só proteje quem ama - só ama quem conhece

só proteje quem ama - só ama quem conhece

terça-feira, 5 de maio de 2020

Cinta Larga

Toy Art Indio Cinta Larga

#NomesOutros nomes ou grafiasFamília linguísticaInformações demográficas
42Cinta LargaMatetamãeMondé
UF / PaísPopulaçãoFonte/Ano
MT/RO1758Siasi/Sesai 2012



Com a denominação "Cinta Larga" ou "Cinturão Largo", confundiam-se, de início, diversos grupos que habitavam a região próxima à fronteira entre Rondônia e Mato Grosso, uma vez que todos usavam algum tipo de cinto e construíam malocas grandes e compridas.
Carlos Cinta Larga, chefe dos guerreiros

Esse grupo Tupi tem na caça sua atividade central, e as festas, onde ela é consumida após complexo ritual, equacionam simbolicamente caça e guerra, revelando, em muito, aspectos da sociedade Cinta Larga e garantindo o equilíbrio do grupo. Equilíbrio este que nos últimos anos vem sendo profundamente abalado pela incidência de garimpeiros em suas terras.

Localização 

O nome Cinta Larga é um designativo genérico criado pelos regionais e adotado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), pelo fato do grupo vestir uma larga cinta de entrecasca de árvore em volta da cintura. Segundo as informações disponíveis, não é possível encontrar entre os Cinta Larga algo como uma auto-denominação, um termo geral para o conjunto do grupo - a não ser a alcunha "Cinta Larga", adotada por eles em sua convivência com a sociedade brasileira. Não é possível sustentar traduções apressadas, como às vezes se vê, de expressões genéricas como "nós" ou "nossa gente", que em língua Cinta Larga diz-se pãzérey (pã-, pron.pessoal, 1ª pss. plural; zét, gente, pessoa; -ey, plural). Os Cinta Larga são enfáticos ao dizerem: "A gente não chama, nome quem dá é os outros". Em outras palavras, parece ser preciso um Outro para nomear esse Nós, aquele que, sendo exterior, delimita e designa o seu contrário.
Território Indígena Cinta Larga

Localizado no sudoeste da Amazônia brasileira, compreendendo parte dos estados de Rondônia e Mato Grosso, o território tradicional desse grupo se estende a partir das imediações da margem esquerda do rio Juruena, junto ao rio Vermelho, até a altura das cabeceiras do rio Juina Mirim; das cabeceiras do Rio Aripuanã até o salto de Dardanelos; nas cabeceiras do rio Tenente Marques e Capitão Cardoso e as cercanias dos rios Eugênia, Amarelo, Amarelinho, Guariba, Branco do Aripuanã e Roosevelt. Habitam as terras indígenas  Roosevelt, Serra Morena, Parque Aripuanã e Aripuanã, todas homologadas, somando um total de 2,7 milhões de hectares.

A população está distribuída em três grandes agrupamentos. Bem ao sul, nas redondezas dos rios Tenente Marques e Eugênia, estão as aldeias do Paábiey (“os de cima”), ou Obiey (“das cabeceiras”). Próximos à confluência do Capitão Cardoso com o Roosevelt moram os Pabirey (“os do meio”). E, pouco mais ao norte, nos rios Vermelho, Amarelo e Branco, localizam-se os Paepiey (“os de baixo”). Os Cinta Larga pensam a sua distribuição espacial tomando como eixo a direção em que correm as águas dos rios Aripuanã e Roosevelt, que, neste trecho, seguem quase paralelos do sul ao norte. Para isso, empregam as categorias alto/médio/baixo, que regem um espaço orientado em declive, distinguindo os agrupamentos, uns em relação aos outros, de acordo com a posição geográfica que ocupam.

Para entender a distribuição atual da população Cinta Larga é preciso considerar que, ao lado dos códigos espaciais e ecológicos que fornecem termos para identificar os agrupamentos, as relações entre o grupo e a sociedade nacional, em particular a intervenção do Estado brasileiro, consolidou um sistema referencial bastante específico. Foi em meio a um intrincado jogo de pressões, omissões e principalmente concessões a interesses de ordem econômica e política que a Funai veio a definir, por volta de 1990, quatro terras indígenas contíguas dentro do território habitado pelos Cinta Larga. São elas: Parque Aripuanã. área Roosevelt, área Serra Morena e área Aripuanã. Em continuidade a estas terras estão as terras dos Suruí, Zoró e Arara do Beiradão; além destas, um estreito corredor separa o parque do Aripuanã das terras dos Salumã (Enawenê-Nawê) e Nambikwara do Campo.

 Língua e população

A Língua Cinta Larga pertence à família Tupi Mondé, tronco Tupi, assim como as de seus vizinhos Gavião, Suruí Paiter e Zoró.

Em 1969 a população Cinta Larga foi estimada em cerca de 2.000 pessoas. Em 1981 seu número não ultrapassava 500 indivíduos, numa estimativa otimista. A partir daí a população voltou a crescer, atingindo a casa dos 1.032 indivíduos em 2001 e, em 2003, estimava-se que este número fosse por volta de 1.300 indivíduos.

 Histórico do contato

Somente no século XX surgem informações precisas sobre os hoje chamados Cinta-Larga. Dois séculos antes, todavia, têm-se notícias do bandeirante Antônio Pires de Campos que, no ano de 1727, atravessou a chapada dos Parecis. Tendo atingido em sua viagem provavelmente o rio Juruena, fronteira oeste do que chamou “Reino dos Parecis”, deparou-se com a “Nação Cavihis” que, pela sua localização e pelos dados etnográficos que deles traz Pires Campos (1862), podem ser aproximados aos atuais Cinta-Larga.

A ocorrência mais remota que, com alguma certeza, faria referência aos Cinta Larga foi o encontro com a turma de exploração do rio Ananaz, da comissão Rondon, em maio de 1915 - atravessando, portanto, as terras do atual parque do Aripuanã. No começo da viagem a expedição avistou vários grupos Nambikwara, com os quais a comissão já estava em relações amistosas, mas depois, rio abaixo, próximo ao ribeirão dos Perdidos, seu acampamento foi atacado por índios de “nação desconhecida”, que mataram o chefe da turma, tenente Marques de Souza, e o canoeiro Tertuliano, enquanto os demais conseguiam fugir (A. B. de Magalhães 1941: 455). A comissão de Linhas Telegráficas, com a chegada dos sobreviventes a Manaus, procedeu a um inquérito, concluindo serem “Araras” os índios atacantes - denominação equívoca que, certamente, deve-se ao uso de várias penas de arara nos cocares e braçadeiras, como é costume dos Cinta Larga e outros Tupi-Mondé.

Durante o século XX diversos incidentes ocorreram marcando a história dos Cinta Larga: em 1928 um  bando de seringueiros chefiados por Julio Torres, sob as ordens do peruano Dom Alejandro Lopes, o seringalista que dominava o rio Aripuanã, massacrou uma aldeia de índios então chamados “Iamé”- yamên é uma forma usual de tratamento entre os Cinta Larga. O caso foi denunciado ao inspetor do SPI, Bento Martins de Lemos (SPI- Inspetoria do Amazonas e Acre 1929: 180-183), que procedeu a um inquérito, com poucos resultados. Os Cinta Larga que tinham suas aldeias na região  do Rio Branco e Guariba, ao norte do território, a atual terra indígena Aripuanã, estavam em guerra com os seringueiros desde a década de 1950, e data destes conflitos a aquisição dos primeiros instrumentos de metal. Se as ferramentas tornaram-se, desde então, o móvel principal da guerra; serão também elas, no discurso dos próprios Cinta Larga, que vão levá-los a buscar relações de reciprocidade com os Zarey, os não índios.
Homens Cinta Larga

Nessa mesma década de 50 começam a ser registrados os conflitos dos Cinta Larga com feitorias de seringueiros, comboios de garimpeiros e povoados que cresceram nas proximidades das estações telegráficas, em particular Vilhena, José Bonifácio (antiga Três Buritis) e Pimenta Bueno. Alguns grupos de Cinta Larga, migrando para o sul do território, haviam ocupado as cabeceiras dos rios Roosevelt e Tenente Marques, desalojando os Nambikwara remanescentes.

As invasões do território Cinta Larga continuaram ao longo dos anos 50 por firmas de mineração e seringalistas, e a situação se agravou ainda mais à partir da inauguração da rodovia Cuiabá-Porto Velho (BR-364), em 1960. Hostis aos invasores, os Cinta Larga representavam um empecilho à expansão destes empreendimentos, particularmente pelos afluentes Juruena e Aripuanã. Com isto, ganharam proporções alarmantes as operações destinadas a “limpar a área”, organizadas pela firma Arruda e Junqueira e outras, que vinham explorando seringais e pesquisando ouro e diamante na região.

Entre os inúmeros assaltos às aldeias Cinta Larga - havendo registros de expedições nos anos 1958, 1959, 1960 e 1962 -, um desses crimes ganhou ampla repercussão, inclusive na imprensa internacional, o chamado “Massacre do Paralelo 11”, gerando denúncias sobre a prática de genocídio de índios no Brasil, pois um dos participantes, Atayde Pereira dos Santos, não tendo recebido o pagamento prometido, compareceu à sede da inspetoria do SPI em Cuiabá para denunciar o caso e apontar seus mandantes (A.P.dos Santos 1963).

A década de 60 continuou em sucessivos conflitos com seringueiros. Em fins dessa década, os Cinta Larga mantinham talvez mais de 30 aldeias, geralmente situadas junto a pequenos córregos, segundo testemunharam sertanistas e missionários que sobrevoaram o território banhado pelos rios Roosevelt, Aripuanã e afluentes. Poucos anos depois, em 1976, um mapa elaborado pelo fotógrafo Jesco Von Puttkamer assinala com precisão 16 aldeias Cinta Larga e dois postos da Funai. Nos anos seguintes a depopulação e a atração que os postos da Funai exerceram, concentrando a população indígena, reduziu substancialmente o número total de aldeias. Na área Aripuanã, onde a Funai só veio a fixar-se em 1984, quando o garimpo Ouro Preto foi desativado, chegaram  a existir oito aldeias simultâneas, estabelecidas a distâncias que variavam de dez a cem quilômetros, sendo a população total da área de apenas 90 pessoas. Em 1987, contudo, metade já residia no posto Rio Preto, nome com que a Funai rebatizou o local do antigo garimpo, enquanto as demais se dividiam entre quatro aldeias restantes.

