Índio Parakanã wm Toy Art |
# | Nomes | Outros nomes ou grafias | Família linguística | Informações demográficas | |||||||||
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161 | Parakanã | Tupi- guarani |
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Os Parakanã são habitantes tradicionais do interflúvio Pacajá-Tocantins. Falam uma língua tupi-guarani pertencente ao mesmo subconjunto do Tapirapé, Avá (Canoeiro), Asurini e Suruí do Tocantins, Guajajara e Tembé. São tipicamente índios de terra firme, não canoeiros, e exímios caçadores de mamíferos terrestres. Praticam uma horticultura de coivara pouco diversificada, tendo como cultivar básico a mandioca amarga. Dividem-se em dois grandes blocos populacionais, Oriental e Ocidental, que se originaram de uma cisão ocorrida em finais do século XIX. Os orientais foram reduzidos à administração estatal em 1971, durante a construção da Transamazônica; os grupos ocidentais foram contatados em diversos episódios e localidades entre 1976 e 1984.
Tomada cinematográfica dos Parakanã - anos 70 |
Identificação e localização
Os Parakanã Orientais e Ocidentais somavam aproximadamente 900 indivíduos em 2004. Vivem em duas áreas indígenas diferentes, divisão que não corresponde a dos blocos oriental e ocidental. A primeira área, denominada Terra Indígena (TI) Parakanã, localiza-se na bacia do Tocantins, municípios de Repartimento, Jacundá e Itupiranga, no Pará. Com uma extensão de 351 mil hectares, encontra-se demarcada e com sua situação jurídica regularizada. Desde 1980, recebe a assistência do "Programa Parakanã", fruto de um convênio entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Eletronorte. Sua população era de cerca de 600 pessoas (2004), distribuída em cinco aldeamentos diferentes, dos quais três pertencem aos Parakanã Orientais (Paranatinga, Paranowa'ona e Ita'yngo'a) e dois aos Ocidentais (Maroxewara e Inaxy'anga). Nessa TI, os Orientais são numericamente dominantes, representando cerca de dois terços da população.
Terra Indígena (TI) Parakanã |
O termo 'parakanã' não corresponde a uma autodenominação. Os Parakanã se dizem awaeté, 'gente (humanos) de verdade', em oposição a akwawa, categoria genérica para estrangeiros. Segundo Nimuendaju (1948a), o termo pelo qual são conhecidos entrou no léxico indigenista no início do século XX por meio dos Arara-Pariri, grupo de língua karib que teria sido obrigado a abandonar seu território no alto rio Iriuaná, afluente de margem esquerda do rio Pacajá, em virtude de repetidos ataques de um grupo a quem denominava por esse termo. Parakanã, desde então, passou a designar uma "tribo desconhecida de índios selvagens" habitando as cabeceiras dos afluentes da margem esquerda do Tocantins. Outras denominações, entretanto, são reconhecidas e atribuídas aos Parakanã. Os Xikrin do Bacajá os nomeiam de Akokakore, enquanto os Araweté os identificam como Auim, ou seja: inimigo, e ainda Iriwä pepa yã (senhores das penas de urubu), ou, mais pejorativo, Iriwa ã (comedores de penas de urubu).
Teriam sido avistados pela primeira vez em 1910 no rio Pacajá, acima da cidade de Portel, e identificados como os índios que, na década de 1920, surgiam entre a cidade de Alcobaça e o baixo curso do rio Pucuruí para saquear colonos e trabalhadores da Estrada de Ferro do Tocantins. Foi no início do século XX, portanto, que começaram a aparecer as primeiras informações sobre índios que viriam a ser conhecidos como Parakanã; designação que, então, incluía os Asurini, grupo de mesma língua que também pilhava moradores na região. A partir da década de 1970, os Ocidentais ultrapassaram o limite oeste desse território, vindo a habitar a região das cabeceiras do rio Bacajá e Bom Jardim, afluentes do médio curso do rio Xingu.
A cisão: ocidentais e orientais
Um conflito em torno da posse de uma das mulheres raptadas levou os Parakanã a dividirem-se em dois grandes ramos. O conflito eclodiu nos anos 1890, durante uma expedição para procurar inimigos na margem esquerda do rio Pucuruí, deixando um saldo de dois mortos. Após esse evento, formaram-se dois blocos distintos: os Orientais assentaram-se no alto curso dos rios Pucuruí, Bacuri e rio da Direita; enquanto os Ocidentais rumaram para noroeste, estabelecendo-se, provavelmente, entre os rios Jacaré e Pacajazinho-Arataú (formadores de margem direita do Pacajá). Não é fácil determinar a localização precisa destes últimos, pois, ao contrário dos primeiros, nenhuma de suas aldeias atuais se situa no território que ocuparam entre o final do século XIX e os anos 1960. Logo após o conflito, os Ocidentais voltaram a buscar contato com seus parentes, primeiro pacificamente, mas depois matando mais um homem adulto nas proximidades da aldeia. A cisão tornou-se, então, irreversível.
Os Ocidentais expandiram os períodos de suas andanças pelo interior da floresta, abandonaram progressivamente a horticultura, intensificaram a atividade guerreira e os contatos com a população regional. Já os Orientais, que se mantiveram coesos até o contato definitivo em 1971, adotaram um padrão mais sedentário, mais retraído em relação ao exterior, com uma postura mais defensiva do que ofensiva, e um certo grau de centralização política.
Os dois blocos diferenciavam-se não apenas nas estratégias de subsistência, mas também nos mecanismos sociológicos de produção e reprodução do grupo: de um lado os Ocidentais com abertura para guerra, descentralização política, morfologia social não diferenciada, poligamia generalizada; de outro os Orientais com isolamento, centralização, morfologia dualista, poligamia restrita. Enquanto os Ocidentais ampliavam sua zona de atuação, desferindo seguidos ataques contra novos inimigos, raptando várias mulheres e tomando bens, os Orientais isolavam-se e defendiam-se das intrusões em seu território.
Histórico do contato
Os Parakanã teriam sido avistados pela primeira vez em 1910 no rio Pacajá, acima da cidade de Portel, e posteriormente identificados como os índios que, na década de 1920, surgiam entre a cidade de Alcobaça e o baixo curso do rio Pucuruí para saquear colonos e trabalhadores da Estrada de Ferro do Tocantins. Chamado a garantir a segurança dos trabalhos pacificando os silvícolas, o Serviço de Proteção aos Índios funda, em 1928, o Posto de Pacificação do Tocantins, localizado no km 67 da ferrovia, à margem esquerda do rio Pucuruí.
Corte de cabelo Parakanã |
Os Ocidentais visitaram regularmente o Posto desde sua fundação até 1938. A aquisição de mercadorias e a relação com os Toria [os Brancos] mobilizavam o grupo e dominavam as ações coletivas, determinando um período de relativa paz. Embora carente de precisão, minha cronologia sugere que o reinício dos conflitos guerreiros com outros grupos indígenas coincide com o momento em que deixam de freqüentar o Posto. De alguma forma, portanto, o 'desaparecimento dos Parakanã' vincula-se ao reaparecimento da guerra, como se satisfeitos em mercadorias, voltassem-se novamente para bens que os Brancos não lhes podiam oferecer. A primeira incursão bélica entre os blocos parakanã ocidental e oriental desse período ocorreu na segunda metade da década de 1930, em uma aldeia nova dos Orientais.
Embora se encontrassem próximos ao Posto de Pacificação, os Orientais jamais souberam de sua existência. Ocupando o médio e alto cursos dos rios Bacuri, da Direita e Pucuruí, os Orientais acabaram se relacionando esporadicamente com coletores de castanha, caucheiros e caçadores de gato que penetravam em seu território. Os anos 1940 foram marcados por novos conflitos intertribais (entre os dois blocos parakanã, bem como entre os Ocidentais e os Asurini) e pelo isolamento em relação à sociedade nacional.
