a cauinagem. Todo cauim embriagante é necessariamente feito em quantidade superior à das bebidas refrescantes O ideal é possuir panelas grandes e pequenas destinadas a cada grupo de bebidas, panelas que, de resto, jamais são utilizadas para cozinhar peixe ou carne. Em 1988 e em 1990, as panelas eram de 40 e 80 litros, além de uma canoa de 120 litros. Esta é coletiva, as panelas são de propriedade individual e quase todas as mulheres possuíam uma de cada ) fazer-se apenas 80 litros de yakoha, a quan- tidade mínima que se poderia fazer entretantó era esta. Fazia-se no mí- nimo uma canoa, ou duas panelas, ou uma canoa e uma panela (as quan tidades usuais de uma yakoha variando de 120 a 180 litros), enquanto para atingir o limiar de uma maritya era preciso uns 400 litros. Enquanto em 1984 -1985, em Tubatuba, 500 litros de bebida porcionavam uma cauinagem exemplar do ponto de vista dos anseios de uma população de 31 adultos; em 1990, com sua população adulta montando a 65 indivíduos, uma maritya significativa variava entre os 800 e os 1.000 litros… Com efeito, faz-se cauim para todo trabalho que não se pode fazer sozinho (ou que desperta o interesse coletivo, como a pesca com timbó), mas que poderia muito bem ser realizado no âmbito do grupo doméstico.
Em lugar de tomar o grupo doméstico como unidade autônoma, os Yudjá preferem comprometer toda a aldeia na tarefa de trabalhar para um homem. Ao mesmo tempo, todo homem é comprometido com a alimentação da aldeia, dando freqüentemente refeições coletivas ou distribuindo por intermédio da esposa carne ou peixe cozidos entre todas as famílias conjugais.
A prática das refeições coletivas e distribuição de alimentos preparados não apresen- ta de modo algum um caráter meramente celebratório da reciprocidade, como nos pareceria caso a circunstáncia fosse a de dar um pouco de comida a cada um e rece- ber dos outros também uma porção. Não é assim. Geralmente a maioria das pessoas só dispõe dos alimentos recebidos. A prática realmente define a dieta dos Yudjá, permitindo que a pesca não seja uma atividade cotidiana do ponto de vista individual.
O trabalho coletivo não responde entretanto pela freqüência quase vertiginosa com que as pessoas bebem, mesmo por- que os trabalhos coletivos não são freqüentes. Também se faz cauim sem outro motivo que o de se viver. Dou o calendário de um mês da estação seca, em 1990, representativo do que ocorria normalmente enm meus períodos de campo.
10 de junho: cauinagem noturna;
12 de junho: cauinagem diurna;
19 de junho: cauinagem diurna que segue até por volta da meia-noite;
22 de junho: cauim durante o dia;
24 de junho: cauim durante o dia;
27 de junho: cauim durante o dia;
30 de junho: cauinagem o dia inteiro e a noite inteira;
1° de julho: a mesma cauinagem prossegue até o fim da tarde, e todas as mulheres vão bêbadas à roça coletiva colher mandioca para fazer "o substituto" (mais cauim);
6 de julho: cauinagem diurna que se interrompe por volta da meia- noite; o dono do cauim e homens jovens fazem a vigilia (o cauim não pode ficar só);
7 de julho: a cauinagem prossegue até o começo da garde.
Se há cauim para tudo, se a curtos intervalos há cauinagens que tomam dia e noite, é claro que, ao lado de seus momentos lúdicos e rituais, a cauinagem absorve a vida cotidiana dos Yudjá. É ocasião de arrumar nome para as crianças; casamento para uma filha, irma ou so- brinha; namorada, noiva, casar-se; decidir viagem, localização das roças, caçadas, decidir o que é ou pode vir a ser de interesse coletivo.
É palco para uma multiplicidade de gestos e palavras que celebram comportamentos tidos por muito antigos, como, por exemplo e sobretudo, a dramatização do amor ao cauim. A cauinagem exprime também uma modalidade da relação que os Yudjá têm com a sua cultura, um certo estilo de socialidade, e responde pela admiração que podemos ter por eles, como senhores de experimentos sociais extremos que não rom- pem a sociedade.
É a ocasião ideal para se perceber o modo singular como a sociedade se relaciona consigo mesma, como que se transformando num laboratório de experiências sociais e políticas que desencadeiam tanto os processos da vida individual e coletiva como a em estética. Encontra-se aí um mecanismo que liga o momento presente, por um lado, com o futuro próximo e, por outro, com o passado, do qual se pretende tirar sentido para as coisas e a vida.
Um sentido que aponta para a pobreza relativa do presente, já que a forma como pintam o passado o faz parecer tão exuberante que, por exemplo, a longa pena de vermelha que um homem bêbado enfia nas orelhas para ficar bonito faz lembrar que outrora os antigos usavam os dentes incisivos superiores tomados de um abi. Por outro lado, o que a cauinagem proporciona acaba sendo exuberância, e os projetos que motiva são demasiado extravagantes para que sejam realizados tais quais.