A pacificação: uma outra guerra

Uma visita dos Cinta Larga surpreendeu os moradores da vila de Vilhena (Ro) em fevereiro de 1965: desarmados, cerca de 60 “índios” acamparam nas proximidades da antiga estação telegráfica, trocaram presentes e assistiram a uma partida de futebol.

Segundo o padre Ângelo Spadari (1984: inf. pess), então pároco naquela vila, um rapaz chegou na casa do telegrafista aposentado Marciano Zonoecê, índio Paresi, e, tremendo, apertou a barriga por sinal de fome. O telegrafista trouxe farinha e açúcar, e logo os outros Cinta Larga aproximaram-se, em pequenos grupos - rapazes, um casal de velhos e uma moça. O destacamento da FAB, situado a seis quilômetros, foi avisado da chegada dos índios, e mandou um caminhão-caçamba com mantimentos, bugigangas e curiosos. Muito tranqüilos, os Cinta Larga permaneceram no posto até quase meia-noite, recolhendo-se aos poucos.

Em junho do mesmo ano, o comandante do destacamento da FAB, sargento Pereira, notificou vestígios deixados pelos Cinta Larga nas cabeceiras do Iquê, a poucos quilômetros de Vilhena, que presumiu andarem em excursões de caça (Arquivos do SPI: microfilme 236, planilha 505). Em maio de 1966, no entanto, uma nova visita à antiga estação telegráfica degenerou em conflito. No meio da tarde, cerca de 20 Cinta Larga, sendo apenas uma mulher, vieram aparentemente em “missão pacífica”, caminhando pelo picadão da linha telegráfica, e foram recebidos amistosamente pela família de Marciano, pelo boliviano Victor Garcia e por Anízio Ribeiro da Silva, apelidado “Parazão”, trabalhador do 5°  BEC - Batalhão de Engenharia e Construção. Mas um disparo acidental, de um caçador que vinha no caminhão do BEC para se confraternizar com os visitantes, provocou uma resposta repentina dos Cinta Larga, que flecharam mortalmente Parazão e seu cachorro, e feriram o boliviano Victorio e a filha de Marciano. Esta reagiu a tiros de espingarda e, com a chegada do caminhão, os Cinta Larga fugiram.

Nesse período, os garimpeiros chegavam às centenas, vasculhando a região atrás de diamantes, ouro e cassiterita, e os conflitos eclodiam dramáticos. Nos últimos anos da década de 60, as hostilidades se acirraram com casos de Cinta Larga flechando diversos regionais em mais de um episódio e, em outro momentos, sendo alvejados a tiros por seringueiros e outros habitantes da região.

Pensando tratar-se da mesma etnia que já freqüentava o posto Sete de Setembro, a Funai logo providenciou o afastamento dos garimpeiros e instalou o sub-posto Roosevelt, aproveitando a curta pista de pouso e os barracões construídos pelos garimpeiros. E assim deram continuidade aos contatos com os Cinta Larga. Em fins de 1971, porém, os Cinta Larga mataram os dois funcionários da Funai e incendiaram o acampamento. Na versão apresentada por Pichuvy, um garimpeiro compareceu a uma festa na aldeia, mas foi impedido de "namorar" uma das índias e teria passado veneno no pilão de fazer chicha, causando grande mortalidade. Na verdade, foi uma virulenta epidemia de gripe que dizimou a população de várias aldeias. Os sobreviventes pretenderam vingar-se, e atacaram o acampamento onde a Funai se instalara recentemente. Para os Cinta Larga esta seria a explicação mais plausível para uma doença tão letal, até então desconhecida. São freqüentes as acusações de envenenamento quando há mortes ou doenças, uma vez que tal técnica de agressão é muito usual.

Ao longo de sua história de contato, a relação entre os Cinta Larga e a sociedade nacional é bastante singular: todos os contatos amistosos foram estabelecidos por nítida iniciativa dos indígenas. Desta forma, poderíamos dizer que foram os Cinta Larga que pacificaram os “brancos”; feito inédito, em janeiro de 1974 a “pacificação”, partiu ostensivamente dos próprios Cinta Larga Quando narram a visita à cidade, com efeito, os Cinta Larga que participaram da aventura explicam que desejavam obter ferramentas - dabékara weribáte: os machados e terçados estavam acabando. E rememoram os momentos dramáticos da empreitada, que deu-se através de aproximações sucessivas. Observando a rota dos aviões que tornavam-se mais assíduos em Aripuanã desde o início do “Projeto Aripuanã” (o Núcleo pioneiro de Humboldt, da Universidade Federal de Mato Grosso), eles vieram para Paíkini. E hoje Paíkini designa para eles este acontecimento, vocábulo que os moradores de Aripuanã pensaram significar “amigo”. Os Cinta Larga queriam encontrar-se sim, e receber os desejados instrumentos de metal - alterando com isso, radicalmente a natureza que até então mantinham com os Zarey.

 Organização social

Os grupos Cinta Larga são Mân (com várias subdivisões), Kakín (com subdivisões) e Kabân (sem subdivisões). É provável que, anteriormente, houvesse maior nitidez na distribuição demográfica destas divisões: Os Kabân ao norte, na região dos rios Branco e Vermelho, os Mâmderey no meio, e os Mâmjiwáp nas cabeceiras dos rios Tenente Marques e Eugênia. Após a instalação dos postos da Funai foram feitos sucessivos remanejamentos mudando a ocupação espacial desses grupos.

A família é a unidade significante da organização social Cinta Larga: praticamente auto-suficiente e com grande liberdade para movimentar-se de uma aldeia para outra. Um homem, suas mulheres e os filhos desenvolvem as atividades complementares necessárias para a vida cotidiana. As aldeias maiores - cada aldeia possuía uma ou duas casas grandes -comportavam na área de Aripuanã de três a cinco famílias: o dono da casa, suas esposas, seus filhos casados ou solteiros, filhas solteiras e noras, talvez seus irmãos e famílias, às vezes suas filhas casadas e genros.
Mulheres Cinta Larga

Com efeito, a aldeia é assim constituída e reunida em torno de um homem de prestígio - zápiway, literalmente, "dono da casa". . A liderança que este homem exerce decorre, como ponto de partida, da sua disposição para tomar iniciativas, como construir uma nova casa, abrir uma roça, oferecer festas e, também, promover arranjos matrimoniais.

Fundada assim por um homem disposto a ter sua própria záp - o termo designa simultaneamente o local e a construção -, a aldeia se mantém enquanto perduram as condições ecológicas e políticas necessárias: abundância de caça, faixas de terras férteis nas proximidades, boas relações com as aldeias vizinhas. Arruinando-se estas condições,  as mudanças de local acontecem em intervalos de cinco anos ou pouco mais.

A relação de descendência entre pai e filho, portanto, parece oferecer a base para a coesão de uma aldeia Cinta-Larga - o que a distingue, ao que tudo indica, do modelo Zoró, onde a escolha residencial uxorilocal reúne, de partida, genro e sogro e afasta os filhos homens. No caso Cinta Larga, a escolha é evidentemente patrilocal, embora condicionada a injunções de natureza política. Costumam os filhos homens, com suas esposas e filhos, morarem juntos às vezes até a morte do pai, quando então se separam para fundarem suas próprias aldeias. Estas, porém mantêm uma relativa proximidade geográfica, em média de 10 a 15 quilômetros uma das outras, e seus membros costumam visitar-se com bastante freqüência, a passeio ou para outros intercâmbios.

Tradicionalmente, sobretudo antes dos contatos com a Funai, a aldeia cinta larga era constituída por uma ou duas casas que abrigavam uma linhagem patrilinear. Com a intensificação dos contatos com agentes da sociedade nacional, passaram a constituir aldeias com casas que abrigam uma família nuclear de diferentes linhagens.

Esse movimento de concentração e dispersão, ordenação e reordenação é regulado, em parte, pelas relações de parentesco (onde o “dono da casa” congrega um grupo de agnatos); ciclos ligados a caça e colheita; atritos e desavenças políticas; além do contato entre índios e sociedade nacional.

A situação após o contato com a Funai tornou ainda mais instável o equilíbrio das relações políticas, devido principalmente à aglutinação das casas de famílias nucleares em torno dos postos, juntamente com a difícil relação dos Cinta Larga com as cidades da região, e os invasores do território - como as madeireiras, garimpeiros e outros intrusos -, com os quais muitas vezes o grupo mantém relações de troca. Sendo assim, há algum tempo, a solução que muitos encontraram foi selar contratos com madeireiras e garimpeiros abrindo a área à extração de madeira, ouro e diamantes. Quando o grupo não alcança consenso interno nesses acordos comerciais, novas cisões ocorrem. Mas, mesmo quando o consenso é encontrado e o grupo como um todo concorda com tais empreendimentos, a dispersão prossegue. Sendo assim, o dinheiro obtido com as transações faz com que alguns jovens casados passem a manter casas em cidades da região, onde residem com uma esposa não-índia, visitando a aldeia de tempos em tempos. Em todas essas situações os valores que tradicionalmente sustentavam o prestígio das chefias tendem a se modificar.

Parentesco

Ainda que não despido de uma certa dose de competição, o relacionamento entre irmãos é marcado por expressiva solidariedade e familiaridade. E geralmente, um desses irmãos exercita uma certa ascendência sobre os demais, sendo reconhecido como zábiway da área.

A filiação às divisões é, por regra, estritamente patrilinear. Há indivíduos, ainda, a quem se atribui uma dupla filiação, alegando que dois homens, de divisões diferentes, participaram de sua concepção, porque ambos tiveram relações sexuais com sua mãe. São, como eles dizem, “misturados”. Assim uma pessoa poderia ser Kabân e Mâmgip ao mesmo tempo. A dupla filiação, entretanto, não se transmite aos seus filhos, os quais apenas carregarão a divisão preponderante do pai, traçada a partir do marido da mãe do pai, ficando obscurecida a filiação secundária que derivava de relações extra-conjugais. Isto é, um homem Kabân/Mâmgip “misturado” portanto, contribui todavia para o filho unicamente com a qualidade Kabân, que é a divisão do seu “pai verdadeiro” (zóp teré), marido de sua mãe.