Com a 'pacificação' dos Asurini em 1953, os Parakanã Ocidentais voltaram a monopolizar o Posto Pucuruí daquela data até meados dos anos 1960, como haviam feito na década de 1930. Retornaram com grande sede por mercadorias. Mas preferiram manter-se autônomos e continuar apenas a visitar o Posto de Atração. O problema é que, na virada dos anos 1950-60, a fronteira econômica começou a alcançar o território dos Ocidentais, que até então estivera preservado. Sabemos que um dos componentes foi a atividade madeireira que, então, atingia o curso alto dos rios da região. É possível também que o extrativismo mineral na área e o 'marisco de gato' (caça de felinos para venda da pele) - uma importante alternativa econômica durante os anos 1960 -, tenham contribuído para a invasão do território parakanã.
Ao lado das transformações na relação com os Brancos, um processo de longo prazo na base econômica aproximava-se de seu clímax. A mobilidade do grupo vinha em um crescendo, acompanhada pelo abandono da forma aldeã tradicional e pela diminuição da variedade de cultivares em suas roças. Esse movimento é anterior à invasão do território, mas se acelera nesse momento pela pressão da sociedade nacional, de tal forma que, antes de abandonarem a bacia do Pacajá, já haviam deixado o cultivo da mandioca. Por outro lado, crescia também a tensão interna, em parte por causa da pressão exercida pela fronteira extrativista, em parte pela ausência de inimigos. A guerra havia permitido durante muitos anos não apenas dirigir a tensão para o exterior, como atenuá-la internamente por meio da aquisição de mulheres. Entre 1910 e 1955, haviam raptado mais de vinte estrangeiras, das quais dezessete tiveram filhos. Esse acréscimo foi fundamental para manter a paz interna. A geração que chegava à idade adulta nos anos 1960, contudo, não contava com tal recurso e aqueles sem esposa precisavam disputá-la com seus parentes. Foi nesse contexto, que eclodiu um conflito intestino na segunda metade daquela década, que levou à primeira grande fissura no grupo, que se tripartiu, e determinou um movimento migratório para oeste. Foi apenas em 1972, que todos se congregaram novamente junto a roças de colonos, reunindo-se, como me disseram, 'em torno da mandioca dos Brancos'. Encontravam-se às margens do rio do Meio, um tributário do Cajazeiras, limite meridional do território parakanã oriental. Um pouco mais ao norte, seus ex-parentes vinham de ser 'pacificados'. Deixemos, pois, os Ocidentais estacionados no rio do Meio no ano de 1972, comendo mandioca e cará, e voltemos nossa atenção para o que ocorria a alguns quilômetros dali.
A "pacificação" dos Orientais
Na década de 1950, os Parakanã Orientais permaneceram na bacia do rio da Direita e, no início dos anos 1960, deslocaram-se novamente para nordeste e fixaram-se no alto curso do rio Andorinha, região onde seriam 'pacificados' em 1971.
Durante décadas, os Orientais persistiram em sua opção pela autonomia, como haviam feito seus antepassados. Atravessaram o boom da borracha, da castanha e o projeto de ligação ferroviária entre Tucuruí e Marabá. Não resistiram, porém, ao 'milagre' brasileiro. Em 1970, o Governo Federal começou a construir estradas na Amazônia, que tiveram um impacto definitivo sobre a colonização da região e sobre as terras indígenas. Nesse mesmo ano, a Funai e a Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) assinaram contrato para a 'pacificação' das populações nativas localizadas ao longo da Cuiabá-Santarém e da Transamazônica. Temia-se que os índios fossem óbices para construção da malha rodoviária, como no passado haviam sido para a das linhas férreas. O contexto tornara-se ainda mais desfavorável para os índios, pois o governo tinha pressa e dinheiro, fruto de vultosos empréstimos internacionais. Por isso, a recém-criada Funai, tendo militares em seus cargos de chefia, abandonou a postura estática que o SPI havia adotado no Tocantins e partiu para a 'guerra de pacificação', criando quatro 'Frentes de Penetração' para contatar os Parakanã em seu território.
Em 12 de novembro de 1970, deu-se o primeiro encontro com os Orientais, no rio Lontra, afluente do Bacuri, em um local conhecido como Espírito Santo, que servia de acampamento a madeireiros. Os índios parecem ter se mostrado agressivos na ocasião. O então assessor da presidência da Funai e responsável pela operação, Cel. Bloise, contrastou esse comportamento com aquele dos "índios que há cinco anos saíam em Pucuruí em busca de brindes e alimentação" (Funai 1971a:3). Ele se referia às visitas dos Parakanã Ocidentais. A situação, agora, era diversa, pois as equipes do Cel. Bloise tinham instruções para avançar até as aldeias e não para aguardar passivamente na base. Os Orientais ainda quiseram afastar os invasores, mas acabaram sucumbindo a atração fatal dos presentes distribuídos fartamente. Com o tempo, as relações foram se tornando mais íntimas e pacíficas até que, em outubro de 1971, os índios abandonaram suas aldeias e se instalaram no acampamento da Frente.
O contato teve conseqüências desastrosas para os Orientais, causando uma intensa depopulação. Apesar de todos os recursos financeiros de que dispunha o governo brasileiro para a construção da Transamazônica, não houve um planejamento adequado para a 'pacificação' do grupo. A recém-criada Funai havia herdado não apenas os funcionários, mas os métodos do extinto SPI, que por seu turno baseara-se na experiência histórica de interação de missionários e colonos com indígenas desde a Conquista. A mortandade pós-contato era vista como um fado inelutável. Não se cogitou, à época, usar o dinheiro para consultoria técnica, acompanhamento médico ou trabalho preventivo. A tragédia fazia parte dos procedimentos normais de contato - e assim fora desde o século XVI. Para piorar a situação, a abertura da estrada tornara mais difícil restringir a interação dos recém-contatados à equipe da Funai: os Orientais pilhavam os acampamentos das empreiteiras à beira da rodovia e chegaram, algumas vezes, a tomar mercadorias na pequena vila de Repartimento, localizada em um entroncamento da estrada. Essa promiscuidade expôs os índios não apenas às doenças típicas do início do contato, como também à blenorragia, poliomielite e hepatite (Magalhães 1982:56-58; Soares et al. 1994:129).
A queda demográfica no primeiro ano foi muito acentuada. É difícil, no entanto, estimar com precisão a dimensão deste processo, pois parte das mortes ocorreram antes do contato sustentado. No meu entender, a depopulação teria sido da ordem de 35%. No início de 1972, os Orientais atingiram seu solo demográfico, ficando reduzidos a 82 indivíduos, após vários surtos de gripe e doenças respiratórias. A partir daí, começaram a se recuperar.
Encontrei-os pela primeira vez em 1992 e os revi em 1995 e 1999. Somavam naquela feita cerca de 220, e já passavam de 300 sete anos depois. A recuperação demográfica começara timidamente em meados de 1972 e foi se acelerando, principalmente após o convênio da Funai com a Cia. Vale do Rio Doce (1983) e, posteriormente, com a Eletronorte (1987). No período em que com eles convivi, estavam bem assistidos e suas terras - ainda que menores do que o território tradicional - estavam demarcadas e livres de qualquer intrusão. Nestes 30 anos que se seguiram ao contato, eles enfrentaram vários desafios impostos pela sociedade nacional. Dentre os mais significativos, temos o deslocamento causado pelo alagamento de parte de suas terras com a construção da Hidrelétrica de Tucuruí e a luta pela demarcação da TI Parakanã. Perderam várias batalhas e ganharam muitas outras: multiplicaram-se, estabeleceram um modus vivendi com a sociedade envolvente e foram guiados com sabedoria pelo chefe Arakytá. Esse processo foi descrito por Magalhães em seus trabalhos (1982; 1985; 1991; 1994), aos quais remeto o leitor interessado em acompanhá-lo em detalhe.