Retomemos a distinção introduzida acima entre yakoha (cauim pequeno) e maritya. É bastante comum a ocorrência de cauinagens em que se consomem várias yakoha, porém estas não se somam em uma marit'a; permanecem sendo duas, três ou dez, pouco importando que a quantidade total supere em muito uma marit'a. Várias yakoha são quantidades definitivamente heterogêneas em função de pertencem a donos diferentes. A distinção é relativa ao acontecimento que o casal pro move para o grupo, à ritualização da abertura do cauim. Acionando a mesma semiótica que envolve a produção de seus filhos e de si mes- mas, as mulheres fazem que as duas quantidades - pouco e muito da mesma receita sejam dois cauins qualitativamente diferentes. À exceção da menstruação,' os cuidados que garantem o sucesso da fermentação são relativamente dispensáveis quando se está produzindo uma quantidade pequena.
Estudaremos a receita dos dois cauins básicos e suas inter-relações.
O primeiro fato digno de nota é que a produção do yakupa, cauim refrescante, é subordinada à produção do dubia. Mesmo que a relação seja frouxa, o yakupa é um subproduto do dubia. A mandipca é posta a pubar (em canoas de navegação ou em cercados na beira do rio) até o ponto em que se torna pastosa, momento em que é absolutamente ne- cessário interromper o processo da puba. A continuação azedaria a man- dioca e o pressuposto básico é que mandioca azeda não dá cauim embriagante. A receita que Xidudu teve a gentileza de me recitar para que eu gravasse indica o seguinte: o processo da puba, que é preciso, aliás, "vigiar", apresenta três fases consecutivas: a "fermentação", que leva ao "amadurecimento", e evolui para o "azedamento" (ou "apodre- cimento"). O processo deve ser interrompido no momento em que a mandioca está ao mesmo tempo "madura" e "insípida", quer dizer, não azeda. Ela indica também que se "extrai o intestino" imi'u 'e' 'e' a da mandioca madura - (Diz-se o mesmo da vingança que a chuva pode mover contra uma pessoa: um raio abre-lhe uma fenda na barriga pela qual a tripa sai para "comer" a sujeira do chão; e também, naturalmente, da ação de cortar a caça para extrair as visceras) e se põe para secar (em jiraus de pelo menos 1,50 m de altura, construídos para este fim ao ar livre, ou em canoas velhas suspensas, ao lado das casas). O intestino é a fibra principal da raiz. Dificilmente se poderia compreender por que as mulheres preservam esta fibra, que é na verdade irredutível a suas técnicas de processamento, não fosse um aspecto que aponta para uma relação de co-substância entre os dois cauins básicos.
Dá-se o seguinte: a mandioca não "amadurece" por igual; tanto uma pequena parte permanece dura, como nas raízes moles há geralmente partes duras que ficam presas à fibra principal e, por vezes, à entrecasca. A entrecasca absolutamente isenta de massa é jogada ao ri, aquela que contém massa é preservada. O intestino é preservado como o termo simbólico dominante dos fragmentos duros que não se conseguem des- manchar com as mãos para se obter a massa pastosa da puba fresca, destinada ao cauim embriagante. Os fragmentos (acrescidos de outros que se descobrem mais tarde durante a transformação da puba fresca em farinha) são secados ao sol por alguns dias, e esta puba seca é então socada em pilão, dissolvida em água, peneirada e cozida. Para liquefazer o mingau grosso e escuro que resulta do cozimento, acrescenta-se uma porção de batata crua ralada e mastigada - (Pelo sabor, eu tinha a impressão de que esse cauim, após vários dias de fermentação, parecia atingir um teor alcoólico bem mais acentuado do que o de puba fresca, o que os Yudjá ora aceitavam como uma possibilidade, ora negavam enfaticamente. Minha impressão, porém, era confirmada por um Kayabi, que hle assegurou que em grande quantidade ele embriagava, sim. O problema me interessava particularmente: o sabor do yakupa é especialmente delicado, apesar de exótico, delicioso mesmo; é um cauim tão leve que me fazia sonhar com uma cauinagem em que se bebesse apenas ele.
O cauim cujo consumo serve de fundamento para a socialidade ri- tual é produzido estritamente pelas mulheres, a partir da mandioca, produto que é (nesse contexto) atribuído aos homens, ainda que efeti- vamente as mulheres tenham um papel muito ativo no plantio. Assimo cauim tem por donos uma mulher e um homem, o seu marido.
Nota sobre as fontes
Estudos antropológicos sobre este povo foram efetuados por Adélia Engrácia de Oliveira em meados dos anos de 1960 e pela autora deste verbete, nos períodos 1984-1985, 1988-1990 e a partir de 1999. A tese de doutorado da primeira acha-se publicada desde 1970, mas permanecem inéditas a dissertação de mestrado e a tese de doutorado da segunda. Os campos etnográficos cobertos por esses estudos são praticamente os mesmos (organização social, parentesco, mitologia e cosmologia) exceto que Tânia Lima, além de basear sua investigação em uma compreensão razoável da língua indígena, oferece uma visada etnográfica mais extensa e profunda. Artigos desta autora versando sobre as noções cosmológicas dos Yudjá têm sido publicados em revistas especializadas. A língua juruna vem sendo estudada pela lingüista Cristina Martins Fargetti. Ela realizou o vídeo Sãluahã sobre a festa da reclusão de duas moças. Sobre o grupo juruna do médio Xingu, foram publicados artigos de Lúcia M. M. de Andrade e Eduardo Viveiros de Castro no volume As Hidrelétricas do Xingu e os Povos Indígenas (Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1988).
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