Nominação

O sistema de nominação vem recortar um certo campo da vida social, centrado na esfera doméstica, consolidando laços de consagüinidade e de aliança. Para os Cinta Larga, diferentemente dos Suruí (Mindlin 1985) e dos Zoró, a nominação não formula modos de adereçamento, papel que cabe à terminologia de parentesco, às regras de etiqueta e, com destaque inusitado, aos apelidos. Em geral, os “nomes verdadeiros” são dados ao conhecimento apenas dos familiares próximos e das pessoas de sua confiança.  Signos da individualidade por um lado, índice de intimidade por outro, os “nomes verdadeiros” dos Cinta Larga são para guardar, e estão por isso afastados da vida diária, são os set teré  (“nome sigiloso”). No cotidiano, outras formas de identificação são usadas, representando também certos recortes da vida social, colocando em evidência algumas relações, alguns contextos.

Ao nascer, a criança recebe um primeiro nome: se menino, de seu kokó (tio materno) ou de seu kiña (avô ou avó paternos), se menina, de sua zobey (avô ou avó maternos). Destaca-se o objetivo individualizante dos nomes: traduzem uma característica ou alguma marca pessoal, física ou de comportamento. Por exemplo, Oy Páiáy (“dono do veneno”), Dáiéy Akára (“matador de civilizados”), Oy Pereá Tiri (“homem bom matador de bicho”), Poposãmpirakíra (“caçador de aves”), Jápã Goroey Aká (“muitas flechas para matar”) e o Oy Ãndát Kabira (“homem cabeça pequena”), são nomes de homens. E Zêgina (“fecunda”)  e Pãgópakóba (“a que aprende a falar”), de mulheres. Ao longo de sua infância, o pai ou o zábiway da aldeia - talvez, também outros parentes -, poderão atribuir um segundo ou um terceiro nome à criança, inspirados agora nas circunstâncias ou acontecimentos de sua vida. Dentre os nomes escolhidos, embora marcas de individualização, nada impede a ocorrência de homônimos.

Há outros indícios de que, no sistema Cinta Larga, o princípio da consangüinidade constitui um modelo privilegiado para expressar identidades sociais de ordens diversas, a exemplo das divisões patrilineares e dos grupos locais. Particularmente, a própria noção de parentesco é pensada pelos Cinta Larga enquanto consangüinidade, ou mais propriamente, germanidade (relação entre irmãos de mesmo pai e mesma mãe). Há duas formas de perguntar acerca da relação entre duas pessoas: Me ã te zá kayá ("Como você o chama ?"), que sublinha o sentido classificatório do parentesco, e Tet êzâno ("Ele é seu parente?"). A palavra zãno, aqui servindo de termo geral para parentesco, tem antes, num contexto mais preciso, o significado próprio de "irmão".

Para os Cinta Larga, a fertilidade não é uma qualidade inata das mulheres, mas deve-se à ação da divindade Gorá, que se introduz pela vagina das meninas, quando estas ainda engatinham. Já a paternidade é atribuída a todos aqueles homens que “ajudaram a fazer” a criança, isto é, que mantiveram relacionamento sexual com a mulher no curso de gestação. Com isto a mãe estará obrigada, no momento em que a criança estiver apta a compreender, a indicar-lhe os outros “pais” para que possa dirigir a eles o tratamento correto, píípa.

Casamento
As meninas costumam casar, pela primeira vez, entre oito e dez anos, sendo que a sogra - a observar-se a escolha preferencial de casamento, os sogros e os avós maternos, na perspectiva feminina, coincidem - encarregar-se-á de sua educação, tarefa diretamente ligada ao marido. Isso de dá devido ao casamento avuncular, realizado entre o tio materno e sua sobrinha, uma vez que nesse tipo de união, para a cônjuge, os sogros e os avós maternos são a mesma pessoa.

Passando a viver no grupo do marido (patrilocalidade), ela continuará, por alguns anos ainda, a brincar com as demais crianças, e somente assumirá responsabilidades domésticas (cozinhar, colher, tecer etc.) depois da primeira menstruação. Com a menarca (a primeira menstruação), ritualmente marcada por um período de reclusão, também virão as relações sexuais entre os cônjuges. É interessante notar que, sinal desta passagem para uma nova fase, marido e mulher usam pintar-se o corpo de genipapo: zigue-zagues, listras e pontos, no rosto, um padrão típico, formado por uma linha larga horizontal e pontos.

Por vezes, algumas meninas passam de um marido a outro, e em certos casos retornam aos pais, antes de consolidar-se um casamento mais estável - o que, freqüentemente, vai ocorrer com o nascimento do primeiro filho. Exemplo, uma mulher Kakin da área Aripuanã primeiro foi dada a um Kâban irmão de sua mãe (tio materno); este daí entregou-a a seu filho mais velho, mas, depois, ela veio a casar-se com um meio-irmão do primeiro, com quem teve filhos e permaneceu unida.

Por outro lado, são comuns casamentos de rapazes com mulheres mais velhas, viúvas ou esposas de parentes polígamos - seja porque suas irmãs ainda não tem filhas núbeis, seja por outros motivos, é raro a união de rapazes com meninas novas. Inexperientes e com pouco  prestígio, quando pensam em buscar esposas em outras aldeias ou áreas distantes, os rapazes recorrem sempre a um parente mais velho: o intermediário dirige-se ao pai, irmão ou marido da noiva, e entoa a “fala cerimonial” em favor do rapaz. Uma forma indireta, com as mesmas conseqüências, é o casamento com a ou uma das esposas do pai (com exceção da própria mãe), que, por vezes, dá-se como um reconhecimento, a contragosto, de uma situação de fato, a partir do envolvimento sexual do filho com a mesma.

Em seu sistema de alianças, o casamento avuncular (casamento da filha com o irmão da mãe) tem um lugar especial. Os Cinta Larga formulam a regra de maneira clara: “casamento bom”, dizem eles, é com a filha da irmã. “Com a filha de irmã meu eu casa”, é a lição do mito relatado por Pichuvy (Cinta Larga informante de João Dal Poz), no qual os irmãos foram convencidos pelo marido da irmã a esperar o nascimento da sobrinha, para com esta casar e morar.

Disse que o primeiro tinha mulher, três irmãos de mulher e outro índio marido de mulher. Índio tinha  vontade de transar com mulher. Marido dela falou:

— Vocês não podem transar essa mulher! Trata-se da irmã de vocês — falou assim — eu vou fazer suas mulheres! Quando minha filha nascer, aí vocês casam com ela... moram com ela.

Por isso que os Cinta Larga casam com a filha da irmã.”
Poligamia
A poligamia é largamente praticada pelos Cinta Larga, em arranjos variados. Em geral as esposas distanciam-se em idade, quando meninas adolescentes são incorporadas à família como segunda ou terceira esposa. É muito comum, por exemplo, um homem tomar em casamento a irmã mais nova de sua esposa, ou então uma irmã classificatória desta. Casar-se com uma viúva permite, às vezes receber também ao mesmo tempo, a filha desta como segunda esposa. Grosso modo, o número de esposas de um homem serviria como índice de prestígio, força política e, num certo sentido, riqueza - embora a poligamia não seja, entre os Cinta Larga, um apanágio exclusivo dos chefes ou “donos da casa”, zápiway, são eles os principais beneficiários.

A estratégia matrimonial contempla várias formas e alternativas para realizar-se. O relacionamento entre os sexos, a despeito destes fatos, longe está de um processo aleatório, ao contrário, é resultado do jogo de interesses e poder reservado aos homens. Como corolário, é o chamado “roubo de mulher”, isto é, o envolvimento e posterior fuga com alguém de uma outra comunidade, cinta larga ou não, sem o consentimento do pai, irmão ou marido, que vem transtornar a vida da comunidade, pois coloca em questão a autoridade masculina, e muitas vezes leva à guerra. As mulheres são, declaradamente, o pretexto ou pivô de quase todos os conflitos. Mas estes se resolvem enquanto “confrontos entre homens”, percebidos que são como disputas de interesses de grupos comandados por homens. E, neste sentido, “trocar mulheres” pode ser o início de uma convivência pacífica entre grupos, resolvendo pendências por meio de um processo baseado na reciprocidade.

Socialização

Sabe-se que o nascimento de uma criança inaugura um tempo forte, marcado, para o casal e a família: traz inúmeros riscos, exigindo cuidados de toda ordem. No caso Cinta Larga, a liminaridade explica-se porque está em questão a separação entre homens e animais. Período consagrado a moldar o ser social da criança, submetem-na a banhos de ervas, massagens e rezas, dão-lhe um nome e “conversam” constantemente com os recém-nascidos. Quanto ao resguardo alimentar, trata-se de equacionar uma relação unívoca, necessária para identificar a criança enquanto membro da sociedade.

O processo de formação dos indivíduos tem como direção dominante a constituição da personalidade independente, auto-suficiente. Até três ou quatro anos a criança é companheira inseparável da mãe. Quando já se movimenta e fala com desenvoltura junta-se a pequenos bandos que imitam os adultos na coleta de frutos, na captura de pequenos animais e peixes. O resultado é a formação de uma postura desenvolta e algo turbulenta, que mantém ativa a disposição de reagir a qualquer fato do seu desagrado. É no jovem por volta dos 16 anos que essa postura melhor se expressa. Destemido, o jovem Cinta Larga parece não aceitar limitação, imposição ou ordens de ninguém. Sabe pedir o que quer diretamente, sem rodeios, e nenhum é bajulador ou servil. Pouco a pouco meninas e meninos dominam as técnicas de trabalho relativas ao seu sexo, preparando-se para a vida pública.

O estilo de vida  caçador dos Cinta Larga pode ser visto na própria infância. Desde pequenos, os meninos andam por todo o lugar carregando seus arquinhos e flechinhas, quase sempre perseguindo calangos e borboletas. Maiores, passam a acompanhar seus pais nas caçadas, e na adolescência vão caçar com seus companheiros, colaborando aos poucos para a alimentação da família.