A experiência inicial dos Orientais de interação com a sociedade nacional teve impacto profundo sobre seus corpos, suas vidas e sobre a concepção que fazem dos Brancos. Não atribuíram as mortes a uma fatalidade do contato interétnico, mas à feitiçaria dos 'pacificadores' que, se não os mataram por meio da guerra, fizeram-no através do xamanismo. Os medicamentos, de dádivas que eram, passaram a ser vistos como paliativos pelas doenças que os Brancos continuam a enviar. Uma justa compensação pela agressão que perdura, ainda que de modo atenuado. Essa disposição dos Orientais em relação aos Brancos não se limita à área de saúde, mas envolve uma desconfiança mais geral, após anos de promessas variadas, nem sempre cumpridas. Costumam manter, assim, uma atitude reservada e atenta com os estrangeiros, que contrasta com a efusividade dos Ocidentais. Voltemos aos derradeiros anos de autonomia relativa destes, que havíamos deixado estacionados próximos a uma roça, no ano de 1972.
A "pacificação" dos Ocidentais
Sete anos após a última visita ao Posto Pucuruí, os Parakanã Ocidentais foram localizados novamente, desta feita bem ao sul, junto a um tributário do rio Cajazeiras, afluente do Tocantins. Pilhavam, então, as roças de colonos. Avisada sobre a presença dos índios, a Funai enviou uma Frente ao local, que fez um contato preliminar em maio de 1972, com sessenta pessoas (Magalhães 1985:29). A equipe do sertanista João Carvalho permaneceu em interação com os índios por dois meses, mas sem apoio da Base Pucuruí e sem presentes para oferecer, foi obrigada a se retirar. Quando retornaram no ano seguinte, encontraram um pequeno grupo já preparado para partir.
Os índios haviam rumado para sudoeste, alcançando o alto curso do rio Cajazeiras, onde um homem foi morto por regionais. Decidiram, então, retomar a marcha para oeste, em busca de terras ainda não alcançadas pelos Brancos. No caminho, uma disputa por mulheres determinou a separação daqueles a quem chamarei, daqui para frente, de 'grupo de Akaria', o qual fugiu, rumando para noroeste em direção às cabeceiras do rio Anapu, que corre paralelo ao Bacajá e deságua na baía de Caxiuana. Chegou lá no final de 1975 e em janeiro de 1976, após aparecer no acampamento de uma empreiteira no km 377 da rodovia, o grupo foi contatado pela Funai e transferido para o Posto Pucuruí (denominado, então, Base Pucuruí). Segundo Magalhães (1982:87), eram quarenta pessoas no momento do contato, dos quais onze logo viriam a falecer.
A maioria dos Ocidentais, por seu turno, seguiu para oeste, alcançando o divisor de águas Xingu-Bacajá. Lá, encontraram velhos (ou talvez novos) inimigos: os Araweté, que foram chamados de Yrywijara ('senhores da carnaúba') ou Arajara ('senhores das araras') como aqueles dos anos 1920. Entre 1975 e 1976, realizaram três ataques contra os Araweté, que representaram o retorno das ações bélicas em maior escala. Após surgirem, em 1977, no Posto Ipixuna, onde a Funai acabou por aldear os Araweté, dirigiram-se para as imediações da aldeia xikrin, às margens do rio Bacajá.
Tomada cinematográfica dos Parakanã - anos 70 |
Entre 1980 e 1982, os Parakanã promoveram vários saques às fazendas que se instalavam na região. A Funai enviou, então, uma equipe para tentar o contato, que acabou se realizando, em janeiro de 1983, entre o igarapé São José e um afluente de sua margem direita, o igarapé Cedro. O 'grupo de Namikwarawa', como ficou conhecido, era constituído por 44 pessoas e se separara dos demais havia poucos meses, em função de uma disputa por mulher. É possível que voltassem a se reunir a seus parentes, mas acabaram transferidos após o contato para a TI Parakanã, na região tocantina. Juntaram-se, assim, ao 'grupo de Akaria' na aldeia de Maroxewara. Nos primeiros seis meses, onze pessoas faleceram, a maioria vitimada por uma infecção intestinal (Vieira Filho 1983:22-23; Magalhães 1985:42).
O restante do Ocidentais rumou para norte, fugindo ao contato e à aproximação das fazendas. Em fevereiro e abril de 1983, jogaram flechas no Posto Ipixuna, ferindo algumas pessoas. Na retirada, um guerreiro de forte liderança foi alvejado por um tiro de espingarda e caiu morto. O impacto daquele evento foi decisivo para a 'pacificação' que se seguiria alguns meses depois. Os Parakanã compreenderam que só eles continuavam a usar arco e flecha e que não havia mais como se manterem distantes das espingardas. Em maio de 1983, surgiram em dois garimpos entre as cabeceiras do Bom Jardim e Bacajá, tomando armas, instrumentos de metal, redes e farinha. A atmosfera era incerta. Planejavam outro ataque contra os Araweté; uma nova Frente seguia seus rastros e uma disputa por mulher levava à separação do 'Grupo de Ajowyhá'.
Em dezembro de 1983, o grupo maior, composto por 106 pessoas, foi encontrado. Uma pequena equipe volante acompanhada por Joraroa, que fora contatado em janeiro daquele ano, alcançou um acampamento entre as nascentes do Bacajá e Bom Jardim. Face às dificuldades de acesso e presença de garimpos na região, a Frente transferiu-os para o baixo curso do igarapé Bom Jardim. Em março de 1984, o 'Grupo de Ajowyhá', com 31 pessoas, veio se juntar a eles.
Assim foi formado o Posto Indígena Apyterewa-Parakanã, contando inicialmente com 137 pessoas, e pondo fim ao longo processo que se iniciara no distante ano de 1928, quando da fundação do Posto do Tocantins. Os Parakanã procuraram de todas as formas evitar esse desfecho, mas perceberam que estavam definitivamente cercados e resolveram aceitar a 'pacificação'. O esforço de todas essas décadas para manter a autonomia acabou sendo recompensado: no primeiro ano de contato, houve apenas três mortes, sendo uma delas por picada de cobra. Descontando-se esta última, tivemos um declínio demográfico de apenas 1,5% - número que deixa a nu todas as 'pacificações' realizadas anteriormente e estabelece um parâmetro para o futuro. Na ocasião, contou-se com recursos financeiros adequados, planejamento das ações, acompanhamento médico imediato, funcionários dedicados e uma pronta aceitação da medicação pelos índios.
O contato não pôs fim aos problemas de terra dos Ocidentais. Apenas deu início a uma nova etapa. A longa migração para o Xingu tinha lhes permitido encontrar uma área menos ocupada e devastada do que aquelas do Tocantins. A fronteira econômica, porém, não demoraria a chegar. Céleres e vorazes, as motosserras roncaram logo a seguir.
A expansão da fronteira econômica no Apyterewa
Quatro anos de redução à administração estatal haviam se passado, quando de minha primeira viagem à TI Apyterewa. Os Parakanã tinham rapidamente adotado uma série de técnicas e instrumentos não nativos. Haviam retomado a agricultura e já se adaptavam à navegação em canoa e à pesca com linha e anzol. As espingardas ainda eram raras, mas logo viriam a se tornar freqüentes, à medida em que aumentavam as pilhagens contra invasores. As roupas, desprezadas quando das visitas ao Posto de Pacificação do Tocantins, tinham se tornado item desejado. Algumas poucas palavras de português corriam na boca dos mais jovens - nomes de objetos e de animais, um ou outro verbo -, mas eles continuavam basicamente monolíngues. As doenças recém-introduzidas, se não causaram colapso demográfico, já marcavam profundamente a experiência desses primeiros anos de contato. Os remédios e a assistência de saúde eram os principais índices da nova dependência, mais contundentes do que os objetos pelos quais haviam aceito a 'pacificação'. Dependência que não se manifestava apenas nos casos mais graves ou nos momentos de epidemia. A distribuição de medicamentos era um ritual cotidiano com hora marcada, anunciado ao entardecer pelo tocar do sino, que fazia com que afluíssem em grande número à enfermaria, onde obtinham colheradas de xarope adocicado, descongestionantes, analgésicos, e chumaços de algodão embebidos em mercúrio cromo, que circulavam amplamente, colorindo os corpos feridos, arranhados, espetados nas atividades diárias.
Em 1988, no entanto, o fluxo de mercadorias começava a minguar, e a preocupação de como garantir o acesso aos bens ocidentais já se fazia presente. A Funai buscava implantar, sem sucesso, um de seus projetos de alternativas econômicas então em voga: a plantação de cacau para venda. Foi nesse momento, que os Parakanã deram-se conta do avanço do extrativismo vegetal e mineral entre as nascentes do igarapé Bom Jardim e do rio Bacajá. Em abril de 1988, eles cercaram um acampamento das madeireiras, trouxeram dois trabalhadores como reféns e deram início a uma década de conflitos e pilhagens contra os invasores.
Se a 'pacificação' fora conseqüência da expansão da fronteira econômica, ela acabou por favorecer o aprofundamento desse processo, pois a transferência do 'Grupo de Namikwarawa' e o deslocamento dos demais grupos para o baixo curso do Bom Jardim liberaram o divisor Xingu-Bacajá para o avanço da frente extrativista. A grande empresa madeireira foi o componente mais ativo dessa frente, que avançando de sul a norte, atingiu a região em meados da década de 1980. O alto preço do mogno no mercado internacional tornara viável a exploração de áreas antes inatingíveis e ditara as características da exploração, baseada em investimentos de larga escala, extremamente rentáveis, realizados por empresas com significativo capital econômico e político, capazes de atuar eficazmente nos planos local, regional e nacional, lançando mão dos mais diversos recursos para preservar a atividade fim: a violência e a ação política legítima, a negociata e a negociação, o desrespeitos às regras e o recurso legal, a expoliação e a ação social.
No caso em pauta, o processo foi comandado por duas grandes empresas, a Exportadora Perachi e a Madeireira Araguaia (Maginco), que construíram um estrada, hoje conhecida como 'Morada do Sol', cortando cerca de cem quilômetros de matas desde Tucumã até o divisor de águas Xingu-Bacajá, onde começa a invadir as terras indígenas da região. Um estudo preliminar de avaliação dos danos causados, realizado em 1992, sugere terem sido abertas cerca de mil quilômetros de estradas secundárias dentro das áreas Apyterewa, Araweté e Trincheira-Bacajá, com o desmatamento de quase nove mil hectares de floresta primária e retirada anual de sessenta mil metros cúbicos de toras de mogno (Funai & Cedi 1993:15-17).
A estrada principal, construída para escoar o mogno explorado nas áreas indígenas, acabou servindo nos anos 1990 como via para a colonização da região. Até 1992, quando a TI Apyterewa-Parakanã foi declarada de posse permanente indígena (PP 267/MJ de 28/05/1992.), a maior parte dos invasores era constituída por garimpeiros e trabalhadores a serviço das madeireiras. A partir do reconhecimento oficial da área e das primeiras ações consistentes de fiscalização por parte dos orgãos responsáveis, iniciou-se um movimento de entrada de posseiros. De um lado, as madeireiras começaram a franquear o acesso, relaxando o controle que mantinham sobre a estrada; de outro, o adensamento populacional na região de Tucumã levou trabalhadores sem terra a avançarem para a nova área.
Os posseiros concentraram-se inicialmente ao sul do igarapé Cedro, onde se dera o contato com o "Grupo de Namikwarawa". Nessa região, foram também abertas fazendas para criação de gado. Em 1994, houve um aprofundamento da invasão, graças à iniciativa do Incra de assentar colonos ao norte do igarapé Cedro, multiplicando o número de pessoas dentro da TI Apyterewa. Criara-se, enfim, o cenário de conflito social, consolidando a estratégia de políticos e empresários locais para impedir a demarcação física da área.
Quando o Ministério da Justiça, por meio do Decreto 1.775 de janeiro de 1996, abriu a possibilidade de contestação das TIs não registradas em cartório, o Governo do Pará, a Prefeitura de Tucumã, a Exportadora Perachi, uma associação de agricultores, bem como particulares, solicitaram a revisão dos limites da TI Apyterewa. Tais contestações, embora improcedentes (como admite o próprio Ministro no despacho em que determina a revisão da área), acabaram sendo acolhidas.
No final de 1993, os Parakanã da TI Apyterewa dividiram-se, formando duas aldeias: o 'Grupo de Ajowyhá', inflado pelo crescimento demográfico e por novas adesões, abandonou o Posto Apyterewa na margem direita do igarapé Bom Jardim e se instalou na beira do Xingu. Em 1995, aqueles que haviam permanecido no interior também se mudaram para o rio, onde o pescado é mais fácil e as chances de contato com os Brancos, maior. A partir daí, a Funai perdeu o controle sobre essa interação, iniciando-se uma nova fase de relações entre os Parakanã e a população regional. Em 1996, alguns índios começaram a negociar com garimpeiros instalados no igarapé São José, limite sul da TI Apyterewa. Pela liberação das atividades extrativistas, eles recebiam algumas gramas de ouro, alguns reais e 'rancho' (arroz, feijão, farinha, óleo etc.). No final daquele ano, iniciaram entendimentos com madeireiros de São Félix do Xingu para liberar a exploração na parte da reserva ainda não atingida, pondo fim à resistência de quase uma década.
Vida aldeã
O termo parakanã que melhor traduz nosso conceito de 'aldeia' é tawa, vocábulo tupi que passou para o português com esse sentido. Tradicionalmente, tawa era um local de moradia não provisório, constituído por uma casa coletiva coberta com o olho da palha de babaçu, por roças de mandioca e por um espaço descampado a alguma distância da habitação para reuniões masculinas. A aldeia era a síntese dessas três dimensões diferentes: casa, roças e 'praça'. Tal configuração foi comum aos dois blocos parakanã durante parte do século XX, embora desde logo cada espaço tenha recebido conteúdos e ênfases diversos. Nos anos 1950, porém, os Ocidentais romperam com esse padrão: primeiro, com a multiplicação das casas, depois com o abandono das roças e, em seguida, com o desaparecimento da 'praça'.
No passado, todo o grupo se abrigava em uma única casa comunal, conhecida como aga-eté ('casa de verdade'), coberta com palha até o chão e, por vezes, emparedada com ripas de paxiúba como medida defensiva (os Ocidentais a denominam tawokoa, 'aldeia longa'). Não é fácil estimar suas dimensões. Contamos apenas com impressões dos funcionários da Funai que realizaram a 'pacificação' em 1971, já que esse tipo de habitação foi abandonado após o contato. Segundo estimativa dos sertanistas a casa comunal teria uma área de cerca de 250 m2, o que sugiro ser uma avaliação conservadora, tendo-se em conta que era, então, ocupada por uma população de aproximadamente 145 pessoas. O espaço interno era pouco diferenciado, como ressalta o chefe da Base Pucuruí, Cel. Bloise, que assim descreve uma das casas que visitou em junho de 1971:
"Trata-se de uma enorme área coberta por olho da palha do babaçu com 10 entradas distintas e independentes. Possui na sua parte mais alta uns 8 metros de altura e sua forma se assemelha a um hangar, isto pela parte externa. Internamente é uma área ampla e livre dividida unicamente pela localização das redes de diferentes famílias (Funai 1971d:5)"
Na construção de uma casa, a escolha do local, o recolhimento das matérias-primas e a própria edificação são tarefas exclusivas do homem, o líder do grupo doméstico, cabendo à(s) sua(s) mulher(es) abrir e entregar a ele a palha de palmeira de babaçu com a qual será coberta a moradia. Filhos e outros parentes que residem na mesma moradia também participam, principalmente se casados (Magalhães:1982, 82).