A partir dos sete anos submetem-se a perfuração do lábio inferior, onde passam a usar como adorno um pequeno bastão de resina de árvore. A menina entra em reclusão dentro de sua própria casa durante sua primeira menstruação. O menino, à medida que passa a ter sucesso nas caçadas que realiza em companhia de adultos e, antigamente, quando participava com sucesso de incursões guerreiras, passa a compor suas próprias canções que relatam seu êxito. Finalmente quando o homem se casa com a filha de sua irmã, fazendo o ingresso definitivo na vida adulta, a passagem é marcada pela cerimônia de entrega de presentes rituais (flechas ricamente adornadas) ao sogro, e pelo compromisso de cuidar e tratar bem da esposa que é recitado num diálogo discursivo que tem com o pai da noiva e os pais classificatórios da noiva.

 Ciclos de produção e produção de ciclos

Em traços gerais, a vida econômica dos Cinta Larga organiza-se segundo três eixos: divisão sexual do trabalho, oposição entre aldeia e floresta e alternância das estações.

No período das chuvas, concentram-se na aldeia; dispersam-se no estio. Na floresta, a predação; em casa, a transformação em comida e artesanato. Os homens, exímios caçadores; as mulheres, cozinheiras. A bem dizer, as linhas divisórias, na prática, não parecem tão exatas, e muitas mediações e versatilidade permeiam as tarefas cotidianas. Não é raro ver um homem rachando lenha se no jirau está a carne para moquear, mesmo que a mulher não tenha uma criança de colo para cuidar. Jamais, porém, um homem tece algodão ou faz chicha, nem uma mulher carrega arco e flecha para caçar.

Os Cinta Larga denominam o ciclo anual de gao, que num sentido estrito é a estação seca (julho-outubro). A estação chuvosa é zoy (janeiro-abril) - “chuva”, na tradução. Os períodos intermediários são chamados mãgábiká, “tempo da roça” (maio-junho) e gao weribá, “fim da seca”, ou “fim do ano”. As atividades econômicas e sociais distribuem-se desigualmente em relação as estes quatro tempos.

Pesca

Os Cinta Larga preparam flechas especiais (longas hastes de madeira, sem lâmina na ponta), para atirar em peixes, desde a margem do Igarapé. Hoje em dia, pescam também com linha de nylon e anzol. Embora praticadas ao longo do ano inteiro, é nos meses de novembro a janeiro, quando os rios voltam a encher e os peixes sobem seus cursos, que estas pescarias (borípey) dão melhores resultados, principalmente nos poços e corredeiras. Na área Aripuanã, ainda, pescam piranhas, e, no rio Branco, surubins durante a estação seca.

Ao invés de grandes rios, os Cinta Larga se situam nos pequenos igarapés, onde usufruem da variação ecológica dos meses de estio, com as correntes d’água minguadas e muitos poços onde os peixes refugiam-se. É quando saem para acampar e bater timbó.

Nestes acampamentos (gerep), nos meses de agosto e setembro, organizados por duas ou três famílias, vive-se o que parece ser o ideal de vida Cinta Larga: comida farta (peixe, mel e tudo mais que se pode encontrar), ordem temporária e precária, improvisação e liberdade de movimentos. É na floresta que os Cinta Larga se sentem bem: “Dormir no mato é bom”, confirmavam eles. À distância de poucas horas de caminhada, ali passam cerca de uma semana, antes de retornar à aldeia, dias depois, com uma nova carga de mandioca e cará, tomam um outro rumo, para um novo acampamento.

Para bater timbó escolhem certos locais propícios: grandes poços, água parada, muitos peixes. Itaká (“bater n’água”) ou bókobóko (vocábulo onomatopaico) é, em geral, uma atividade que exige a cooperação de vários homens. Primeiro cortam o cipó (dakáptapóa) e amarram em feixes; às vezes utilizam também cascas de uma árvore leitosa, acondicionadas em cestos de folhas de palmeira. Com cacetes, vão batê-los à montante, ocupando-se até meados da tarde. Os peixes começam então a virar, e são flechados ou pegos com a mão, mas é só no dia seguinte que as águas e as margens, por vezes ao longo de um quilômetro ou mais, estarão coalhadas de peixes mortos. Crianças, mulheres e homens, todos participam, recolhendo-os em fieiras. São daí assados em jiraus, os menores em “pacotes” feitos de folhas novas de babaçu.

Agricultura

Dedicam um tempo muito reduzido às práticas agrícolas, as quais, inclusive, são depreciadas frente à aventura da caça. Faz-se, assim, o estritamente necessário: derrubadas e queimadas pelos homens, mas plantadas com a ajuda das mulheres. As roças quase não recebem limpeza ou capina posterior, dificultando sobremaneira o trabalho da colheita, paulatinamente realizado pelas mulheres.

A agricultura é, por outro lado, responsabilidade dos homens casados: quem não tem mulher, normalmente não tem roça. A iniciativa e o esforço indicam o proprietário de uma roça, mas existe muita cooperação entre todos. Ainda que cada homem casado da aldeia tenha a sua, a roça de maior extensão é, em geral, a do zápiway, “o dono da casa”. É como se, em certa medida, a moradia e a roça fossem inerentes à função de chefia - e, veremos no item “festa”, que casa e comida estão entre os elementos ritualizados na festa. Vale lembrar que, para convidar parentes e aliados para festejar, é necessário abrir roças bem maiores que as habituais, obrigando os moradores da aldeia anfitriã a, no ano anterior, redobrar os esforços agrícolas.

Após escolher a área, o “dono da roça” começa a brocar a vegetação rasteira em fins de maio. Já nesta fase, como também para a derrubada das árvores maiores, que vai até julho, e para o plantio, que inicia em setembro, ele convida constantemente alguns homens disponíveis, casados e solteiros da aldeia, ou quem por lá esteja de visita, ou passagem.

O trabalho nos roçados, ao qual dedicam as manhãs e os fins de tarde, acontece de modo descontínuo, intercalado por caçadas, pescarias, acampamentos, viagens e dias de descanso.

O milho (mék) é o primeiro a ser plantado; depois aos poucos, variedades de mandioca (xíboy), cará (moñã) e inhame (mãkap) e um outro tubérculo feculento, marãjía, que se come cru e cujas sementes parecem feijões grandes. Hoje, plantam também arroz, feijão, mamão e banana.

Os Cinta Larga não plantam a chamada “mandioca brava”, ou sequer dispunham de um processo para fabricar farinha - alimento típico dos históricos Tupi do litoral e outros deste tronco lingüístico. Com isso, a possibilidade de armazenar alimentos é reduzida: a não ser as espigas de milho, que são estocadas em paiol na roça ou em feixes amarrados no teto da maloca, a colheita dos demais produtos agrícolas responde ao consumo doméstico. Colhem suas roças de maneira singular: os pés de mandioca, por exemplo, não são arrancados. As mulheres escavam com um pau apropriado e retiram apenas as raízes maiores, deixando as demais intactas.

Um dos principais resultados do cultivo das roças é a “chicha”, um alimento cotidiano: de mandioca, cará, milho ou batata-doce, tem a consistência de um mingau e é reputada por sua qualidade nutritiva, pois dizem, fortalece e “engorda” os consumidores. Nesta culinária tem-se ao menos uma receita mais elaborada: as mulheres cozinham os pedaços, socam, mastigam e acrescentam temperos - na época própria, o mel é quase sempre um dos ingredientes. Diferente da “makaloba” Suruí e da chicha Zoró, a dos Cinta Larga praticamente não sofre fermentação, sendo consumida na noite do mesmo dia e nos dias seguintes.

Caça

A caça é atividade que mais interessa ao Cinta Larga: a ela se dedicam assiduamente e é um dos assuntos preferidos na conversa entre os homens. Para seus fins, despendem inúmeras tardes em suas “oficinas”, pequenos acampamentos a cerca de duzentos metros da maloca, no frescor da floresta, onde sós ou em conjunto confeccionam arcos e flechas. Objetos preciosos, os caçadores tudo fazem para recuperar as flechas que dispararam, tomando precauções ao mirar ou trepando, no que são hábeis, nas mais altas árvores.

A caça é praticada ao longo do ano inteiro, porém o rendimento das expedições é variável, havendo um período bastante fraco - talvez devido ao ciclo de migração dos animais - no auge da estação seca  (agosto-setembro). Quase todos os animais – aves, mamíferos, peixes e répteis, mas apenas a jibóia entre as cobras - são aproveitados para alimentação. Os mais abatidos, certamente por numerosos, são variedades de macacos e aves, como jacu, jacutinga e mutum. Queixada, caitetu e anta, porém, são os mais apreciados. E a gordura é o principal indicativo para o paladar: quando alguém está limpando a presa, logo perguntam: Tét kamdák (“Está gordo?”).

A caça, de um modo geral, desenvolve-se em caminho habituais (bé), cada qual explorando uma região próxima à aldeia, atingindo um raio máximo de 15 quilômetros ao seu redor, que são periodicamente percorridos pelos caçadores.

Caçadas noturnas não eram praticadas tradicionalmente, porém a introdução de armas de fogo e lanternas vem alterando este padrão. Os Cinta Larga, por outro lado, são peritos em construir esconderijos (digit), como também “chamar” os animais, arremedando seu assovio ou grito, com perfeição. Ao fim do período chuvoso, costumam rastrear e asfixiar a paca e o tatu no buraco, abanando fumaça para o seu interior. E na estação seca, procuram o jacaré nos leitos dos córregos, arrancando-o de dentro das tocas onde se aloja.

A aventura da caça, todavia, não se reduz à sua tecnologia ou à coragem pessoal, antes supõe uma expressão mágica, uma simbologia onírica e uma dieta alimentar - são estas que denotam uma relação essencial entre os caçadores e animais, afeita à sua cosmologia. Verdadeira ética a guiar seus passos, obriga-os a uma cuidadosa preparação anterior ao encontro com a presa, através de um processo que assimila o caçador à sua caça.

Chegando da caçada carregado, o caçador, num gesto algo teatral, joga no meio da casa o pasápé (cesta improvisada de folhas de palmeira), ou deixa-o na entrada do caminho para sua mulher buscar. Normalmente, ele já limpou e esquartejou o animal abatido, deixando a carne em pedaços apropriados. A mulher desembrulha e, se for o caso, sapeca os pêlos do couro, antes de colocar as postas na panela.

Na preparação da carne, seja de caça ou de peixe, cozinhar é a principal técnica da culinária Cinta Larga. Se o peixe logo está no ponto, a carne de caça exige uma longa cocção que, iniciada ao cair da noite, dura de cinco a seis horas, no caso dos animais maiores. Temendo os efeitos maléficos dos resíduos sanguíneos, a carne é fervida até que não reconheçam mais nenhum traço de sangue. Regra alimentar crucial, evita-se qualquer contato entre sangue e comida - os Cinta Larga horrorizavam-se, por exemplo, com nosso hábito de levar à boca pequenas feridas nos dedos. Dizem eles que o sangue, se ingerido, traz graves doenças (febres, dores de cabeça, malária etc.). Lavam por isso com areia, criteriosamente, as facas usadas para cortar a caça, e não permitem, de nenhuma maneira, que a carne sangrenta seja depositada nas cestinhas que usam para comer.

Entre os Cinta Larga, a princípio, cada família tem uma cozinha: marido, esposa ou esposas e filhos, formam uma unidade de produção e consumo. Cada uma delas, no canto que ocupa na maloca, acende seu próprio fogo, para cozinhar e, à noite, aquecê-la. Auto-suficientes, mas não estanques, as famílias representam as unidades da troca alimentar, em sua versão diária. Regularmente, articulam-se numa rede de circulação de alimentos que inclui tanto os moradores da aldeia, como os visitantes. A todo momento, pequenos agrados ou petiscos vão de um homem a outro, uma mulher a outra. Sempre corteses, não deixam de acolher numa rede e oferecer cará cozido ou outro bocado, mesmo a um co-residente que apenas aproximou-se para conversar. Ao lado desta série de gentilezas e afetos informais, sobressai um outro circuito, este sim convencional. A rigor, uma etiqueta marcadamente masculina, que distingue dois alimentos, a carne e a chicha, cuja distribuição é considerada obrigatória. Ao lado disso existe todo um jogo sutil de formalidades e acanhamento, ou diríamos, de regras de boas maneiras a serem observadas em relação à comida - ao fazer, ao dar, ao receber e ao comer.

Coleta

Dentre as atividades de subsistência, a coleta de produtos florestais pode representar, antes de tudo, também ocasiões para comer. É bem verdade que as frutas silvestres, como cacau (akóba), pama (abía), abiurana (dedena), jatobá (madéa), ingá, patauá (oykap) ou pequi (bixãma), ainda que muito apreciadas, não passam de guloseimas, visto que pouco influenciam na dieta do período. Importantes são as castanhas (mãmgap) e o mel de abelhas (íwít), em torno dos quais organizam-se expedições à floresta que agregam, em dias normais, duas ou mais famílias - homens, mulheres e crianças. São como passeios, cheios de momentos alegres e prazeirozos.

O método da coleta é o mesmo das caçadas. Se alguém localiza uma colméia, dias ou semanas antes, em meio a alguma caçada ou viagem, será ele o béxipo ao combinar a expedição com os demais: a golpes de facão limpa as picadas, derruba ou orienta a derrubada da árvore, abre a colméia e distribui os favos e o mel, e recolhe uma parte maior para sua família.

Nestas expedições de coleta, os homens caminham na frente levando suas armas, atentos aos ruídos, sinais ou movimentos que indicam a proximidade de alguma caça, bem atrás, distanciadas, vêm as mulheres carregando seus bebês, os cestos, panelas e machados, marcando seus passos com o das crianças maiores. Sem se perder, marcham na trilha às vezes quase imperceptível dos maridos - a marca de uma pisada, ali um ramo quebrado, adiante uma folha virada. Além disto, fato interessante, quando andam na floresta os Cinta Larga raramente modificam a ordem inicial da fila indiana: se param para descansar ou saciar a sede num córrego, ao retornar a caminhada ocupam, obsequiosos, os mesmo lugares de antes. Enquanto regra de boas maneiras, hierarquiza o grupo ao caminhar, e com isso revela, mais uma vez, uma forma de organização das atividades coletivas que têm no bexipó seu princípio ordenador. Se este na ida segue na dianteira, inverte na volta as posições, ocupando a rabeira da fila. Primeiro ou último, mas sempre um lugar único, necessário, ponto focal.

Entre os tipos de mel aproveitados pelos Cinta Larga, preferem o das abelhas mansas. Abelhas agressivas, mas sem ferrão, com a “xupé” (arama), enfrentam-nas porém corajosa e festivamente, aos risos e gritos. O quadro sugere, ainda que não declarado, uma paródia dos embates guerreiros: avançam com as tochas de palha acesas, equilibrando-se pelo tronco da árvore derrubada, para jogá-las sobre a colméia caída; fazendo algazarra, não recuam apesar da nuvem de abelhas enfurecidas, que grudam e mordem no corpo e nos cabelos. Aberta a colméia a machado, em volta a distribuição é feita rapidamente, em grandes pedaços. Só então os homens afastam-se, correndo, e vão saborear os favos com suas mulheres e filhos, à distância. Aos poucos, daí, vão sendo cheias as panelas e recipientes de paxiúba (daroíp) com mel e pedaços da colméia.

Da mesma forma, no período chuvoso as famílias, duas ou mais, saem para quebrar castanhas, indo aos castanhais conhecidos. Lá, homens e mulheres recolhem livremente os ouriços espalhados pelo chão - previdentes, na seca incendeiam a vegetação rasteira, sob as castanheiras, para facilitar a procura. Muito apreciada, comem-na a todo instante, como complemento ou só. Bebem chicha mastigando-a junto - gentis, brindam os convidados com amêndoas descascadas. E, socada e assada em cartuchos de palha, fazem uma deliciosa iguaria chamada mâmdík.

Petiscos apreciados nas épocas próprias, as mulheres, principalmente, coletam larvas de coleópteros, alojados nos coquinhos de babaçu e tucumã, e de um lepidóptero, que se  enrola em folhas. Em dias de novembro, espalham-se todos para recolher as tanajuras (mamóri) que voaram dos formigueiros. Larvas e tanajuras, fritam-se para comer.

Afora os alimentos, uma extensa relação de matérias primas leva-os a excursionar pela floresta: as mais diversas folhas e raízes para medicamentos; palhas de açaí, babaçu e tucum para cestos; fibras de tucum e outras para cordas e cordões; coquinhos e xikába para contas de colar; pedras arenosas para lixar os colares; tabocas para flautas transversais e de palheta; taquaras para flechas; pupunheira para os arcos; madeiras e enviras para os mais variados usos; bainha das folhas de paxiúba para guardadores de apetrechos e penas; raízes da paxiubinha para raladores; resinas para iluminação etc.

Uma outra relação poderia incluir alguns materiais novos e os produtos “importados” das cidades, integrados agora à vida cotidiana dos Cinta Larga: varetas de guarda-chuva para furadores; alumínio e plásticos para contas e colar; pedaços de metal para cortadores de contas; latas furadas como peneiras; garrafas para guardar mel; facas, facões, machados e enxadas; linhas de nylon e anzóis; espingardas, roupas, sandálias e valises; isqueiros; e inúmeros outros itens.

Divisão do trabalho
Afora estes, as atribuições são bastante claras. Se não estão cozinhando ou colhendo nas roças, as mulheres absorvem-se, incansáveis, nas tarefas artesanais. Pode-se, a todo momento, vê-las no pátio ou dentro de casa fiando algodão, quebrando coquinhos ou tecendo cestinhas de palha. Confeccionam os seguintes itens: redes de dormir (iñi), braçadeiras (nepóáp) e pulseiras (arapéáp), tipóias para bebês, colares de conta (bak’rĩ), colares de cipó (amoíp), cintas femininas (xiripót), cestos (adó), cestas (datía). As panelas de cerâmica (bosáp) foram, rapidamente, substituídas pelas de alumínio, não sendo mais fabricadas.

Já o trabalho masculino caracteriza-se pela descontinuidade: esforços intensos na caça ou na roça são entremeados de horas ou dias de descanso. Em casa, dormem nas redes, comem ou bebem chicha e fabricam: cocares, flautas, adornos labiais, furador, pilão, cocho etc. Mas, visivelmente, são os arcos e as flechas os principais artigos dos homens. Além do que foi abordado, resta dizer que, embora artigos de uso pessoal, a quantidade de flechas de uma aldeia está, também, entre as preocupações de um zápiway. Convocar seus companheiros para jápâga (“fazer flecha”), reunindo-se com ele na oficina, dispor de apetrechos (taquaras, penas, fios, cera), colocando-os à disposição dos demais, supervisionar o trabalho e inspecionar a qualidade das flechas, são formas de estimular sua produção. Outras são as expedições para buscar taquaras, em trechos de cerrados dentro ou fora das suas áreas. Em particular, a festa seria uma ocasião para formar um estoque de flechas, e neste sentido um dos motivos, ao lado de outros, para um zápiway promovê-las.

A partir de 1980 começam a fazer a extração da borracha e coleta de castanhas visando a comercialização. O isolamento da área, dificuldades de transporte e a pequena escala da produção propiciam um retorno monetário pouco significativo.

As atividades masculinas são a caça, a derrubada das árvores e o preparo da terra para o cultivo, a confecção de arcos, flechas, flautas, adornos plumários, extração de borracha, pesca, construção da casa e limpeza do mato próximo à aldeia. As mulheres coletam, fiam algodão e fibra de tucum, fazem redes, cerâmica, cuidam da colheita das roças, da alimentação diária, produzem colares e pulseiras. E, como foi dito, homens e mulheres coletam mel, castanha e trabalham no plantio das roças.

Sem dúvida, a presença do garimpo nas terras dos Cinta Larga é o que, de fato, atualmente movimenta a economia local, propiciando o aparecimento de um grupo de chefes com acesso aos principais bens ocidentais, obtidos em troca do diamante explorado pelos garimpeiros.

 Cultura material

O artesanato indígena inclui confecção de cestos, arcos, flechas, colares de coco de tucum, pulseiras também de coco e de dentes de macaco, enfeites plumários para  a cabeça e braços, redes de dormir, adornos de palha ou de pele de onça, flautas, pilão, fuso, furadores, adorno de resina para o lábio e outros ornamentos menores.
As cintas típicas dos índios da etnia Cinta Larga, (zalâpíáp) são confeccionadas com fibras da casca da árvore Tauari Vermelha (wébép) Cariniana micranta Ducke, árvore da famiília das Lecythidaceaes.