A casa, durante o dia, era um espaço de convivência generalizado, repartido por homens, mulheres e crianças. Durante parte da noite, porém, tornava-se um local de intimidade feminina, pois os homens adultos e os adolescentes reuniam-se na 'praça', na tekatawa ('lugar de estar'). Os alimentos eram cozidos no seu interior e, também ali, eram feitas as refeições, que não eram coletivas, embora a caça circulasse entre os fogos familiares. A casa era, ainda, o lugar de repouso, de rede e sombra, da proximidade entre pais e filhos, mas de onde estava excluída a intimidade sexual por ser um espaço público demais.
As roças (ka), por sua vez, eram o lugar da labuta diária feminina. Os homens participavam das atividades agrícolas - em particular da broca, derrubada e coivara, que se estendiam de julho a outubro - mas cabia às mulheres o grosso do trabalho cotidiano na roça e no processamento da mandioca. Enquanto espaço, a roça não pode ser qualificada como 'feminina', em oposição à floresta, domínio 'masculino', pois na produção de subsistência existe uma complementaridade. Homens e mulheres não se opõem coletivamente na roça, na casa ou na floresta. Esses espaços são recortados pelas relações familiares.
A oposição forte é entre casa e roça como espaços de produção da vida cotidiana e a tekatawa como espaço da política, exclusivamente masculino. Para os Orientais a aldeia define-se pela presença de três espaços de sociabilidade: casa(s) relativamente permanente(s), roças de mandioca e praça. Um local de habitação sem esses elementos não é uma aldeia, mas um acampamento, que se distingüe por sua incompletude.
Aldeia e acampamento representam momentos de aglutinação e dispersão, respectivamente, e são complementares na produção da vida social parakanã, assim como a horticultura e as incursões pela floresta. No entanto, enquanto entre os Orientais a primeira tendeu a predominar sobre o segundo, entre os Ocidentais assistiu-se à transformação da própria aldeia em um acampamento semipermanente.
Tekatawa e chefia entre os orientais
Os Orientais se representam como totalidade em um espaço específico: a tekatawa, o 'lugar de estar', a ágora parakanã. Este é o locus da chefia, o centro político do grupo, embora inscrito espacialmente fora do centro. A tekatawa é uma local descampado, normalmente sem qualquer construção, que deve estar necessariamente à distância das residências. Não se deixa circunscrever pelas casas, mas se opõe diametralmente a elas.
A separação física entre casa e tekatawa é tida como função de uma oposição entre a coletividade dos homens e a coletividade das mulheres. A distância é necessária para que estas não possam ouvir, nas moradias, a fala e os cantos dos homens. Os Orientais criticam os Ocidentais por realizarem os preparativos do opetymo entre as casas, permitindo que as mulheres escutem os cantos antes do ritual. No entanto, abrem exceção para aquelas que são sonhadoras: estas podem sim freqüentar a tekatawa e ensinar os seus cantos.
Como as reuniões são noturnas e realizadas em uma escuridão apenas pontilhada pelas brasas rubras dos cigarros, não há porque temer olhares curiosos. Ademais, quase nada há para ver: não é o movimento dos corpos que anima a tekatawa, mas as vozes. Ela é o lugar da conversa, do trabalho da fala executado pelos chefes. Ou melhor, propiciado por eles, que não a monopolizam, mas, ao contrário, tornam-na possível e necessária. Os chefes são aqueles que 'fazem a conversa' (-apo morogeta) para os outros.
A reunião acontece a cada noite com a participação de todos os homens adultos. Cada um ocupa um espaço pré-determinado, conforme a metade a que pertença e a faixa etária. Os homens se distribuem em um círculo informe, dividido ao meio no sentido norte-sul: a leste ficam os Tapipy'a, a oeste, os Apyterewa e Wyrapina. O dualismo é representado também na chefia: o homem mais velho de cada metade é um chefe, e ocupa a posição central da tekatawa, faceando o norte e tendo às suas costas outros homens de idade (moro'yroa). Imediatamente defronte, aglomeram-se os jovens com ou sem filhos, aqueles que se tornaram homens a pouco (awarame). Finalmente, ladeando os chefes, encontram-se os adultos plenos (awaramekwera). Essa distribuição é fixa e cada pessoa tende a ocupar sempre o mesmo posto, o que auxilia na identificação dos falantes.
Na tekatawa fala-se sobre tudo, menos sobre mulheres. À primeira vista de maneira caótica - com vozes se sobrepondo num discurso construído coletivamente sob a batuta dos chefes -, relatam-se acontecimentos do dia, trocam-se informações sobre caça, fala-se sobre as vendas de produtos, indica-se a necessidade de trabalhos comuns. O tom oscila entre o gracejo e a fala circunspecta dependendo da ocasião. Por vezes, faz-se silêncio para se ouvir um mito ou história antiga narrado por um dos chefes, narrativa sempre pontilhada por interjeições e suplementos de outros velhos.
A tekatawa tem uma função pedagógica: é o local próprio para a transmissão coletiva do conhecimento histórico, mítico e ritual do grupo. O papel da chefia é cristalizar uma memória coletiva e retransmiti-la. A hierarquia funda-se na capacidade diferencial de acumulação de memória e de sua presentificação em forma de fala. Essa dupla capacidade - conservação e transmissão - é distinta conforme a faixa etária e características pessoais do indivíduo. Não basta, pois, ser um moro'yroa (velho) para ser um moro'yroa (chefe). Para ser um 'continente de gente' (moro-'yroa) é preciso conter conhecimento e ser capaz de animá-lo por meio do fluxo de palavras.
Organização social
Os Parakanã Orientais dividem-se em três patrigrupos exogâmicos (ou seja, grupos de filiação paterna que não casam entre si): Apyterewa, Wyrapina e Tapi'pya. Toda pessoa desse bloco pertence à algum desses patrigrupos. Qualquer pessoa, se perguntada 'qual sua marca, tipo, classe' (ma'é-kwera pa ene) responde, sem pestanejar, a qual desses grupos pertence.
Durante meu período de campo, a liderança política também se estruturava de acordo com a segmentação. A chefia cabia a dois homens, cada qual de uma metade. O arranjo então vigente permitia manter certo equilíbrio e complementariedade no exercício do poder, embora não houvesse simetria perfeita, já que Arakytá (metade Tapi'pya) possuía maior prestígio e autoridade de que seu genro Ywyrapytá (metade Apyterewa). Não há, no entanto, um componente categórico que determine a estrutura da chefia, tampouco se define um sistema necessariamente dual de chefia. Essa condição resulta antes de qualidades pessoais e circunstâncias históricas particulares, que podem ou não estar em consonância com o dualismo. Os Orientais reconhecem explicitamente que uma das metades tem origem externa, enquanto outra representa a continuidade dos verdadeiros awaeté. Como me disse um dia Arakytá: 'nós [os Tapi'pya] somos inimigos (akwawa)'. Essa declaração algo irônica, porém, não funda um simbolismo em que uma das patrimetades está associada ao exterior e outra ao interior.
Os patrigrupos expressam-se, ainda, na disposição das casas na aldeia e na composição dos 'Grupos de Produção'. A maioria das residências era habitada por uma família nuclear, mas algumas delas reuniam dois ou mais casais. Nesses casos, a composição mais comum era a de um pai com seu(s) filho(s) casado(s), mas havia outros arranjos possíveis: germanos, primos paralelos patrilaterais e genro-sogro.
Esse padrão contrasta com o das aldeias ocidentais pós-contato. Estas se organizam, ao mesmo tempo, em função de uma lógica virilocal e patrilinear (agregados residenciais formados por irmãos de sexo masculino e primos paralelos patrilaterais), e outra que enfatiza os laços de afinidade repetida (agregados residenciais compostos por grupos de germanos que trocaram irmãs).
Formas sociais da escassez
O sistema ocidental para obtenção de esposas é muito menos regulado do que o oriental. Há quatro formas de se conseguir uma mulher entre os Ocidentais: através de um arranjo matrimonial; por sucessão após a morte do marido; roubando-a de um parente; ou raptando-a de um inimigo. A operação do arranjo matrimonial é concebida como sendo da esfera feminina e não masculina, como um acerto entre mulheres que trocam filhos (principalmente quando se trata do primeiro casamento de um homem). Elas desempenham, portanto, um duplo papel no jogo da aliança: são elas que circulam entre homens, mas são também elas que tramam parte dessa circulação para beneficiar seus filhos e irmãos.