Para a guerra, os Cinta Larga pintam-se de jenipapo (wésoa), com motivos animais ou vegetais e, em tempos passados, cortavam os cabelos muito rentes. Usavam seus cocares de penas de gavião (katpé), grossos colares de contas (bak´rĩ) no pescoço e cruzados no peito (nakósapíap) e as cintas típicas (zalâpíáp), confeccionadas de entrecasca da árvore tauari (wébép). Enfeitavam-se ainda com palhas de buriti (wébay) enroladas nos braços e nas pernas. Suas armas são o arco e flechas e o tacape, utilizados em situações específicas.
As cintas típicas (zalâpíáp) são confeccionadas com fibras da casca da árvore Tauari Vermelha (wébép) Cariniana micranta Ducke, árvore da famiília das Lecythidaceaes conhecida também como castanhas-de-macaco.

Os arcos (matpé), de seção oval, medem cerca de 2 metros, e são fabricados do caule da pupunheira (jobát). As flechas (jáp), em média com 1,80 metros, consistem de uma haste de taquara onde se encaixa uma ponta com formato de faca, de um tipo de taboca, e, na extremidade inferior, aletas de penas de gavião ou mutum. Os arcos são resistentes e exigem do arqueiro treino e força física. Há flechas de vários tipos, para aves, macacos, animais de grande porte e pesca, mas sempre elaboradas caprichosamente. Algumas, com parte da haste feita de madeira (ipép), dentada e adornadas com trançados de pêlos de caitetu (jápsík), com padrões losangulares. O tacape (sóká) é semelhante a uma espada curta, com um metro de comprimento, de cerne de madeira muito dura, preta ou vermelha, e o cabo ornamentado com penas vermelhas e amarelas.

O tacape, substituído hoje pelo terçado (facão), servia para as investidas repentinas ou dissimuladas. Se, por acaso, discutiam com um visitante (akwesotá- “falar ruim”, dizem os Cinta-Larga) devido ao “ciúme de mulher” ou outro motivo, e resolviam matá-lo, aproximavam-se com o tacape escondido nas costas, e quando a oportunidade surgia, batiam na nuca do adversário e, ao cair, cravaram-no em seu peito. Este gênero de homicídio era muito freqüente, originando hostilidades constantes entre os vários grupos.

Ainda dentre as técnicas guerreiras, os Cinta Larga têm alguns venenos para passar nos olhos dos contrários, cegando-os temporariamente. Mórat é o termo geral para classificá-los, assim como são denominados os “remédios para caça”. Destes mórat para guerra, é possível destacar o bébésirík (“couro de porco”) e o wásakoroyáp (“ventre de anta”), ambos extraídos de casca de árvores.

Conhecem também outros venenos (pósot- “coisa ruim”) poderosos, que podem ser adicionados à comida de seus desafetos, provocando-lhes a morte. Esta técnica, todavia, é praticamente restrita ao uso entre os comensais, os que partilham um mesmo espaço social. E mais, é uma forma de homicídio associada às mulheres, não apenas em razão de uma metonímia alimentar, também por tratar-se do único recurso mortífero a que elas têm acesso - e de que se servem para eliminar rivais ou cônjuges indesejados -, ainda que não lhes seja exclusivo.

Como as plantas muitas vezes são usadas como arma de vingança, é importante lembrar que acusações de feitiçaria são constantes entre os Cinta Larga. Acusações mútuas são responsáveis pelas agressões entre índios, e, caso ocorra mortes, inicia-se uma série de retaliações e expedições guerreiras. Alguns venenos são usados contra as mulheres: os que causam hemorragia mortal, os que causam aborto e outros sua morte. Para ser usado contra qualquer pessoa há o Po sut, que misturado à comida faz com que se emagreça progressivamente até a morte.

 Aspectos cosmológicos

Do ponto de vista etnográfico, os Cinta Larga são um dos raros grupos filiados ao tronco lingüístico Tupi que não incorporaram o tabaco à sua cultura. Dessa forma os rituais de cura envolvem a recitação de palavras eficazes, o contato com as mãos e o sopro do xamã. Este ritual tem expressão menor no quadro das cerimônias, da mesma forma que os rituais de reclusão feminina e da perfuração do lábio inferior das crianças. São celebrações menores quando comparadas com a festa do bebé-aká (ver no item festas).

Basicamente, empregam-se certos “remédios” específicos para a espécie animal que se deseja abater e que propiciam o sucesso individual do caçador. Classificados como mórat, termo que identifica também os venenos para guerra, são extraídos de plantas que estão associadas pela “lei da similaridade” ao animal visado.

Alguns exemplos: Para caçar anta, têm um arbusto silvestre cujas folhas apresentam o formato do pé deste animal- wásapí, “pé de anta”, é o nome da planta e do remédio. As folhas são maceradas em panelas cheias de água, à beira de um córrego, bebendo-se e provocando vômito, “limpando por dentro” o caçador. Já o remédio para caitetu exala um cheiro idêntico a este animal, do mesmo modo que para o macaco-prego. A raiz da planta é mastigada e cuspida nas mãos, braços e peito, e esfregada pelo corpo.

As imagens oníricas, igualmente, detêm relações simbólicas com as espécies animais, com chaves de interpretação padronizadas. Sonhar que se está atravessando o rio, submerso, significa que o caçador encontrará anta. Sonhar com mulher é sinal de anta fêmea, enquanto relações homossexuais indicam anta macho. Se sonha que está tirando tapurus (bernes) do pé, vai-se matar gavião – explica-se: para comer, o gavião segura com suas garras a carne, às vezes já infestada com bernes. Morar numa casa velha, é tatu, mas se sonha que “anda com luz à noite, igual vagalume, é onça!”.  O imaginário onírico encerra em uma mesma imagem predador e presa.

Dentre estas práticas encontramos um tabu: o consumo de carne pelos genitores cujas crianças estão na primeira infância. Essa proibição atinge com maior rigor as mães. Nos primeiros dias da criança o cardápio da mãe não vai além de alimentos vegetais, mel e, se houver, carne de jacaré e peixes permitidos; pouco depois, onça, jaguatirica, irara, tatu-canastra, coati, jacutinga e nambu poderão ser incluídos. Da carne de anta, nada mais que pequenos pedaços para o pai.

Estas preocupações são abandonadas progressivamente, de acordo com as etapas do crescimento infantil: até ficar “durinha”; ao sentar; ao andar e ao falar. Nas três primeiras semanas, o pai da criança, inclusive, deixa de caçar e de fazer tarefas árduas. As mulheres mais velhas zelam para que os jovens atendam corretamente às normas: o argumento é que, por desleixo ou gula, um pai ou mãe que não respeitar o resguardo alimentar causará doenças ou mesmo uma convulsão (pãdágña) em seu filho. Segue abaixo a listagem das carnes proibidas e permitidas logo após o parto, das quais algumas se resguardam por muito tempo, a exemplo do caitetu, que o pai só comerá quando a criança começar a andar, e do coatá, a última a ser liberada, quando inicia a falar.

Mamíferos
Carnes proibidasCarnes permitidas
  • Coatá (basáy);
  • barrigudo (xakát);
  • macaco-prego (basáykip);
  • guariba (péko);
  • cuxucuxu cuxuí (básaypip);
  • caitetu (bébékót);
  • veado (ití)
  • paraguaçu (parapxíp);
  • preguiça (alía);
  • onça (nekó);
  • jaguatirica (nekókip);
  • irara (awaráp);
  • queixada (bébé);
  • anta (wása);
  • tatu-canastra (málola);
  • coati (xoyíp);
  • cutia (wakí).
Aves
Aves proibidasAves permitidas
  • Jacu (tamoáp);
  • jacamim (tamaríp);
  • mutum (wakóy);
  • arara-vermelha (kasít);
  • arara-cabeçuda (ãmiâ)
  • Jacutinga (pixakót);
  • nambu (wañã);
  • gavião-real (ikônô)
Peixes
Peixes proibidosPeixes permitidos
  • Piranha (iñeñ);
  • Mandi;
  • Surubim (koledé);
  • Poraquê (goyâna).
  • demais espécies (bórip)
Répteis
Répteis proibidosRépteis permitidos
  • Jacaré (wawó)

A valorização da auto-suficiência individual faz com que o Cinta Larga esteja sempre atento à saúde do corpo. Aos primeiros sinais de mal estar recolhe-se à rede e procura identificar as causas do desconforto. Conta com o apoio de uma ampla gama de conhecimentos e práticas para auxiliá-lo na eliminação das doenças. Das muitas centenas de espécie vegetais que povoam a mata, algumas foram destacadas por suas propriedades de assegurar a proteção através da cura, da prevenção de doenças ou mesmo por permitirem o desenvolvimento de aptidões que direta ou indiretamente podem garantir o bem estar. Este é um saber compartilhado por todos, crescendo com a idade. A título de exemplo citamos alguns usos de plantas regularmente utilizadas: para aumentar a fertilidade feminina; garantir o vigor masculino; assegurar bom parto; evitar aborto; diminuir contrações uterinas; purificar os pais do recém-nascido; para o bem estar do recém-nascido; evitar choro continuado do recém-nascido; dar à criança um sono profundo; tornar leve o sono  dos adultos; evitar que a criança morda o seio da mãe ao mamar e inúmeras outras.

Uma vez assegurada a saúde, um conjunto de plantas atende à necessidades de outro setor: o bom desempenho do homem na caça e o manejo das armas. Há ainda plantas usadas para atrair animais e cujas folhas o caçador esfrega no corpo.

Mito de criação
O universo é visto sob o prisma da unidade. O mito da criação é um relato detalhado de como Gorá criou os seres humanos, membros das diversas tribos que povoam a região, conferindo-lhes identidade e características específicas. Por outro lado, animais, aves e demais seres vivos foram criados a partir da transformação do Homem; alguns se tornaram onças, outros anta etc., por obra também de Gorá. Este e outros heróis culturais menores que povoam a mitologia Cinta Larga são os responsáveis pelo que de positivo existe no universo social e cultural. A contrapartida desses atos benéficos de criação é um espírito que habita a floresta e encarna o lado sombrio da existência. Seu nome é Pavu. Vagueia pela mata à procura de vítimas e tão logo encontre um caçador solitário ou qualquer pessoa que perambule por seus domínios, lança sobre eles seu ataque mortal. Não há quem resista ao seu poder, e, de encontro com Pavu, advém a febre e em seguida a morte.