Boa parte dos arranjos ocorrem antes mesmo do nascimento da criança, como resultado da equação entre preferência avuncular, estratégias presentes das parentelas envolvidas e ciclos de trocas passadas. Se o bebê for uma menina, a mãe de seu futuro marido é quem a ergue do chão e entrega à parturiente: ela 'pega' (-pyhyg) a criança para seu filho. Embora nem toda mulher tenha seu casamento decidido nesse momento, é provável que, em poucos anos, ela já tenha um marido. Em 1993, na aldeia Apyterewa, havia apenas nove mulheres solteiras de um total de 91: oito delas tinham menos de cinco e uma era pré-púbere. Como resultado do regime avúnculo-patrilateral, maridos tendem a ser bem mais velhos do que suas esposas. Os Parakanã prescrevem como cônjuges de um homem as filhas de suas 'irmãs' e de suas tias paternas, sendo que o casamento com a prima cruzada patrilateral é secundário.
Guerra
Os Parakanã não possuem uma categoria geral para 'guerra'. O termo mais específico associado à atividade bélica é warinio ou warinia, que designa exclusivamente o ato de busca de inimigos, movimento ativo de procura de contrários. O combate armado não é designado por um termo próprio. Fazer guerra é atacar (-pakag) o inimigo e os eventos são descritos por uma miríade de verbos que especificam o tipo de ação violenta, como 'golpear a cabeça' (-akameg), 'golpear a lombar' (-akopeka), flechar (-'ywo), 'atirar' (com espingarda) (-mopog), 'cortar' (mowai) etc.
Não há um tratamento narrativo capaz de dimensionar a escala do conflito, o número de mortos e o número de matadores. A escala não é um elemento central na descrição dos eventos guerreiros, que se concentra antes em uma lógica da qualidade do que da quantidade. O importante não é apenas matar, mas se apropriar de uma história individual, mesmo que inscrita apenas nas formas corporais observáveis em um instante fugidio. Guerrear não é apenas pôr à morte um outro qualquer, não é uma operação de aniquilamento: é preciso que o outro exista enquanto sujeito para que haja produtividade no ato de matar, para que o consumo seja produtivo.
É preciso que os guerreiros 'se enfureçam contra o inimigo' (-jemamai akwawa-rehe) para que haja ação. Sob o desejo de matar o inimigo, há uma paixão poderosa: a raiva (mirahya). Esse sentimento é chave na etnopsicologia parakanã, pois se lhe confere uma potência mais forte do que aquela que nós lhe atribuímos. Dizer que um homem é ou está bravo, irado (-pirahy) implica potencialmente que uma agressão letal pode se seguir.
Nem sempre, porém, é possível controlar a raiva. Episódios críticos produzem reações violentas. Quando do falecimento de um parente, por exemplo, os homens são tomados de grande raiva. Na impossibilidade de vingar-se da morte, matam animais domésticos, lançam flechas contra a palha da casa, dão tiros para cima. São formas de 'gastar' a raiva.
O conflito
Nos momentos de guerra, propriamente, as práticas xamânicas são utilizadas como complemento às práticas guerreiras. Enquanto em conflito, alguns homens tinham a potência de mover as vontades e produzir disposições necessárias ao empreendimento guerreiro, outros serviam ao coletivo como telescópios xamânicos, capazes de ver à distância e, assim, localizar o inimigo. Tarefa não menos nobre, uma vez que nem sempre se encontrava rastros de contrários, e mesmo quando isso ocorria, nem sempre se era capaz de segui-los até o fim. Por isso, recorriam com freqüência a uma prática xamânica denominada wari'imogetawa, espécie de sonho público ritualizado. Aquele que vê à distância e narra o que vê para os parentes é dito wari'ijara ('Senhor de wari'ia') ou wari'imogetara ('o que -wari'imoge). Esse processo xamânico, onde os sonho é o revelador do que está por vir, uma antevisão, situa os guerreiros frente aos inimigos que enfrentarão e é elemento primordial da guerra parakanã.
O segundo movimento é o de ataque: mobilizadas as forças, localizado o objetivo, trata-se de avançar em direção ao inimigo. O bando guerreiro, de tamanho e composição variados, chegava a congregar até quatro dezenas de homens armados, além das mulheres que muitas vezes acompanhavam seus maridos até as proximidades do alvo inimigo. Ficavam acampadas a cerca de um ou dois dias do local do ataque, onde mantinham o fogo aceso e guardavam as redes dos guerreiros. A partir desse ponto, o bando, composto por homens adultos e rapazes que já sabiam manejar o arco, seguia em frente, rastreando cuidadosamente o território adversário.
Após matar um inimigo ou flechar um cadáver, o moropiarera deve dar a volta em torno de uma pedra e sentar-se: "para que eu permaneça" (tajetekane), diz o matador. A perecibilidade humana opõe-se à solidez da rocha: "gente é assim mesmo, só pedra permanece de verdade", disse a mim Mojiapewa em 1992. Pode-se também sentar sobre um tronco de jatobá (Hymenaea courbaril), madeira dura e resistente: "para que eu não fique fraco" (tajetawaeme), diz ele. Esses são apenas os primeiros passos de uma série de precauções e prescrições que se deve seguir após o homicídio, e que visam controlar e direcionar as transformações que o matador está sofrendo. Tais restrições são concebidas como um resguardo que se aplica a duas situações: à couvade e às interdições pós-homicídio. Em ambas, temos um conjunto de prescrições negativas quanto ao consumo de alimentos, ao ato sexual e à prática de certas atividades. Na primeira, porém, a maioria das restrições é respeitada pelos pais em prol da criança recém-nascida, enquanto na segunda o matador abstém-se em seu próprio favor.
No estágio inicial e mais estrito do resguardo pós-homicídio, o matador fica recluso em sua casa, deitado na rede, não devendo de lá sair senão para fazer suas necessidades. Durante quatro a cinco dias, quase não bebe água, consumindo uma infusão amaríssima da entrecasca da carapanaúba (marawa) ou da quina (inajarona). As propriedades dessas infusões advém de seu amargor (-ram) e funcionam como neutralizadores do sangue da vítima que contamina o executor. Alguns dizem que o matador está cheio do ex-sangue do inimigo (akwawa-rowykwera), mas em geral a idéia da contaminação não exige a presença de uma substância exógena, e sim do atributo distintivo do sangue para os Parakanã, seu odor.
O corpo do matador durante o resguardo está se transformando, sofrendo um processo de maturação que leva a seu endurecimento. Mata-se 'para eu secar-endurecer por completo, diz-se' (tajeporogeté-té-ne oja). Antes de se tornar resistente e rijo, como um pau de jatobá, o matador passa por um estágio em que suas fronteiras corporais estão frágeis. Por isso, é preciso controlar o alimento que ele ingere. Nos dias iniciais, quando ainda está recluso, ele só pode comer uma pequena parte da carne do jaboti branco, considerada totalmente inofensiva. Nenhuma outra carne deve ser consumida pelo matador na clausura. Ele pode ingerir, ainda, pequenas quantidades de amêndoa do coco de babaçu e uma farinha de mandioca torrada com a casca, chamada manimé.
A quebra da abstinência leva à aquisição de características do alimento ingerido, principalmente no caso de mamíferos: comer anta faz andar pesadamente, porcão faz roncar, caititu faz os testículos crescerem, cotia faz ranger os dentes, paca faz os olhos brilharem, veado faz ter coriza. Alguns vegetais também são prejudiciais: a farinha puba sem casca faz o matador 'secar', a amêndoa verde do coco do babaçu (que é tenra e alva) deixa sua barba branca e o cará causa o estreitamento das nádegas. Outros alimentos não colocam em risco as formas e disposições corporais que definem a humanidade do matador, mas produzem distúrbios internos, por vezes letais. Certos méis e certos peixes incluem-se nessa categoria, mas a ênfase recai sobre outros produtos, dos quais o moropiarera deveria se abster por quase toda a vida, pois 'fazem ter baço': sobretudo, banana e ovos de jaboti, mas também mutuns e tatus que tradicionalmente seriam consumidos apenas por não-matadores, mulheres, crianças e velhos (i.e., os oporo'ywo-wa'é-kwera, 'ex-flechadores de gente'). Reputam à ingestão farta desses alimentos após o contato, o fato de não terem, hoje, a mesma disposição de outrora: "nós ficamos cansados vivendo entre os Brancos".
Um xamanismo sem xamãs
Falar de xamanismo entre os Parakanã implica, antes de tudo, compreender que, a rigor, não há xamãs entre eles. Não há especialistas que desempenhem a função pública dos pajés, nem pessoas a quem se atribua um poder de cura estável e definitivo.
Em quase todos os grupos amazônicos, encontramos duas grandes categorias básicas de doença: há enfermidades causadas pela introdução de um objeto patogênico no corpo, e doenças que resultam da exteriorização, perda, rapto de um componente imaterial, normalmente concebido como um princípio vital. No primeiro caso, a terapia consiste em retirar o objeto estranho do corpo do paciente; no segundo, em recuperar a 'alma' e fixá-la novamente em seu substrato material.
Entre os Parakanã, existe uma terceira categoria de doença, determinada pela noção de contágio, que incluem as doenças adquiridas após o contato com não-índios. Há, finalmente, uma quarta categoria que é a das moléstias que resultam do desguardo, do descumprimento de algum tabu ligado a uma transição crítica na vida da pessoa.
A categoria de doença que recebe maior atenção e preocupação são a das enfermidades produzidas pela introdução de um objeto estranho no corpo do doente, e que se considera resultar, inevitavelmente, da ação de um feiticeiro, um moropyteara. Os objetos patogênicos recebem duas denominações: karowara e topiwara. O primeiro é uma categoria de espíritos com características canibais, ligados à produção da doença e associados amiúde ao anhanga, ser antropofágico das cosmologias tupi. O segundo remete aos espíritos-auxiliares dos xamãs, associados freqüentemente aos animais.
Entre os Parakanã, topiwara e karowara não são propriamente espíritos, como em outros grupos tupi, mas agentes patogênicos controlados por feiticeiros. Por isso, ninguém admite publicamente tê-los visto em seus sonhos: aqueles que vêem karowara são considerados fortes candidatos à feitiçaria, pois se o vêem, os controlam, se os controlam, os utilizam.
O aprendizado da prática de feitiçaria se faz em sonho. A noção mais comum é que se trata de uma experiência onírica com o 'senhor dos karowara' (karowarijara) ou com o 'arrancador de karowara (karowamaapara), que transmite ao sonhador os agentes patogênicos. A transmissão se dá pelo sugamento destes do corpo da entidade. Os Parakanã parecem não ter uma representação precisa dessa entidade, associando-a ora à capivara, ora ao morcego, ora a um ser antropomorfo caracterizado por sua magreza. De qualquer forma, a aquisição do poder se dá pelo aprendizado da sucção (-pyten) que é considerada um tragamento de sangue: aqueles que pegam karowara em sonho têm, como o matador, o gosto-odor de sangue na boca.
Em sonho, aprende-se também a preparar venenos extremamente potentes, que devem ser ingeridos pela vítima ou passados em sua boca. Esses venenos estão igualmente associados ao sangue: um deles é produzido com a placenta de um recém-nascido; outro, com o leite da castanheira, que, dizem, 'é igual a sangue'. Eles provocam diarréia intensa, com sangramento, seguida de rápida morte. Quem sabe confeccionar karowara pode também colocá-lo no cigarro e oferecê-lo à vítima, que o ingurgita ao tragar a fumaça. Sua boca será devorada pelo agente patogênico, que poderá se apresentar na forma de lagartas brancas conhecidas como tahaga.
Todo mundo que sonha tem um pouco de -pajé e alguma ciência para curar. Não se é, porém, jamais xamã, pois este lugar não pode ser ocupado senão provisoriamente; ninguém se arrisca a sê-lo, nem a dizê-lo. Melhor manter-se entre iguais, não se atribuir poderes, para não ser alvo de acusações.
Nos sonhos se obtém cantos, a principal dádiva dos inimigos oníricos. São eles que garantem a legitimidade do sonho e sua produtividade social: sonhar é equivalente a obter cantos. Se alguém afirma ter sonhado mas não é capaz de reproduzir as músicas que ouviu, não sonhou, está mentindo.
Rituais
Chamo genericamente de 'festas' as atividades que se diferenciam daquelas da vida cotidiana por envolverem maior coordenação das ações, por exigirem o desempenho de funções e rotinas pré-determinadas, por mobilizarem de modo mais amplo a coletividade e por associarem, de modos específicos, música e dança.
Há inúmeras ocasiões em que música e dança estão associadas. Três delas, no entanto, distinguem-se das demais por sua maior elaboração, preparação e duração. São elas: a 'festa das tabocas' (takwara-rero'awa), a 'festa do cigarro' (opetymo) e a 'festa do bastão rítmico' (waratoa). Poder-se-ia acrescentar ainda a 'cauinagem' (inata'ywawa), em que, porém, música e dança parecem ter menor relevância. A essas quatro modalidades acrescentam-se uma série de pequenas festas associadas à caça de algum animal ou à coleta coletiva de mel silvestre. Não há qualquer cerimônia ligada à agricultura e considera-se, inclusive, impróprio utilizar seus produtos na preparação das bebidas rituais: o cauim deve ser feito de amêndoa do babaçu, o mingau doce de palmito da mesma palmeira. O único cultivar usado nas festas é o tabaco, posto no interior do cigarro feito de entrecasca do tauari (petyma'ywa, 'árvore do fumo').
A festa das tabocas
Takwara-rero'awa, 'trazida de tabocas', é uma festa noturna que tematiza fundamentalmente as relações entre homens e mulheres. Sua execução leva apenas uma noite, mas os preparativos começam cerca de quinze dias antes, quando os instrumentos são confeccionados com um bambu de cor verde escura, casca áspera e gomos de tamanho médio. Nas tabocas, com tamanho variando entre 50 centímetros e um metro, introduz-se uma taquarinha e obstrui-se a passagem do ar pelo duto com um novelo de envira. A taquarinha vibra, então, como uma palheta (tecnicamente, esses instrumentos não são flautas, mas clarinetas). É mister confeccioná-las no mesmo dia em que são trazidas, pois se amanhecerem na aldeia sem terem sido tocadas, causam febre nas crianças.
Com a manufatura dos instrumentos inicia-se um período de ensaios diários, sempre à noite. Dividem-se os executores em três categorias conforme o tipo de taboca empunhada. Após alguns dias de ensaio, aqueles que dançarão na festa (os takwara-pyhykara, 'pegadores da taboca') começam a coletar e armazenar mel. Na noite que antecede o ritual, eles devem se abster de sexo, pois do contrário vomitariam o mingau doce. Pela manhã, saem para buscar palmito de babaçu e entregam os ingredientes para a mãe, irmã ou esposa. No final da manhã, estas se dirigem para o terreiro entre as casas e começam a preparar a papa de palmito, engrossada eventualmente com mandioca moqueada. Durante o cozimento, os takwara-pyhykara devem se manter afastados do local, pois não podem assistir ao processo de transformação do alimento.
No início da tarde, as mulheres pintam os dançarinos com jenipapo e, pouco antes do crepúsculo, eles se dirigem para uma área atrás das casas. Lá, completa-se a ornamentação, com a fixação de plumas brancas de urubu-rei ou gavião-real nas pernas, a colocação das jarreteiras rubras e dos chocalhos de fieiras atados ao tornozelo. Assim paramentados, fazem a entrada no terreiro onde estão as mulheres guardando as panelas de mingau. Avançando ruidosamente em direção a elas, fazendo soar as tabocas, os dançarinos tomam conta da praça e executam o primeiro ciclo completo das músicas. Interrompe-se, então, a performance para que os velhos misturem o mel ao mingau reaquecido.