 Festas
As festas são acontecimentos da estação seca. Sua preparação demanda um ano, ou pouco menos, e sua execução, em torno de um mês. Para celebrá-la é preciso que o dono da casa, isto é, o anfitrião (íiway [dono da chicha], ou mêiway [dono do pátio]), tenha plantado uma grande roça de milho, mandioca ou cará - a escolha da matéria-prima para a produção da bebida é feita pelo convidado de honra. Além disso, deve capturar um filhote de animal para ser sacrificado, de preferência uma queixada. Caitetu, macaco, arara, cutia, quati, mutum, jacamim e outros – modernamente, mesmo galinhas e bois - servem igualmente para o papel de vítima. Uma vez capturado, o animal recebe um nome e é criado pela esposa do íiway, ou por sua filha.

As festas se articulam ritualmente com o a sociologia Cinta Larga, uma vez que as condutas durante esse período remetem à conduta cotidiana, porém de uma forma que poderíamos chamar de inversa.

Não há uma denominação genérica para este ritual: os Cinta Larga dizem íwa (tomar chicha), ibará (dançar) ou, mais raramente, bébé aka (matar porco). Tais referências resumem, de certo modo, o programa ritual: beber chicha, dançar e matar o animal. E, desde logo, exprimem um convite. A construção de uma nova casa (maloca) ou uma expedição guerreira eram os motivos principais que levavam, tradicionalmente, um zápiway (dono da casa) a planejar uma festa. Para a guerra, o ritual arregimenta os aliados, organizando o ataque e, em seguida, comemorando os feitos dos guerreiros. Para a casa, representa uma "homenagem" ao zápiway de uma outra aldeia, que assume o papel de "convidado de honra". Num caso, a festa inaugura um espaço social, no outro, ao contrário, marca sua ruptura.

A festa pode ser entendida como um convite para matar esse animal, cujo nome é anunciado aos convidados pelo emissário do anfitrião. Com isso, a casa, a roça e o animal domesticado somam as principais condições materiais necessárias para o ritual. Mas são os convidados a principal condição social, são eles que "fazem" a festa. Premissa sociológica do ritual Cinta Larga, a reciprocidade entre anfitrião e convidados ordena relações entre pessoas e aldeias, já que uma festa desdobra-se para além de si mesma: ao aceitar o convite, o convidado compromete-se idealmente a, num próximo ano, promover uma nova festa em sua casa. Nas palavras de Taterezinho (um Cinta Larga):

É outro que dá. Depois outro, outra aldeia vai dar (festa) outro ano. Aquele que deu (este) ano não vai fazer outro ano. Tem que ter outro, outro grupo faz festa. Aí convida ele como ele também convidou.
Estruturalmente, os convidados assumem a posição do "outro", termo para uma relação virtual de afinidade. Para uma festa semelhante, os Suruí (Tupi-Mondé) explicitam, com nitidez, as relações em jogo e descrevem os convidados como "não-parentes" ou "cunhados" (Mindlin, 1985:48-9), que são associados ao metare (acampamento próximo à aldeia onde os homens trabalham em suas flechas e arcos). Neste ponto, os Cinta Larga parecem fixar de forma mais "simbólica" tal relação: dizem mâmarey (má, 3a pes.), "os outros", para designar os visitantes; enquanto pãmarey (pã: 1ª a pes. pl. inclusiva), "os nossos", os membros do próprio grupo.

Desta oposição central deriva a própria seqüência ritual, que, a todo momento, e sob diversas formas, dramatiza o encontro de grupos inicialmente tidos como antagônicos. São ritualmente "inimigos", portanto, que vêm à festa a convite do anfitrião. Os convidados chegam na época previamente marcada e entram na aldeia, à noite, encenando um ataque guerreiro. Porém ali são recepcionados com chicha aguada, e não a chicha doce consumida habitualmente, e dançam no centro da casa.

Quando chegam homens ou famílias de uma aldeia distante, de um grupo local distinto, os Cinta Larga costumam dançar uma ou outra noite, beber chicha e também cantar. Esta confraternização entre os dois grupos faz parte de um protocolo de recepção. A chegada de hóspedes é motivo suficiente  para a realização de uma festa, ainda que limitada apenas a umas noites de dança, um pouco de chicha, que bebem com moderação, e algumas brincadeiras. Com efeito, dentre as quatorze festas estudadas por Dal Poz, ao menos cinco delas marcavam simplesmente a chegada de hóspedes, ou melhor, o reencontro de dois grupos: a casa enchia-se de gente, por alguns dias a aldeia movimentava-se, alegremente.

Tais viagens de visitas, assim como os acampamentos e as festas, são atividades próprias da estação seca. Após as derrubadas em maio ou pouco mais, as famílias circulam amplamente pelas outras aldeias, favorecidas pelo clima e, como única obrigação, a queimada e o plantio paulatino das duas roças. Esta era igualmente a época propícia às expedições guerreiras. A chegada dos visitantes segue um certo protocolo: eles anunciam-se desde muito longe, tocando uma flauta de pã, cujos sons dissonantes percorrem grandes distâncias. Depõem seus arcos e flechas ao lado da porta e entram na penumbra da maloca, imponentes, vestidos a caráter - cocares de penas de gavião, colares de muitas voltas e cintas de entrecasca. É de grande teatralidade este momento e, assim como em outras ocasiões, a entrada em cena busca impressionar os espectadores.

A intervalos de dois ou três dias, repetem-se os bailes noturnos, num crescendo de intensidade e animação. Frente a frente, duas fileiras de homens dançam, rivalizando-se. Atrás destas fileiras dançam também algumas mulheres, com as mãos na cintura ou no ombro de seu marido, namorado ou irmão. Um conjunto de flautas-de-palheta (tokótokóáp ou wa’áp) faz o acompanhamento musical para as evoluções coreográficas. De tempos em tempos os músicos silenciam e um cantor improvisa versos, que são repetidos em coro. Estes cantos, denominados bérewá, tematizam o próprio contexto social da festa, sublinhando as relações entre os grupos envolvidos. Nas festas comuns não mencionam brigas ou caçadas, mas afirmam que "está tudo bem", que "é bom beber chicha", ou descrevem a viagem até ali, o local onde moram e o crescimento do grupo, ou então relatam visitas e outros eventos pacíficos.

Já nas festas que preparam a guerra, os cantos antecipam a tática dos guerreiros, mas sob a condição de não enunciar o etnônimo dos inimigos ou que vão "atacar gente". Os cantores dizem então que vão "matar porco", vão "matar macaco" ou que saíram para uma "caça". Ou, então, rememoram os animais "bravos" que já mataram: gavião, onça etc. Outras vezes, o guerreiro fala de si próprio como um animal predador, uma onça, por exemplo. Regra do discurso guerreiro, esta evitação lingüística, que se estende igualmente às festas que comemoram as batalhas e perdura por um largo tempo, situa os inimigos no domínio da animalidade e faz da caça uma metáfora para a guerra.

Festa e cotidiano

O script ritual traça nitidamente contrastes com as práticas cotidianas: individualizadas no dia-a-dia, na festa, porém, as atividades (colher, fazer chicha, caçar, comer, tocar flauta, cantar etc.) são cumpridas coletivamente, tendo sempre alguém a liderá-las ou coordená-las. Assim, por exemplo, a bebida ocupa nas festas um lugar importante, porém é deslocada do mecanismo de inversão de seu modo de produção, distribuição e consumo. Se na vida diária cada mulher prepara a chicha para seu marido, na festa é o conjunto de mulheres que assume a tarefa. E o anfitrião, que não dança nem canta, deve servi-la pessoalmente a cada dançarino - o que destoa da conduta diária, quando os demais homens são simplesmente chamados pelo marido para, juntos, servirem-se na panela. Consumida ritualmente em excesso, a chicha é vomitada propositalmente no meio do salão pelos dançarinos.

Enquanto bebida ritual, portanto, a chicha aparece como um anti-alimento, subvertendo a função vital a ela atribuída pelos Cinta Larga (engordar, fortalecer o corpo).

O programa ritual também coloca em destaque as obrigações alimentares do anfitrião. Por ocasião da visita do emissário, os convidados formulam pedidos de comida, chamados méémã - em geral carnes de caça ou peixe; e, para atendê-los, o anfitrião organiza caçadas coletivas. Em dias comuns, os Cinta Larga preferem caçar sós ou com apenas um companheiro. Mas este aspecto, que não é o único, aparece ritualmente invertido. A carne cozida será dividida pelo íiway em duas partes: a primeira, servida aos convidados, que avançam sobre a comida na cesta, comportamento que afronta as boas maneiras; a outra, que é entregue cerimonialmente ao convidado que solicitou a iguaria.

Em relação à comida, as atitudes imoderadas e a voracidade dos convidados são a norma. Se estão com fome, não hesitam em abater galinhas e porcos domésticos ou em tomar os alimentos que desejam, ainda que retribuam com uma ou duas flechas. Certas noites, chegam a promover verdadeiros "assaltos" aos estoques alimentares: Akoy té ma wirá (onde está a comida?), repetem eles, enquanto vasculham todos os cantos da maloca, recolhendo e comendo os alimentos que encontram.

No plano interno do próprio ritual, por sua vez, registram-se rupturas curiosas: parte quase obrigatória dos bailes noturnos, rapazes com disfarces grotescos interrompem abruptamente os dançarinos e encenam pequenas comédias (gôji), vazadas num humor obsceno ou repugnante. Com efeito, as expressões de oposição, pinçadas no cotidiano ou de cunho estritamente cerimonial, mutiplicam-se a cada passo: dono da chicha/ bebedores, cozinheiras/caçadores, doador de comida/"devoradores", mulheres/homens, músicos/cantores, dançarinos/palhaços, e repetem-se em vários outros elementos.

Um último baile noturno, o mais concorrido, precede o sacrifício da vítima animal e engendra inúmeras operações simbólicas, particularmente inversões de gênero e outras metamorfoses. Naquele dia são os homens, e não as mulheres, que vão arrancar mandioca ou cará na roça. À noite, outra inversão: as mulheres abrem o salão, dançando em duas fileiras, à semelhança dos dançarinos homens. Algum tempo depois entram os convidados, com muita disposição, e o espaço é novamente ocupado pelos homens, que dançam e bebem abusivamente.

Ao amanhecer, excitados pela bebida e pela vigília, os dançarinos remanescentes ritualizam uma "vingança" contra o anfitrião, revidando assim, dizem os Cinta Larga, tudo o que "sofreram" com danças e bebedeiras ao longo da festa. Num gesto revelador, o anfitrião é simbolicamente animalizado pelos convidados: seguem seu "rastro" e, ao encontrá-lo dormindo, jogam água fria em seu ouvido; obrigam-no então a beber chicha, enquanto simulam, abanando chumaços de palha, acender fogo para assá-lo.

No contexto da festa Cinta Larga - e também Suruí e Zoró, ambos de língua Tupi-Mondé - o sacrifício ocupa um lugar central; todos os atos rituais conduzem a este clímax e nele encontram seu significado. Boa parte da atenção dos homens, antes e no decorrer da festa, concentra-se na morte da vítima animal. Como disse, já os convites assinalam esta motivação:

Para isso ele (o anfitrião) fez a festa. Para matar o bicho. Para isso que ele convidou todo mundo, para comer, juntar tudo. Para juntar amigo para comer aquele bicho. (Taterezinho).

Em torno do sacrifício, então, reúnem-se os convidados - finalidade eminentemente social. Significa contratar uma aliança na qual a vítima faz o papel de intermediário. Não um termo, mas relação: a morte ritual da vítima animal comparece aqui enquanto sacrifício simbólico do próprio anfitrião. Ao gôm, animal domesticado pelo grupo do anfitrião, cabe substituí-lo no ato sacrificial. A função vicária do animal, mesmo não explicitada pelos informantes, é logicamente dedutível. Numa frase: um "anfitrião animalizado" pelos convidados vai, em seguida, ofertar um "animal socializado" para ser morto e comido. Com efeito, anfitrião e vítima colocam-se numa relação de identidade: metafórica, já que o primeiro encenou um animal pouco antes; metonímica, pois ambos "pertencem" a um mesmo grupo social.

Na madrugada seguinte ao último baile, os convidados irrompem aos gritos da maloca e dançam e bebem até clarear. De manhã o anfitrião amarra o animal pelos pés, diante da maloca. O detalhe denotaria, outra vez, a associação entre a vítima e o anfitrião, o qual também foi amarrado de modo análogo. O anfitrião, a seguir, conduz os homens pela mão, a começar pelo convidado de honra, e posiciona-os lado a lado, voltados para o animal amarrado (portanto, de costas para a maloca), e afasta-se. Com seus arcos e flechas na mão, os homens dançam, avançando e recuando diante da vítima. Em versos improvisados que serão repetidos pelos demais, o convidado de honra elogia a hospitalidade do anfitrião e anuncia a morte do animal, e, quando termina seu canto, ordena que o matem: kaben sakirára (vamos matá-lo!). Num átimo, todos os arqueiros disparam suas flechas. Ao mesmo tempo, gritam que já mataram muitos bichos, nomeando-os: "Vou matar, como matei aquele veado", por exemplo.

Desta maneira, no ato mesmo em que sacrificam o gôm, os convidados recordam da caça. Numa frase, o sacrifício seria memória da caça. Quando fora referido, acima, os cantos dos guerreiros Cinta Larga, vimos que caça e guerra estavam dispostas numa relação metafórica, sendo a primeira uma linguagem para a outra; sabemos agora que também o sacrifício toca-se nesta mesma clave.

Neste momento do ritual, os participantes promovem uma verdadeira algazarra. Difícil reproduzir a empáfia do fraseado, os gritos de júbilo, ou descrever o porte altaneiro e os gestos enérgicos da performance ritual. Diria apenas, mesmo sob o risco do paradoxo, que parecem estar num alegre combate. Portanto, memória da caça, mas uma guerra ritual.

Abatida a vítima, os homens dirigem-se ao anfitrião, que, a pouca distância apenas, observa o espetáculo, e comunicam que já mataram o animal: Amoya, enaeyá sakirá (meu parente, já matei para você!). O clima de excitação, formalismo e tensão que antecede o sacrifício dissolve-se. Os convidados agora presenteiam com flechas o anfitrião. O animal morto é disposto sobre folhas ou palhas no mesmo local onde estava amarrado e, um a um, começando pelo convidado de honra, os participantes do sacrifício jogam suas flechas, mirando na vítima ou em coisas próximas. Estas não são as flechas que foram usadas para matar a vítima, são outras, bem acabadas e adornadas, e são atiradas com algum comentário jocoso ou depreciativo formulado pelo próprio arqueiro. O anfitrião então aproxima-se para ouvir e, depois, recolher a flecha para si.

Sobre o corpo do animal, desta maneira, as flechas são dadas e recebidas, o que faz dele o penhor da aliança. Mas ao mesmo tempo em que suscita a troca, a vítima sacrificial é também trocada: findo o ato de presentear, o anfitrião retira-se para casa levando os maços de flecha, e o convidado de honra comanda o esquartejamento do animal. Há, a seguir, uma dança ao redor da maloca, na qual os homens elevam os despojos acima da cabeça. A carne - às vezes crua, outras cozida - é depois repartida entre todos os participantes, que avançam para receber seu pedaço – exceto o anfitrião e sua família. O sentido deste impedimento é que a vítima simboliza o próprio anfitrião, e sua carne é a contrapartida das flechas que recebeu. Findo o repasto, os convidados retiram-se apressadamente rumo às suas aldeias; ou o anfitrião à noite oferece chicha doce, e eles partem na manhã seguinte.

 Nota sobre as fontes

O verbete Cinta Larga foi baseado na dissertação de mestrado “No País dos Cinta Larga”, de autoria de João Dal Poz, defendida na Universidade de São Paulo em 1991.

Os dados referentes à situação contemporânea foram retirados das notícias de jornal mais recentes sobre o conflito, e informações de Maria Inês Hargreaves, indigenista que atua junto ao povo Cinta Larga.

Além dessas fontes, Carmen Junqueira produziu trabalhos e artigos sobre a organização social que serviram como complemento às informações obtidas a partir da dissertação de Dal Poz. Destacamos de Junqueira o artigo “Os Cinta-Larga”, publicado na Revista de Antropologia -1984/1985.

 Fontes de informação

CHAPELLE, Richard. Os índios Cintas-Largas. São Paulo : Edusp ; Belo Horizonte : Itatiaia, 1982. 140 p.
CINTA LARGA, Pichuvy. Mantere ma kwé tinhin : histórias de maloca antigamente. Belo Horizonte : Segrac ; Cimi, 1988. 128 p.
DAL POZ NETO, João. Homens, animais e inimigos : simetrias entre mito e rito nos Cinta Larga. Rev. de Antropologia, São Paulo : USP, v. 36, p. 177-206, 1993.
--------. Laudo histórico-antropológico [AI Serra Morena]. Cuiabá : s.ed., 07/10/1988. 85 p.
--------. No país dos Cinta Larga : uma etnologia do ritual. São Paulo : USP, 1991. 360 p. (Dissertação de Mestrado)
DAVIS, Shelton H. A invasão do parque Indígena Aripuanã : A desintegração das tribos Cintas-Largas e Suruí. In: --------. Vítimas do milagre : o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro : Zahar Ed., 1978. p.105-17.
DORIA, Car los Alberto: RICARDO, Carlos Alberto. Populations indigenes du Bresil : perspectives de survie dans la region dite "Amazonie legale". Bulletin de la Societé Suisse des Americ., Genebra : Societé Suisse des Americ., n.36, p.19-35, 1972.
ERMEL, Priscilla Barrak. O sentido mítico do som : ressonâncias estéticas da música tribal dos índios Cinta-Larga. São Paulo : PUC-SP, 1988. 266 p. (Dissertação de Mestrado).
FREITAS, Laura Eugenia Perez. Changement social et sante chez les Tupi-Monde de Rondonia (Bresil). Paris : Université de Paris X, 1996. 126 p. (Dissertação de Mestrado)
HANBURY-TENISON, Robin. The Cinta-Larga. In: --------. A question of Survival : for the indians of Brazil. Londres : Angus and Robertson, 1973. p.158-65.
JUNQUEIRA, Carmen. In the path of Polonoroeste : endangered peoples of Western Brazil - Os Cinta-Larga. Cultural Survival: Occasional Paper, Cambridge : Cultural Survival, n.6, p.55-8.
--------. Os Cinta-Larga. Rev. de Antropologia, São Paulo : USP, v. 27/28, p.213-32, 1984/1985.
--------. Sexo e desigualdade entre os Kamaiurá e os Cinta Larga. São Paulo : Olho d'Água ; Capes, 2002. 112 p.
--------. Sociedade e cultura : os Cinta-Larga e o exercício do poder do Estado. Ciência e Cultura, São Paulo : SBPC, v.36, n.8, p.1284-7, ago. 1984.
MAGALHÃES, Amílcar A. Botelho de. Pelos sertões do Brasil. São Paulo : Cia. Ed. Nacional, 1941. (Brasiliana, 195).
MINDLIN, Betty. Nós Paiter : os Suruí de Rondônia. Petrópolis : Vozes, 1985.
PEREIRA, Adalberto Holanda. Pequeno vocabulário da língua dos índios Cinta-Larga. Rev. de Antropologia, São Paulo : USP, v.14, p.25-6, 1966.
PERET, João Américo. Relatório Operação Cinta Larga. Rio de Janeiro : s.ed., 17/10/1986, 18 p.
PUTTKAMER, W. Jesco von. Brazil protects her Cinta Largas. National Geographic Magazine, Washington : s.ed., v. 140, n. 3, p. 420-40, 1971.
SANDBERG, Patrícia Mary. O sintagma nominal em Cinta Larga. Arquivo Anat. e Antrop., Rio de Janeiro : Inst. Antrop. Prof. S. Marques, n.4/5, p. 283-95, 1980.
TRESSMANN, Ismael. Panderej : os peritos no arco. Cadernos Comin, São Leopoldo : Comin, n. 2, 27 p., jun. 1993.
-------- (Org.). Puupakeej Panae Sep I : livro de leitura Cinta Larga sobre os rios e os seres aquáticos, palustres e terrícolas. Cacoal : Proari, 2002. 90 p.
WALTY, Ivete Lara Camargos. Narrativa e imaginário social : uma leitura das histórias de maloca antigamente de pichuvy Cinta Larga. São Paulo : USP, 1991. 237 p. (Tese de Doutorado).


Nenhum comentário:

Postar um comentário