Findo o alimento, recomeça a festa que dura até a aurora, com a repetição ininterrupta de vários ciclos das músicas. Durante a noite, algumas mulheres são pegas por homens da assistência, que as obrigam a entrar na roda de dança.
A execução do ritual para as estrangeiras põe em evidência um sentido geral da festa, que é a introdução das mulheres na roda para que tenham longa vida como parceiras sexuais: eis porque as meninas púberes são as mais visadas pelos homens da assistência. Não obstante, todos, de algum modo, buscam tomar parte do movimento do rito. Quando os primeiros sinais da aurora despontam no céu, mães dão seus bebês para as mulheres que foram abraçadas durante a noite dançarem com eles. O objetivo é, uma vez mais, fazer com que tenham vida longa: "para que permaneçam, diz-se" (taiteka oja). Ao mesmo tempo, incentiva-se a participação de meninos com mais de oito anos como instrumentistas: "para que cresçam, diz-se" (tojemotowi oja). É mister notar, aqui, uma distinção entre Ocidentais e Orientais, pois se para os primeiros a festa pode e é realizada da perspectiva feminina, invertendo-se simetricamente os papéis sexuais - e bastando para isso que haja uma mulher que saiba tocar a taboca-pai (saber que hoje está restrito a duas moradoras da TI Parakanã) -, para os últimos essa é uma possibilidade fora de questão.
Com a chegada iminente da manhã, acelera-se o compasso para que a última música coincida com a aurora. Os instrumentistas saem por onde entraram, dirigindo-se para a floresta. Lá, fazem soar estrepitosamente as tabocas e as lançam no meio do mato. Não se poderá mais soprá-las, pois aquele que o fizesse teria problemas na garganta. Hora de banhar-se no rio e repousar.
A festa do cigarro
Em contraste com a festa das tabocas, essa é uma festa de música vocal, dançada individualmente, predominantemente diurna, associada ao tabaco, ao canto de irmãs para irmãos, ao estabelecimento de relações -pajé entre pessoas de mesmo sexo e à predação guerreira.
A execução da 'festa do cigarro' dura de três a quatro dias e dela participam de cinco a dez pessoas. Os preparativos começam cerca de quinze dias antes, quando alguém, experiente, resolve 'se levantar' (-po'om). As razões para fazê-lo são variadas: incentivo dos jovens, fartura particular de caça, comemoração de um evento guerreiro, apaziguamento de conflitos internos. Aquele que se levanta será o dono da festa, o primeiro a dançar e o responsável por patrocinar os ensaios noturnos. Entre os Orientais, esses ensaios se realizam na tekatawa, à distância dos ouvidos das mulheres, que permanecem nas casas. Assim também parece ter sido no passado entre os Ocidentais, mas já há bastante tempo os preparativos ocorrem no terreiro entre as casas, ao alcance dos ouvidos e olhos femininos.
Atividades produtivas
No início dos anos 1960, os Parakanã Ocidentais haviam abandonado por completo a horticultura, vivendo exclusivamente de caça e coleta, e de eventuais roubos de produtos de roças alheias. Com a 'pacificação', a horticultura foi reintroduzida pelos funcionários da Funai, com conseqüências importantes sobre a mobilidade e dieta do grupo. Essa reintrodução se deu na forma de grandes roças coletivas, abertas pelos índios sob a direção do chefe do Posto, com o auxílio de motosserras e machados de metal. Nas roças, passou-se a cultivar, também coletivamente, mandioca, milho, banana, arroz e feijão (cará, macaxeira e batata-doce são plantadas separadamente pelas famílis faucleares). Todo o trabalho coletivo ficou a cargo dos homens: brocar, derrubar, coivarar, queimar, plantar, capinar e colher.
As mulheres, ao contrário do que ocorria no passado, deixaram de participar do plantio e de algumas colheitas. A retomada da agricultura levou a uma redefinição da divisão sexual do trabalho. Se, com freqüência, a adoção de novas culturas - e em particular da mandioca brava, devido ao tempo de seu processamento - tem repercussões importantes sobre o trabalho feminino (Beckerman s/d:82), no caso dos Parakanã Ocidentais, o impacto mais expressivo se deu sobre os homens. Eles não apenas assumiram a maior parte das tarefas agrícolas, como passaram a participar ativamente do processamento da mandioca.
No caso dos Orientais o trabalho na roça é dividido em grupos que atuam segundo divisões familiares. O princípio que determina a composição dos 'Grupos de Produção' para o trabalho na roça é a patrifiliação, ou seja, os grupos são formados a partir dos laços de consangüinidade determinados por via paterna. A patrifiliação como vínculo econômico não une indivíduos, mas famílias nucleares, que são a unidade mínima de produção e consumo. Isso implica que, ao atingir a maturidade sexual, a mulher passa a produzir não mais para sua família de origem, mas para aquela do marido. O trabalho agrícola é constituído pela coordenação do trabalho feminino através do casamento, e pela cooperação masculina através dos laços de patrifiliação.
Se compararmos essa estrutura com a dos Parakanã Ocidentais, notaremos que falta a estes a coordenação do trabalho masculino por laços de patrifiliação. O núcleo familiar, uma vez constituído, adquire total autonomia de direito. A independência do casal deriva precisamente da ausência de qualquer obrigação econômica do marido para com seu pai ou sogro. Antes do casamento, o homem presta serviços antecipados e atenuados para a futura esposa, a quem deve dar parte da presa que caçar. Esta é uma forma de garantir as boas graças dos sogros, e marcar publicamente uma relação que só se concretizará anos depois. De modo semelhante, filhos de sexo masculino não trabalham para o pai, nem mesmo antes do casamento. Para os Ocidentais, deve-se trabalhar unicamente para prover o sustento de esposas e filhos. A família nuclear é, portanto, o único 'agente econômico': é a cooperação entre o marido e sua esposa que movimenta as atividades de subsistência. Isso não significa que inexista uma articulação dos esforços produtivos entre os fogos familiares, mas sim que esta conforma redes flexíveis de relações, não grupos. Cunhados, em especial aqueles que trocaram irmãs, gostam de sair para caçar juntos, assim como os amigos formais.
Caçadores seletivos e pescadores ocasionais
Os Parakanã são caçadores especializados em animais terrestres. Antes do contato, desprezavam a maior parte da fauna aquática e arborícola, que são as mais densas da floresta tropical. Dentre as mais de 70 espécies de aves (que não pássaros de pequeno porte) que distinguem (levantamento preliminar), apenas duas eram predadas: uma de mutum e outra de jacu.
A pesca, por sua vez, era uma atividade secundária. São unânimes em afirmar que antes do contato comiam pouco peixe. Sua importância na dieta restringia-se a alguns meses da estação seca, quando os rios vazavam e a fauna aquática se concentrava em locais propícios à pesca com timbó. Embora não houvesse interditos fortes em relação ao pescado, certas espécies não eram consumidas, por razões variadas.
Se os Parakanã eram pescadores ocasionais e bastante restritivos em relação às aves, o grosso de sua alimentação protéica provinha de mamíferos e répteis. Mas aqui também encontramos grande seletividade. Das 39 espécies de mamíferos (excluindo ratos, gambás e morcegos), os Ocidentais só predavam oito e os Orientais, nove. Os únicos mamíferos sobre os quais não recai qualquer restrição são a anta, o queixada e o caititu, que ao lado de duas espécies de jaboti (G. carbonaria e G. denticulata) constituem as caças preferidas dos Parakanã.
Fontes de informação
ARAÚJO LEITÃO, Ana Valéria Nascimento (Org.). A defesa dos direitos indígenas no judiciário : ações propostas pelo Núcleo de Direitos Indígenas. São Paulo : Instituto Socioambiental, 1995. 544 p.
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